A Revolução Colonial na Atualidade

George Breitman

1964


Primeira Edição: ....
Fonte: Marxism and the Negro Struggle
Tradução: Juventude do PSTU
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

capa

A principal revolução no mundo é a revolução colonial, diz Harold Cruse em seu artigo, “Marxist and the Negro” (Liberator, maio e junho). E o principal erro que até mesmo os marxistas “mais astutos” da Socialist Workers Party e da Quarta Internacional, cometem, segundo ele, é não reconhecer ou entender esse fato.

A razão pela qual eles não podem entender isso, diz Cruse, é que eles são obcecados e cegos pelas ideias ultrapassadas de Karl Marx de que os trabalhadores nos países industrialmente avançados são a principal ou única força revolucionária no mundo.

O resultado, ele diz, é que o marxismo assume uma postura paternalista perante as partes (negras) coloniais do mundo, acreditando que a sua emancipação deve esperar até que os trabalhadores (brancos) de países industrialmente avançados façam sua própria revolução, depois da qual eles liderarão o povo dos países coloniais para sua liberdade. Um resultado adicional é que o marxismo está obsoleto e que os marxistas se encontram em uma crise da qual não podem se recuperar.

Essas são as acusações de Cruse. Agora vamos voltar aos fatos.

É uma questão factual, que qualquer pessoa capaz de ler pode checar por si mesma, que a Socialist Workers Party e a Quarta Internacional acreditam e defendem que hoje, e desde 1949, a luta nos países coloniais é o centro da revolução mundial.

Para provar, nós citamos um de vários documentos, Dynamics of World Revolution Today, uma resolução adotada pela Quarta Internacional em seu Congresso de Reunificação de junho de 1963, e impressa no Internacional Socialist Preview, no final de 1963 (disponível pela Pioneer Publichers como uma cartilha).

Essa resolução afirma claramente que o centro principal da revolução mundial mudou para o mundo colonial, começando com o triunfo da Revolução Chinesa, e explica porque isso aconteceu, quais vêm sendo seus efeitos, quais são os problemas do mundo colonial e como esses problemas podem ser superados.

Essa posição é tão bem conhecida, que quando Mikhail Suslov, o doutrinador ideológico da União Soviética fez um discurso em abril tentando desacreditar a liderança chinesa, ele disse:

“Alguém acredita que o fato de a teoria chinesa ter feito das regiões da Ásia, África e América-Latina a ‘principal zona de conflitos da revolução mundial’ é algo original? Não, isso é apenas a repetição quase idêntica de uma das principais teses do trotskismo atual. Qualquer um pode ler a resolução da assim chamada Quarta Internacional (trotskista): ‘como resultado de duas grandes ondas revolucionárias de 1919-21 e 1943-48 – e uma menor em 1934-37 – o principal centro da revolução mundial mudou momentaneamente para o mundo colonial’. É aqui onde a fonte do conhecimento político da liderança chinesa deve ser procurada [...]”.

Não apenas este fato, que refuta a argumentação de Cruse, é bem conhecido, como também é conhecido pelo próprio Cruse! Podemos dizer isso categoricamente porque ele mesmo cita, em seu artigo, algumas passagens da mesma resolução, Dynamics of World Revolution Today (uma passagem falando da urgência dos marxistas em recrutarem ativistas negros influenciados pela revolução colonial).

Por que Cruse faz isso? Por que ele apresenta de forma distorcida a posição da SWP sobre a revolução colonial? Podemos apenas concluir que ele acha mais fácil argumentar contra posições que a SWP não defende do que contra aquelas que ela defende.

Os fatos também refutam as acusações de Cruse de que o marxismo (“ocidental”, “ocidentalizado”, ou branco) tem uma atitude paternalista para com o povo (negro) colonial. O único exemplo que ele oferece, Leon Trotsky, é o pior que ele poderia escolher.

