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AO MESMO TEMPO QUE OS ESTUDANTES ocupavam a Sorbonne, eles também tomavam o “Centre Censier” (a nova Faculdade de Letras da Universidade de Paris).
Censier é uma construção enorme e ultramoderna feita de aço, concreto e vidro, situada na região sudeste do Quartier Latin. A ocupação do Censier atraiu menos atenção do que a da Sorbonne. Entretanto, ela provou ter sido tão significativa quanto aquela. Enquanto a Sorbonne era a vitrine da Paris revolucionária — com tudo que isso implica em termos de glamour – Censier era seu dínamo, o lugar onde as cosas eram realmente feitas.
Para muitos, os dias de maio de Paris devem ter sido um acontecimento essencialmente noturno: batalhas noturnas com a CRS, barricadas noturnas, debates noturnos nos grandes anfiteatros. Mas este era apenas um lado da moeda. Enquanto alguns discutiam até tarde da noite na Sorbonne, outros iam cedo pra cama, para poderem distribuir panfletos pela manhã nos portões de fábrica e na periferia. Panfletos esses que tinham que ser planejados, datilografados, reproduzidos, e cuja distribuição tinha que ser cuidadosamente organizada. Esse trabalho paciente e metódico era feito no Censier, e não foi pequena a sua contribuição para dar uma forma articulada à nova consciência revolucionária.
Logo após o Censier ser ocupado, um grupo de ativistas controlou uma grande parte do terceiro piso. Esse espaço seria a sede dos então propostos “comitês de ação trabalhador- estudante”. A ideia geral era estabelecer laços com grupos de trabalhadores, por menores que fossem, que compartilhassem a visão revolucionária-libertária desse grupo de estudantes. Após estabelecido contato, trabalhadores e estudantes cooperaram na formulação conjunta dos panfletos. Os panfletos discutiam os problemas imediatos de grupos específicos de trabalhadores à luz do que os estudantes mostraram ser possível. Produzido um panfleto, ele seria então distribuído conjuntamente pelos trabalhadores e estudantes do lado de fora da fábrica ou do escritório aos quais ele se referia. Em algumas ocasiões os estudantes tiveram que fazer a distribuição sozinhos, em outras não foi preciso sequer um único estudante.
O que uniu os companheiros do Censier foi a nítida percepção das potencialidades revolucionárias da situação e o entendimento de que não tinham tempo a perder. Todos sentiram a necessidade imperiosa de que fosse feita propaganda da ação direta, e que a urgência da situação exigia que eles transcendessem as diferenças de doutrina que pudessem existir entre eles. Eles eram todos pessoas intensamente engajadas politicamente. Na maior parte, suas ideias políticas eram as mesmas que caracterizavam o novo agente político que tem crescido em importância histórica: os ex-membros de organizações revolucionárias.
Quais eram suas ideias? Basicamente, elas se concentraram em algumas poucas proposições. O que era preciso, nesse exato momento, era um rápido e autônomo desenvolvimento da luta da classe trabalhadora, a organização de comitês de greve eleitos que fizessem a ligação entre os sindicalizados e não-sindicalizados em todas as empresas e indústrias em greve, reuniões regulares dos grevistas de modo que as decisões fundamentas permanecessem nas mãos do trabalhador comum, comitês de defesa dos trabalhadores para defender os piquetes das intimidações da polícia, um diálogo constante com os estudantes revolucionários com o objetivo de restituir à classe trabalhadora sua própria tradição de democracia direta e sua própria aspiração à autogestão, que foi usurpada pelos burocratas dos sindicatos e partidos políticos.
Durante uma semana inteira, várias facções trotskistas e maoístas nem sequer perceberam o que ocorria no Censier. Eles passavam o tempo todo em debates públicos na Sorbonne, muitas vezes ácidos, sobre quem deles seria uma melhor liderança. Enquanto isso, os companheiros no Censier estavam levando firmemente o trabalho adiante. A maioria deles havia saído de organizações stalinistas ou trotskistas após terem rompido com as mesmas. Eles haviam se livrado da concepção que via no recrutamento de membros para o próprio grupo a coisa mais importante em uma “intervenção”. Todos reconheciam a necessidade de um movimento revolucionário de ampla base e razoavelmente estruturado, mas nenhum deles via a construção de tal movimento como a tarefa mas importante e imediata, na qual a propaganda deveria se concentrar imediatamente.
