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Primeira Edição: transcrição de uma atividade do Circulo de Estudos Marxistas em 29 novembro de 1968. Uma polêmica acerca dos acontecimentos de maio e da Greve Geral que abalou a França. foi publicado no Brasil em 1981 pela editora Kairós, com tradução de Carlos Marico. Faz parte das Obras de publicadas em francês pela Edições SELIO - Paris.
Fonte: Edição em português EDITORA KAIRÓS, 1981
Transcrição: Alexandre Linares
HTML: Fernando Araújo.
Há quase exatamente um século, em setembro de 1868, Bakunin fundava a Aliança Internacional da Democracia Socialista, cobertura pública de uma organização secreta, a fim de empreender, no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores, a luta contra o Conselho Geral, dirigido por Marx desde que a Internacional fora constituída quatro anos antes.
Evadido da Sibéria, para onde o Czar o havia deportado, depois de o ter prisioneiro durante longos anos na Fortaleza de Pedro e Paulo, Bakunin, de volta à Europa em 1862, instalara-se na Itália em 1863 e constituíra aí a primeira das sociedades secretas, a Fraternidade Internacional, em torno das quais concentrar-se-ia sempre o essencial de sua atividade — enquanto Marx esforçava-se no intento de reunir as massas proletárias em suas organizações de classe, em torno da Internacional. Em setembro de 1867, Bakunin juntou-se à Liga da Paz e da Liberdade, organização internacional de democratas burgueses esperando fazer dela o instrumento de penetração de suas idéias no interior da Internacional. Mas esta última, resolvida a manter-se no terreno de classe, rejeita secamente em seu congresso de Bruxelas (setembro de 1868), as propostas de fusão feitas pela Liga. Bakunin que, a título individual, só aderira à Internacional em julho do mesmo ano, rompe então com a Liga e funda a Aliança, a qual pede ao Conselho Geral da Internacional que reconheça seu programa e seus estatutos. A luta histórica entre Marx e Bakunin, entre dois programas, duas estratégias da revolução, duas concepções da história e da sociedade, iria começar.
Que esse conflito tenha se tornado novamente atual, se é que alguma vez deixou de sê-lo, basta, para se convencer disso, citar essa declaração recente de Daniel Cohn-Bendit (1), respondendo à questão: "Que mestres você reconhece?, Marx, primeiramente?":
"Se quiserem, sou marxista da mesma forma que Bakunin o era. Bakunin traduziu Marx e, para ele, Marx havia, não desenvolvido teorias novas, mas formulado, a partir de teorias da cultura burguesa, as possibilidades de uma cultura revolucionária da sociedade. Bakunin influenciou-me mais...".
Que Cohn-Bendit, ao fazer de Marx o teórico do antagonismo de duas culturas e não do combate da classe explorada contra a classe exploradora, se engane grosseiramente, que, mais ainda, queira esquecer que Marx era, antes de tudo, um revolucionário, sempre pronto a abandonar ou retardar suas pesquisas teóricas para ocupar seu posto de combate, como em 1848 na Alemanha, ou dar uma estrutura teórica, política e organizacional à Internacional nascente e consagrar-se, com uma incansável perseverança, às tarefas cotidianas do Conselho Geral; que, sobretudo, ele não possa compreender que em Marx teoria e prática revolucionárias estavam indissoluvelmente ligadas, ao ponto de Bernard Shaw, esse corifeu da pequena-burguesia, acreditando, por essas palavras, desmerecer Marx, ter acertado ao escrever que, no Capital, Marx falava da burguesia como um correspondente de guerra da ‘guerra’ de classes — não é isso que nos interessa comentar.
Como a revivescência atual das idéias anarquistas explica-se, em larga medida, pelo fato de numerosos jovens, enojados com o stalinismo, não conseguirem distinguí-lo claramente do marxismo autêntico, torna-se de extrema necessidade um exame comparado das posições anarquistas e marxistas. Ainda uma vez é necessário opor às visões anarquistas aquelas do marxismo autêntico, e não de suas caricaturas reformista, stalinista, centrista, revisionista. Se, há 51 anos, começando a redação de O Estado e a Revolução, notava Lenin: "Frente a esta situação, frente a essa difusão inaudita de deformações do marxismo, nossa tarefa é primeiramente restabelecer a doutrina autêntica de Marx", que qualificativos seria necessário empregar hoje para falar das deformações de que o marxismo é objeto após 45 anos de stalinismo? Hoje, quando, para citar apenas um exemplo, um Herbert Marcuse intitula friamente de "O marxismo soviético" uma obra consagrada à exposição da ideologia da burocracia do Kremlin?