A única “evidência” de Cruse é uma frase do último parágrafo da cartilha de Trotsky, Marxism in the United States. Isso foi escrito em 1939, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, que Trotsky acreditava que iria inevitavelmente provocar surtos revolucionários tanto na Europa como em suas colônias. Uma vez que a revolução socialista começasse, ele escreveu, ela se espalharia rapidamente de país a país, e “seguindo o exemplo e com a ajuda dos países avançados, os países atrasados também serão levados pela onda revolucionária do socialismo”. Ele estava se referindo aqui a todos os países com indústria atrasada, incluindo aqueles na Europa Oriental, assim como os países negros.

Socialismo messiânico?

Cruse, entretanto, considera essa frase como “prova” de que o marxismo tem um arrogante descolamento para com os povos negros, que o socialismo marxista é uma noção messiânica “nacionalista-branca”, que os revolucionários socialistas enxergam como sua “tarefa para com a história elevar os povos atrasados de seu estado infame para a civilização socialista, mesmo que os brancos tenham que adiar essa elevação até que eles tenham conseguido realizá-la em sua casa”. Uma acusação bem grave para se concluir de uma frase tão pequena.

Mas ela simplesmente não se confirma. Longe de acreditar que os trabalhadores dos países capitalistas são a única força revolucionária, Trotsky insistiu muitas vezes que “a palavra decisiva no que toca o desenvolvimento da humanidade” pertence às “raças oprimidas negras” (1932). Ele repetidamente expressou sua visão de que “o movimento dos povos negros contra a opressão imperialista é um dos mais importantes e poderosos movimentos contra a ordem existente e, portanto, requer completo, incondicional e ilimitado apoio da parte branca do proletariado” (1937). Isso foi muito antes do atual ascenso colonial, e é nesse espírito que ambos a Socialist Workers Party e a Quarta Internacional foram sempre guiados.

Em maio de 1940, um ano após a frase citada por Cruse, quando a Segunda Guerra Mundial já havia eclodido, a Quarta Internacional realizou uma conferência emergencial onde foi adotado um manifesto sobre “A Guerra Imperialista e a Revolução Proletária”, que foi apoiado pela SWP. Trotsky escreveu esse documento, e já que ele foi assassinado alguns meses depois, ele representa seu julgamento final e maturo sobre a questão.

Ele poderia quase ter sido escrito como resposta às afirmações de Cruse de que os marxistas pensam que o povo colonial deveria esperar, depender ou seguir humildemente os países com indústria avançada. Depois de incitar as massas coloniais a se aproveitarem da crise da guerra para se libertarem de seus mestres imperialistas, e insistir que os trabalhadores dos países imperialistas apoiem a revolta colonial, Trotsky explicitamente diz:

Não há motivos para espera

“A perspectiva da revolução permanente não significa de modo nenhum que os países atrasados devem esperar pelo sinal dos países avançados, ou que os povos coloniais devem esperar pacientemente que o proletariado dos centros metropolitanos os libertem. Aquele que ajuda consegue ajuda. Os operários devem desenvolver a luta revolucionária em todos os países coloniais ou imperialistas, onde existam condições favoráveis, e assim dar o exemplo aos trabalhadores dos demais países”(1).

Então a SWP considera a revolução colonial como a principal atualmente, como Cruse, e a apoia “completa e incondicionalmente”, também como Cruse. Tendo nos livrado das diferenças inventadas ou exageradas por Cruse, nós agora podemos nos voltar para as reais divergências.

Cruse considera que o movimento revolucionário colonial é o único importante; que nenhum outro movimento ou tendência hoje significa qualquer coisa; que o futuro do mundo e da história será determinado inteiramente pela revolução (negra) colonial contra os países imperialistas (controlados por brancos).