Fotocopiadores que faziam parte dos “elementos subversivos” foram trazidos. E fotocopiadores da universidade ficaram sob o comando dos estudantes. Estoques de papel e tinta foram obtidos de várias fontes e por vários meios. Os panfletos começaram a sair, primeiramente às centenas, depois aos milhares, depois às dezenas de milhares, na medida que os laços foram sendo estabelecidos com os grupos de trabalhadores de base. Somente no primeiro dia foram feitos contatos na Renault, na Citroen, na Air France, na Boussac, na Nouvelles Messageries de Presse, na Rhone-Poulenc e na RATP (metrô). A partir daí o movimento se tornou uma bola de neve.
Toda noite no Censier os comitês de ação davam os informes a uma Assemblée Générale, criada exclusivamente para esta tarefa. As reações às distribuições eram avaliadas, e os conteúdos dos próximos panfletos, discutidos. Essas discussões normalmente se iniciavam com uma descrição, feita por um trabalhador do qual se estava em contato, sobre o impacto dos panfletos em seus colegas de trabalho. A discussão mais acalorada foi sobre se deveriam fazer ataques diretos aos líderes da CGT, ou se simples insinuações sobre o que era preciso para se ganhar seria o suficiente para expor tudo o que os líderes sindicais haviam (ou não haviam) feito, e tudo o que eles representavam. O segundo ponto de vista prevaleceu.
Os panfletos eram normalmente bem curtos, nunca com mas de duzentas ou trezentas palavras. Quase todos começavam listando as reivindicações dos trabalhadores — ou apenas descrevendo as condições de trabalho. Eles terminavam com um convite aos trabalhadores para que viessem ao Censier ou à Sorbonne. “Esses espaços agora são seus. Vá até lá para discutir com os outros os seus problemas. Se dêem as mãos e contem seus problemas àqueles a sua volta.” Entre a introdução e o convite, a maioria dos panfletos explicavam uma ou duas ideias políticas chave.
A resposta era instantânea. Cada vez mais trabalhadores se juntavam aos estudantes para formularem os panfletos. Em pouco tempo não havia mais auditório grande o suficiente para a diária Assemblée Générale. Os estudantes aprenderam muito com a autodisciplina dos trabalhadores e com o modo ordenado que eles apresentavam seus informes. Eram muito diferentes das brigas que se davam entre as facções políticas estudantis. Havia um consenso de que estas foram as melhores palestras feitas no Censier!
Entre os trechos mas significativos desses panfletos, eu anotei:
Panfleto da Air France
“Recusamos aceitar uma ‘modernização’ degradante que significa sermos constantemente vigiados e sermos submetidos a condições que são nocivas à nossa saúde, ao nosso sistema nervoso, e que são um insulto à nossa condição de seres humanos... Recusamos a continuar confiando nossas reivindicações a dirigentes sindicais profissionais. Como os estudantes, devemos tomar em nossas mãos o controle de nossas atividades.”
Panfleto da Renault
“Se quisermos nosso aumento salarial e condições de trabalho seguras, se não quisermos que elas sejam constantemente ameaçadas, devemos lutar agora por uma mudança fundamental na sociedade... Sendo trabalhadores, deveríamos procurar controlar o funcionamento de nossa empresa. Nossos objetivos são similares aos dos estudantes. A gestão da indústria e a gestão da universidade deveria ser realizada democraticamente por aqueles que lá trabalham...”
Panfleto da Rhone-Poulenc
“Até agora tentamos resolver nossos problemas através de petições, de lutas parciais e da eleição de melhores líderes. Isso não nos levou a lugar algum. A ação dos estudantes nos mostrou que somente a ação dos que estão subordinados pode fazer as autoridades recuarem... os estudantes estão se opondo totalmente às finalidades da educação burguesa. Eles querem que eles mesmos tomem as principais decisões. Nós também deveríamos. Deveríamos decidir a finalidade da produção, e sobre quem recairiam os custos da produção.”