Por fim, apesar de que para nós marxistas as concepções anarquistas seja, em última análise, o fruto da pressão exercida pelas camadas pequeno-burguesas sobre o proletariado, isso não nos dispensa de forma alguma, bem ao contrário, de proceder ao exame dessas doutrinas enquanto tais. Somente a análise de seu conteúdo poderá trazer à luz suas raízes sociais.
Propomo-nos, então, confrontar sucintamente as concepções marxista e anarquista sobre os quatro problemas seguintes: a natureza das forças revolucionárias em nossa época; a sociedade logo após a revolução social; o Estado; as massas e sua vanguarda. No que concerne aos pontos-de-vista anarquistas atuais, consultaremos notadamente a revista Noir et Rouge, que vem fazendo há já alguns anos um esforço sistemático para precisar a doutrina anarquista, e cujo fracasso, em nossa opinião, é ainda mais significativo. Enfim, de passagem, ajustaremos algumas contas com os revisionistas, que invocam o marxismo, falsificando-o.
Em sua principal obra teórica, redigida em 1873, pouco antes que a doença o obrigasse a cessar toda atividade, Estatismo e Anarquia, Bakunin, polemizando com Marx, exprime-se a esse respeito sem rodeios:
"Em lugar algum, talvez, a revolução social esteja tão próxima como na Itália, sim, em lugar algum, sem mesmo excetuar a Espanha, embora esse país esteja já oficialmente em revolução e na Itália tudo esteja aparentemente calmo. Na Itália o povo inteiro espera a revolução social e, dia a dia, vai conscientemente ao encontro dela. Pode-se imaginar com que amplitude, com que sinceridade e com que paixão o proletariado aceitou e continua a aceitar o programa da Internacional. Na Itália não há, como em muitos outros países da Europa, um estrato operário separado, em parte já privilegiado, graças a altos salários, gabando-se mesmo de certos conhecimentos literários e a tal ponto impregnado de idéias, aspirações e vaidade burguesas que os operários que pertencem a esse meio só se diferenciam dos burgueses por sua condição, nunca por sua tendência. É sobretudo na Alemanha e na Suíça que existem operários desse gênero, o que não acorre na Itália, onde são poucos, tão poucos que se perdem na massa e não têm nenhuma influência sobre ela. O que predomina na Itália é o proletariado em andrajos (2). Os senhores Marx e Engels, e em seguida toda a escola da democracia socialista alemã, falam dele com o mais profundo desprezo e isto bem injustamente, pois é nele e somente nele, e não na camada aburguesada da massa operária que residem na totalidade o espírito e a força da futura revolução social.
Teremos oportunidade de nos estender sobre isso um pouco mais tarde; por enquanto limitamo-nos a tirar a seguinte conclusão: é precisamente por causa dessa predominância maciça, na Itália, do proletariado em andrajos que a propaganda e a organização da Associação Internacional dos Trabalhadores têm tomado nesse país o aspecto mais apaixonado e mais autenticamente popular; e justamente por causa disso, propaganda e organização, ultrapassando as cidades, ganharam logo em seguida as populações rurais".
Ele (Bakunin) conta igualmente entre as forças revolucionárias com os intelectuais, sobretudo os estudantes pobres, que "lhe trazem conhecimentos positivos, métodos de abstração e de análise, assim como a arte de se organizar e de constituir alianças que, por seu turno, criam essa força combatente esclarecida sem a qual a vitória é inconcebível".
Quanto aos operários dos países avançados, escreve um pouco adiante, eles não são "muito desesperados".