A visão mundial da SWP é muito menos simples porque a situação real é muito mais complexa. Ela vê o destino do mundo sendo decidido por uma operação combinada de três fatores:

  1. A luta colonial contra o imperialismo, que hoje é a esfera revolucionária central e mais ativa.
  2. A luta pela revolução política nos Estados operários, o que envolve a expulsão da casta burocrática de privilegiados que é hoje dominante e restaurar a democracia operária.
  3. A luta pela revolução social nos países imperialistas, o que envolve o fim da ordem capitalista e sua substituição pela ordem revolucionária dos operários e seus aliados.

Para a SWP essas três esferas da revolução mundial estão intimamente ligadas e são interdependentes. Apesar de se desenvolverem de maneira desigual, eles se reforçam e se fortalecem. Vitórias em uma esfera podem beneficiar as outras, e vice-e-versa. Uma estratégia correta para a revolução mundial, que é a única garantia permanente de vitórias nas três esferas, requer uma avalição realista de seus potenciais, limitações e interligações (uma avaliação como esta é brilhantemente fornecida na já mencionada resolução Dynamics of World Revolution Today).

Ilusão absurda?

Cruse considera a própria ideia de uma revolução proletária nos países capitalistas como uma ilusão absurda e nociva; ele parece ter muito mais certeza disso do que os próprios capitalistas. Para ele, a luta de classes entre trabalhadores e capitalistas é insignificante ou sem sentido. Ele junta todas as classes antagônicas nesses países como se elas fossem todas uma única harmônica família (com exceção do povo negro nos EUA, que ele considera parte da revolução colonial mundial). Ele não tem nada a dizer sobre o desenvolvimento dentro dos Estados operários (uma vez que afirma que Stálin era o tipo de líder “necessário” no começo da União Soviética, talvez ele também ache que os trabalhadores soviéticos “precisam” de alguém como Khrushchev(2) atualmente).

O que leva Cruse a, assim, exagerar a força do inimigo e fechar seus olhos para a possibilidade de ajuda de aliados dentro dos Estados capitalistas e operários? Esses são erros relacionados com seu método, que vê apenas as coisas conforme elas são no momento, de maneira fixa e congelada, em vez de como um processo repleto de contradições, renovações e mudanças (apesar de todo o seu papo sobre dialética).

A luta de classes nos países capitalistas está em refluxo? Então será sempre dessa forma! Os trabalhadores são conservadores, apáticos, presos firmemente pelos capitalistas e seus gestores de trabalho? Então será sempre dessa forma!

Essa é a mesma maneira que muitos viam a revolução colonial há vinte anos, e a luta dos negros há 10 anos, quando as condições para o ascenso atual ainda estavam amadurecendo de forma escondida. Os Cruses daquele tempo, prisioneiros das aparências externas, podiam também apenas dizer: será sempre assim dessa forma! Não é um modo de pensar muito prestativo para aqueles que querem se preparar para revoluções.

A revolução colonial levou a grandes avanços, e levará a mais e mais. Mas esses avanços não destruíram o imperialismo, especialmente em seu próprio território. Ainda assim, a continuada existência do imperialismo, com seu preponderante fortalecimento econômico e mundial, é o maior obstáculo para maiores, mais profundas e mais rápidas conquistas na esfera colonial.

O inverso também é verdadeiro. A abolição do capitalismo nos países imperialistas centrais e sua substituição pelos Estados operários abrirá novas avenidas para a revolução colonial. Ela trará inestimável ajuda econômica para a revolução colonial, permitindo que eles freiem ou evitem a burocracia, limitações dos direitos dos trabalhadores, e outras deformações existentes nos países pobres e com uma economia atrasada.

A questão crucial para os revolucionários de todos os lugares, portanto, é: como alcançar a abolição do capitalismo na esfera imperialista? Deve ela esperar, como implica as posições de Cruse, até que os países coloniais sejam fortes o suficiente para derrotar os seus inimigos imperialistas em um combate militar direto? E irão os imperialistas esperar até que isso ocorra para lançar uma ofensiva antes, usando inclusive da bomba termonuclear?