Panfleto do Distrito (distribuído nas ruas de Boulogne Billancourt)
“O governo teme a ampliação do movimento. Ele teme a unidade que se desenvolve entre estudantes e trabalhadores. Pompidou anunciou que h governo defenderá a República’. O exército e a polícia estão sendo preparados. De Gaulle falará no dia 24. Será que ele enviará a CRS para retirar os piquetes das empresas em greve? Esteja preparado. Em oficinas e faculdades, pense sobre a autodefesa...”
A cada dia, dezenas desses panfletos eram discutidos, datilografados, copiados, distribuídos. Todas as noites ouvíamos cosas do tipo como seguem, sobre a repercussão dos panfletos: “Eles o acharam extraordinário. É exatamente o que eles pensam. O pessoal dos sindicatos nunca disse algo do gênero como está escrito nos panfletos”. “Eles gostaram do panfleto. Eles estão cépticos quanto aos 12%. Dizem que os preços subirão e que perderemos tudo em alguns meses. Alguns dizem que devemos todos pressionar agora e ver no que dá.” “O panfleto certamente os fizeram falar. Eles nunca tiveram tanto a dizer. Os funcionários tinham até que esperar sua vez de falar...”
Eu lembro nitidamente de um jovem trabalhador gráfico que disse uma noite que esses encontros eram o acontecimento mais excitante ocorrido na vida dele. Durante toda a sua vida ele havia sonhado em encontrar pessoas que tivessem e expressassem essas ideias. Mas todas as vezes que encontrava alguém assim, ele perceba que essa pessoa só estava interessada no que poderia conseguir dele. Esta era a primeira vez que haviam oferecido a ele uma ajuda desinteressada.
Eu não sei o que aconteceu no Censier desde o final de maio. Quando eu saí de lá, vários trotskistas estavam começando a entrar, “para politizar os panfletos” (eu presumo que eles queriam dizer que os panfletos deveriam falar agora sobre “a necessidade de se construir um Partido revolucionário”). Se eles tiverem sucesso — o que eu duvido, conhecendo a capacidade dos companheiros do Censier — será uma tragédia.
De fato, os panfletos eram políticos. Durante todo o tempo da minha curta passagem pela França eu não vi nada mas profunda e relevantemente político (no melhor sentido do termo) do que a campanha levada adiante a partir do Censier, uma campanha pelo constante controle da luta de baixo para cima, pela autodefesa, pela gestão operária da produção, pela popularização da concepção de conselhos operários, e que explicava a todos a enorme importância, em uma situação revolucionária, das exigências revolucionárias, da atividade auto-organizada, da autoconfiança coletiva.
Quando saí do Censier eu não pude deixar de pensar no modo como aquele lugar representava perfeitamente a crise do capitalismo burocrático moderno. O Censier não é um cortiço educacional. É uma construção ultramoderna, uma das obras exemplares do grandeur(1) gaullista. Ele possui circuito fechado de TV nos auditórios, modernas redes de encanamentos, e máquinas automáticas que vendem 24 tipos diferentes de comidas — em recipientes esterilizados — e 10 tipos diferentes de bebidas. Mas de 90% dos estudantes do Censier vêm de famílias pequeno-burguesas ou burguesas. No entanto, a rejeição deles pela sociedade que os
criou é tão grande que eles chegam a pôr 24 horas por dia as fotocopiadoras em funcionamento, produzindo um fluxo de literatura revolucionária de uma forma que nenhuma cidade moderna tinha sido acometida anteriormente. Esse tipo de atividade transformou esses estudantes e contribuiu para transformar o ambiente em volta deles. Eles estavam simultaneamente abalando a estrutura social e tendo o grande momento das suas vidas. Nas palavras do slogan rabiscado no muro: “On n’est pas la pour s’emmerder”.(2)
Notas de rodapé:
(1) Em francês no original. Grandeza, autoridade, poder. (N.T.) (retornar ao texto)
(2) “Não se está lá para cagar”. (N.T.) (retornar ao texto)