Percebe-se como o método de Bakunin opõe-se ao de Marx. Marx, quando trabalhava para fornecer os fundamentos comprovadamente científicos à luta do proletariado pelo socialismo, chocou-se com as concepções utópicas de um Weitling aos olhos do qual, como para Bakunin, unicamente o lumpenproletariado era de fato revolucionário. O método de Bakunin é idealista. Ele procura as fontes do élan revolucionário nos sentimentos de desespero das camadas mais pobres, sobretudo camponesas, cuja incultura é, a seus olhos, uma qualidade.
Essas massas incultas têm necessidade de chefes. Elas não podem devido à sua incultura, achá-los em seus próprios quadros. Deverão encontrá-los na intelligentsia, notadamente entre os estudantes.
Escutemos agora Cohn-Bendit:
"É importantíssimo que se diga em alto e bom som: em maio de 68, na França, o proletariado industrial não foi a vanguarda revolucionária da sociedade, antes, constituiu-se em sua pesada retaguarda. A camada mais conservadora, mais mistificada, a presa mais fácil das armadilhas e logros do capitalismo burocrático moderno foi a classe operária... Esta afirmação não se pode explicar somente por uma análise das burocracias operárias.... Os estudantes, na sua maior parte, não são pobres; a contestação visa a estrutura hierarquizada, a opressão no conforto... Por outro lado, o mundo operário conhece na França grandes setores de pobreza real: os salários de menos de 500 francos por mês, a usina não climatizada, suja, barulhenta, onde se esgoelam o contramestre, o gerente da fábrica e o engenheiro. Enfim, existe a França do trabalho do século XX, que coloca dentro de um bem-estar relativo o problema da relação dirigente-dirigido e o dos fins e objetivos da sociedade." (Le Gauchisme, p. 125).
E depois de um longo desenvolvimento, ele conclui:
"Os estudantes revolucionários podem desempenhar um papel primordial no combate" (Idem).
Assim, para Bakunin, o proletariado industrial não é a força motriz da revolução porque não é suficientemente pobre; para Cohn-Bendit, é a retaguarda porque o é demais. Para um como para outro, a vanguarda, os quadros da revolução, são os estudantes — justamente, explica Cohn-Bendit, porque não são pobres e não têm vulgares preocupações materiais... Seria interessante saber quais estudantes franceses Cohn-Bendit freqüentou para achá-los numa tal abastança. Mais interessante, porém, é notar o ataque que um século depois de Bakunin, e com argumentos diferentes, opostos mesmo, os teóricos atuais da "contestação", sustentam contra a tese marxista da hegemonia do proletariado na revolução. O importante, em maio-junho de 68, não foram os dez milhões de grevistas, foram as arengas da Sorbonne... E os lumpens "katangueses", estes sim, eram a elite, a vanguarda da vanguarda!
Desçamos ainda um degrau e assinalemos dos revisionistas Bensaid e Weber, essas linhas inesquecíveis:
"Desaparecida há muito tempo, a oposição revolucionária ressuscitou em maio pelo movimento estudantil. Ele assumiu esse papel. Levado pelo crescimento geral das lutas, o movimento estudantil desempenhou o papel de vanguarda abandonado pelos partidos operários" (Mai 68, p. 142).
E mais adiante:
"(Os estudantes) vieram se colocar ao lado do proletariado em luta; mas, ao contrário, são os operários mais resolutos, mais combativos, que pedem para vir à Sorbonne... Frente à falência do P. C. e da C. G. T., a vanguarda operária dirige-se para eles como um substituto, uma direção de reserva. . . " (Idem, p. 158).
Esta predestinação dos estudantes para dirigir a classe operária tem seu teórico: Ernest Mandel, obviamente, o qual, em 9 de maio na Mutualité, não falou nem do "neocapitalismo", nem das "reformas de estrutura", das quais, como se sabe, era especialista — nem do epicentro da revolução, situado, de uma vez por todas, nos países atrasados — não, ao invés disso, ele apresentou "uma notável análise da revolta estudantil nos centros imperialistas, fundada sobre uma nova apreciação do lugar ocupado pela força de trabalho intelectual no processo de produção" (idem, p. 130). Pois, que seja dito: "Todas as características do meio estudantil atual não fazem senão esboçar um fenômeno fundamental sublinhado pelo camarada Ernest Mandel, em 9 de maio na Mutualité; isto é a reintegração do trabalho intelectual no trabalho produtivo, a transformação das capacidades intelectuais dos homens em principais formas produtivas da sociedade" (Idem, p. 29).