Ou será que existem forças dentro dos países imperialistas que podem se juntar em um movimento revolucionário capaz de desarmar os capitalistas, tirando seu poder e se juntando fraternalmente aos revolucionários coloniais?

Como Clifton DeBerry, candidato à presidência pelo Socialist Workers Party escreveu em uma resposta a Cruse (que Liberator já encomendou, mas ainda não imprimiu), a política que ele contrapõe ao marxismo “iria, na realidade, deixar os povos coloniais sujeitos a uma eternidade de ameaças de ataque dos imperialistas”.

Atingir nas origens

O trabalho de acabar com essa ameaça não pode ser feito sozinho pela revolução colonial. “Esse trabalho deve ser feito dentro dos próprios países imperialistas”, disse DeBerry. “Ele requer uma luta revolucionária dos trabalhadores, brancos e não-brancos, para abolir o sistema capitalista que serve de fonte para o imperialismo”.

O mesmo erro é cometido por Cruse quando ele tenta definir a natureza da luta dos negros. Para ele ela é, pura e simplesmente, “a revolta semicolonial, que é inspirada mais por eventos externos aos EUA do que internos”.

Apesar de discordarmos com a última frase dessa afirmação, nós concordamos que a luta dos negros definitivamente tem muitas características de uma revolta semicolonial, e damos crédito a Cruse por ter sido um dos principais propagandistas dessa ideia (ele provavelmente não ficará contente pela nossa afirmação de que tal ideia tem origem no marxismo-leninismo, que foi o primeiro, até onde sabemos, a incluir os negros norte-americanos no grupo das minorias nacionais, nações e nacionalidades oprimidas no mundo; mas essa é a verdade).

Não é o único aspecto

Porém, embora esse seja um importante aspecto da luta dos negros, não é o único. Cruse simplifica demais essa questão, da mesma forma como ele o faz com a escala mundial da revolução mundial. Nesse ponto, ele nos lembra daqueles homens cegos, que encostam cada um em uma parte de um elefante – a presa, a perna, a tromba, etc. – e pensaram de maneira equivocada que entendiam a realidade total do elefante.

O aspecto da luta dos negros que Cruse ignora é seu aspecto de classe. Negros são explorados não apenas por causa de sua cor, mas também por causa da classe que pertencem em sua grande maioria. Eles são parte da classe trabalhadora, sua parte mais explorada, mais proletária, e o que quer que seja que infringe os trabalhadores enquanto classe os atinge também – geralmente primeiro e com maior intensidade.

Ignorar o caráter dual e combinado da luta dos negros é se cegar para as fontes duais de seu potencial total. Enquanto uma luta nacional-racial e de classe, ela é movimentada pelos dois mais explosivos combustíveis da sociedade moderna. Essas são as fontes de seu dinamismo, e apesar de que classe e raça operam de maneira desigual e irregular em diferentes tempos, elas são ambas as fontes que irão se combinar para levar à vitória da luta negra.

Qualquer teoria que não reconhece e combina esses dois aspectos se mostrará fatalmente incompleta. Os primeiros socialistas norte-americanos, que viam apenas o aspecto de classe, são uma lição clara do quanto é possível se perder ao analisar apenas um lado do caráter dual da luta dos negros. Cruse está fazendo um erro similar, na outra direção. A tentativa dos marxistas de fazer uma síntese é a mais esclarecedora até agora. Se ela não está completa ou adequadamente terminada ainda, ela deve ser finalizada – pelos ativistas negros, assim como pela SWP – pois aponta para a direção correta.


Notas de rodapé:

(1) Documento disponível em sua íntegra e em português em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1940/05/manifesto.htm (retornar ao texto)

(2) N.E. – Sucessor de Stálin, foi primeiro-ministro da URSS e secretário-geral do PCUS de 1953-1964. (retornar ao texto)

Inclusão 12/11/2017