Faz-se necessário examinarmos aqui brevemente essas teorias, cujo essencial é comum a Mandel e aos stalinistas, e que pretendem apoiar-se sobre certas passagens do primeiro manuscrito do Capital de Marx, recentemente publicado na França sob o título Fundamentos da crítica da economia política.
Todos aqueles que, como Mandel ou Pablo, rejeitaram o "Programa de Transição" da Quarta Internacional, atacam primeiramente a famosa tese que é a pedra angular desse programa: "As forças produtivas deixaram de crescer". Esquecem, porém, que a noção marxista de formas produtivas engloba o homem como força produtiva principal e que, numa sociedade que acumula as forças destrutivas, que condena a grande maioria da humanidade e uma fração sempre crescente do proletariado, mesmo dos países avançados, a uma desgraça sem esperança, as forças produtivas efetivamente deixaram de crescer.
Confundindo a ciência e a técnica com as forças produtivas, eles sustentam, ao contrário, que as forças produtivas conhecem um desenvolvimento sem precedentes. Deveriam concluir, conformemente à doutrina de Marx, que o modo de produção que favorece um tal surto das formas produtivas, o capitalismo, é de uma estabilidade a toda prova. É o que fazem, de fato, os stalinistas com sua "democracia renovada". Mandel, naturalmente, é mais engenhoso. Pretende, todavia, demonstrar — como Garaudy por exemplo – que os intelectuais desempenham nesta sociedade um papel novo e determinante, que os estudantes são a vanguarda, que a classe operária não é mais a classe revolucionária. Ele iguala-se, assim, a Cohn-Bendit. Segundo todos esses "teóricos", a emancipação dos trabalhadores. . . será obra dos estudantes (dos "intelectuais", em Garaudy — e não esqueçamos que em linguagem stalinista, na URSS, em todo o caso, "intelectual" é a camuflagem de "burocrata").
Mas reportamo-nos ao texto de Marx, sobre o qual eles pretendem se apoiar:
"A troca do trabalho vivo e do trabalho objetivado, isto é, a manifestação do trabalho social sob a forma antagônica do capital e do trabalho, é o último desenvolvimento da relação do valor e da produção fundada sobre o valor.
A premissa dessa relação é que a massa do tempo de trabalho imediato, a quantidade de trabalho utilizado, representa o fator decisivo da produção de riqueza. Ora, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riquezas depende cada vez menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho utilizado, e cada vez mais da potência dos agentes mecânicos que são colocados em movimento durante o período de trabalho. A enorme eficiência desses agentes, por seu turno, não tem relação alguma com o tempo de trabalho imediato que demanda sua produção. Ao contrário, depende do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção (...)
A riqueza real desenvolve-se agora, por um lado, graças à enorme desproporção entre o tempo de trabalho utilizado e seu produto e, de outro, graças à desproporção qualitativa entre o trabalho, reduzido a uma pura abstração, e a potência do processo de produção que ele vigia; é o que nos revela a grande indústria.
Desse modo, o trabalho não se apresenta como uma parte constitutiva do processo de produção. O homem comporta-se, antes, como um vigia e um regulador do processo de produção. (Isto vale não somente para a maquinaria mas também para a combinação das atividades humanas e o desenvolvimento da circulação entre os indivíduos.) (...)
O desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que a ciência em geral, o saber, transformou-se em uma força produtiva imediata, e, por conseqüência, até que ponto as condições do progresso vital da sociedade submetem-se ao controle da inteligência geral e levam sua marca; até que ponto as forças produtivas sociais não são produzidas somente sob a forma do saber, mas ainda como órgãos imediatos da praxis social, do processo vital real" ("Fundamentos da Crítica da Economia Política", tomo II, pp. 221-223).
Deve-se entender, obrigatoriamente, que à medida que a ciência "torna-se força produtiva imediata", o capitalismo torna-se suscetível de assegurar uma nova fase de progresso da civilização?
O ponto de vista de Marx é exatamente o oposto. Para ele esse processo leva a contradição histórica do capitalismo ao seu ponto culminante e torna tanto mais urgente a revolução proletária:
"O roubo do tempo de trabalho de outrem sobre o qual repousa a riqueza atual aparece como uma base miserável com relação à base nova, criada e desenvolvida pela própria grande indústria.
Desde que o trabalho, sob a sua forma imediata, deixou de ser a fonte principal da riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser sua medida e o valor de troca, portanto, deixa também de ser a medida do valor de uso. O sobretrabalho das grandes massas deixou de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, assim como o não-trabalho de alguns deixou de ser a condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano (... ) (Idem, p. 222).
"As massas operárias devem, portanto, apropriar-se de seu sobretrabalho. Isto feito, o tempo disponível deixa de ter uma existência contraditória. O tempo de trabalho necessário mede-se, então, segundo as necessidades do indivíduo social, e o desenvolvimento da força produtiva social cresce com uma rapidez tão grande que, mesmo se a produção é calculada em função da riqueza de todos, o tempo disponível cresce para todos.
A riqueza verdadeira significa, com efeito, o desenvolvimento da força produtiva de todos os indivíduos. Portanto, não é mais o tempo de trabalho, mas o tempo disponível que mede a riqueza.
Se o tempo de trabalho é a medida da riqueza, isso significa que a riqueza está fundada sobre a pobreza, e que o tempo livre resulta da base contraditória do sobretrabalho; em outros termos, isto supõe que todo o tempo do operário seja posto como tempo de trabalho, e que ele mesmo seja rebaixado ao nível de simples trabalhador e subordinado ao trabalho.
Eis porque a maquinaria mais desenvolvida obriga hoje em dia o trabalhador a trabalhar mais que o selvagem, ou mais que ele mesmo, quando dispunha de utensílios mais rudimentares e primitivos" (Idem, p. 226).
Numa palavra, em regime capitalista, a transformação da ciência em força produtiva imediata, longe de liberar os trabalhadores, agrava sempre mais a sua escravidão. Ao mesmo tempo, o regime capitalista nega-se a si mesmo: sua razão de ser está na produção de valores de troca, medidos em tempo de trabalho; e ele não cessa de reduzir a quantidade de trabalho socialmente necessário à produção de uma quantidade dada de mercadoria. Seu motor é a produção de mais-valia; unicamente o trabalho vivo, atual porém, produz mais-valia; e, entretanto a parte dentre as forças produtivas, da imensa acumulação de meios de produção, máquinas, autômatos, que é produto de um trabalho passado, cresce ininterruptamente. A ciência torna-se força produtiva imediata: eis porque é urgente que a classe operária exproprie o capital, socializa os meios de produção. A conclusão de Marx é diretamente oposta às de Mandel, Garaudy e Cia.
Afastamo-nos de Cohn-Bendit? Certamente, não. As críticas da "sociedade de consumo" — como se o mal dessa sociedade fosse que ela satisfaz bem demais as necessidades materiais de seus membros! — procedem de uma mesma incompreensão, fundamental, da noção marxista de forças produtivas, de uma mesma substituição do método materialista de Marx por um método idealista. Eis porque colocam os estudantes à frente de uma revolução que consiste em "criticar" (vide a "Universidade Crítica" de Marcuse, o deus de Bensair e de Weber, assim como de Cohn-Bendit e de Rudi Dutscke) os valores da sociedade atual — uma revolução na idéia, uma idéia de revolução — e não, tendo à frente os produtores, em apoderar-se dos meios de produção, abrindo a via, por esse modo, à reconquista total das forças produtivas, à transmutação das forças produtivas da humanidade em força produtivas humanas, orientadas não mais para a produção de valores-de-troca, mas de valores-de-uso, de riquezas, de bens suscetíveis de satisfazer sem limite as necessidades materiais e espirituais dos homens.
Comecemos ainda aqui por Bakunin que fala de uma "corrente essencialmente nova, visando a abolição de toda exploração e de toda opressão política ou jurídica, governamental ou administrativa, isto é, a abolição de todas as classes pelo meio da igualização econômica de todos os bens e da destruição de seu último reduto, o Estado".
Esse texto atesta, entre outras coisas, a profunda ignorância de Bakunin em economia, de que fala Marx. Ele propõe a "igualização", econômica de todos os bens. Isto quer dizer que a lei do valor subsiste, assim como a moeda, que mede os bens, e sua "igualização"! (Já o programa da "Aliança", falava da "igualização das classes", o que o Conselho Geral havia justamente criticado). Para Marx, o socialismo, a sociedade sem classes, supõe um desenvolvimento tal das forças produtivas que permite a satisfação sem limite de todas as necessidades (e não a "igual" satisfação das necessidades!). Ela só poderá alcançar seu total desenvolvimento quando o valor, a moeda, a divisão do trabalho tiverem enfraquecido e desaparecido. Precisamente por essa razão ela não é possível logo após a revolução. É necessário primeiramente acelerar o desenvolvimento das forças produtivas, colocar a ciência, "força produtiva imediata", a serviço da humanidade, e não mais a serviço do lucro privado ou das forças destrutivas. Nesse meio tempo, na sociedade de transição, subsistem ainda o valor, a moeda, os salários, que enfraquecem gradualmente, enquanto que a alienação dá lugar ao gozo, que o tempo de trabalho produtivo diminui em proveito do "tempo disponível". Para Bakunin, do mesmo modo que a revolução é um ato de vontade, a "igualdade", será logo depois realizada, por um outro ato de vontade. Isto tanto teria podido ocorrer há 2000 anos como hoje. . . Não é de espantar que, como veremos, o Discípulo de Bakunin, Cohn-Bendit, estime que uma "mudança profunda e considerável de mentalidade" seja necessária!
Nossos anarquistas atuais não levam as leis da economia mais a sério que o próprio Bakunin. Assim, pode-se ler no n.º 30 de Noir et Rouge:
"Pensamos que uma organização econômica a curto prazo em um país deve levar em conta as diferentes regiões, reduzir os desequilíbrios econômicos naturais, distribuir eqüitativamente os produtos. O federalismo é um imperativo econômico para evitar, compensar pelo menos, as diferenças de desenvolvimento que provocam as migrações internas, as oposições, as divisões políticas e sociais. É também necessário reduzir ao máximo o leque dos salários para evitar a dispersão dos capitais para fins individuais e a consolidação ou a criação de castas sociais que tendem a se conservar por cooptação, agora que economicamente, vitalmente, o único critério válido é o valor, a capacidade. Este valor, para se conservar idêntico, deve ser permanentemente revogável. É igualmente normal que os interesses, os privilégios de certas camadas sociais desapareçam, que a distribuição seja a mais direta possível a fim de que maior parte do valor de mercado de um produto retorne ao produtor, permanecendo acessível ao consumidor.
Não pensamos de forma alguma que seja necessário estabelecer um estágio transitório entre o capitalismo e as medidas econômicas que descrevemos.
Enfim, não nos parece que a sociedade atual, uma vez dirigida e reorganizada, possa levar à abundância, nem que a ciência possa solucionar todos os problemas. Esta é uma visão mítica e artificial.
"É hoje, no interior das engrenagens da sociedade em que vivemos, que é necessário trabalhar sem nenhum compromisso".
Isto dispensa comentários. É necessário que se entenda bem, tudo isso se realiza "dentro das engrenagens da sociedade" capitalista, sob a influência da lei do valor, sob os olhos benevolentes do Estado capitalista... Não haverá abundância, todos apertarão "igualmente" o cinto... Isso faz pensar irresistivelmente naquele anarquista que Trotsky conheceu em sua juventude, o qual, à pergunta "como funcionarão as estradas de ferro na sociedade anarquista?" deu esta resposta impagável: "Mas que necessidade terei eu de circular em estrada de ferro, na sociedade anarquista?"
A torta de creme da "autogestão" é do mesmo estofo. Dispensemos as gloriosas experiências de autogestão realizadas no mês de maio em tal laboratório, tal instituto universitário, abstração feita de realidades vulgares tais como as relações desse laboratório, desse instituto, com o resto do mundo, com as instituições de crédito, as bolsas, os salários fixados pelo Estado capitalista. . ., as "experiências de autogestão", de tal pequena empresa, abstração feita de suas relações com o mercado capitalista, os bancos, etc.
Cohn-Bendit não tem, nesse particular, mais imaginação que Bakunin ou a redação de Noir et Rouge. Depois de haver pregado uma "mudança profunda e considerável de mentalidade" (Le Gauchisme, p. 117), escreve:
"A relação abstrata entre coisas valorizáveis encarna-se no dinheiro, outra potência abstrata, encarnando por seu turno o jogo de leis que escapam, no essencial, à vontade dos homens em geral. A força de trabalho, ao contrário, é uma das propriedades comuns a todos os homens. A medida do tempo que cada produtor consagra ao trabalho é a hora de trabalho. E a medida que permite calcular o tempo de trabalho (cristalizado nos produtos da atividade humana, com algumas exceções: a pesquisa científica e outros trabalhos de criação), é a hora de trabalho social médio, base da produção e da distribuição comunistas dos bens.
"Mas, perguntarão, qual é a diferença entre o valor-dinheiro e o "bem de consumo" calculado sobre a base da hora de trabalho social médio? Em regime capitalista, a troca exprime um fato fundamental: o produtor imediato não é dono dos meios de produção e o trabalho social é a propriedade das classes dominantes. Estas repartem os produtos do trabalho social em função desse "direito de propriedade", do "grau de competência", das leis do mercado e outras, de um número enorme de fatores e de regras, correspondendo às vezes à realidade mas sempre falseados pela divisão da sociedade em classes — cujas organizações sindicais constituem uma das expressões. Em troca, quando a hora de trabalho social médio serve de base para calcular a produção e o consumo, não há mais necessidade de "política de salários", as forças produtivas, isto é, tanto a vontade do produtor, como as capacidades de produção existentes, determinam automaticamente o volume do consumo, tanto global como individual" (Le Gauchisme pp. 119-120).
Esse discurso emaranhado e confuso reduz-se exatamente às teorias de Proudhon sobre o "valor constituído", que consistiam em conservar o lado bom do capitalismo após ter suprimido o mau, em "organizar" o capitalismo, em "regulamentar" a lei do valor organizando a "troca direta de seus produtos" medidos em tempo de trabalho entre produtores — dito de outro modo, em voltar ao artesanato e à pequena produção agrícola. Isto foi refutado por Marx... há 122 anos. Decididamente, Conh-Bendit tem razão. Ele é discípulo de Marx, à maneira de Bakunin.
Cohn-Bendit que aliás se pronuncia a favor de "um plano cujos dados serão submetidos a todos e que será decidido por todos" (Idem, p. 117), dentro do quadro dos conselhos, não parece suspeitar que esse plano, uma vez adotado por uma maioria, tornar-se-á lei para todos, pois esse plano é um todo — e supõe, portanto, um certo grau de constrangimento, melhor dizendo, supõe que esses conselhos representem um papel político, numa palavra, que eles exerçam o poder do Estado! Somente quando a abundância tornar inútil toda espécie de limitação do consumo, mesmo sob a forma de bônus horas de trabalho, somente então "o governo dos homens dará lugar à administração das coisas".
A mística do Estado, cuidadosamente mantida pela burguesia — o Estado, cuja "razão" não é a de todo mundo, o Estado, a quem a burguesia, como a seu Deus, atribui uma maiúscula — estende sua influência, apenas invertida, aos anarquistas. O Estado não é a seus olhos um produto histórico da divisão da sociedade em classes, que não pode ser "abolido", mas deve, antes, desaparecer com a própria sociedade de classes — é um fenômeno em si, a encarnação de Satã. Citemos algumas passagens de Estatismo e Anarquia de Bakunin, com os comentários feitos por Marx à margem de seu exemplar:
"Bakunin. — Se há um Estado, deve haver aí necessariamente dominação, portanto escravidão; um Estado sem escravidão, aberta ou escondida, é impensável — eis porque somos inimigos do Estado. O que significa "o proletariado elevado à posição de classe dominante"?
"Marx. — Isso significa que o proletariado, em lugar de lutar isoladamente contra as classes economicamente privilegiadas, adquiriu poder e organização suficientes para utilizar os meios gerais de coerção na luta contra elas. Mas ele só pode utilizar meios econômicos que destruam sua própria característica de classe de assalariados e, portanto, seu caráter de classe. Sua dominação termina, assim, com sua vitória total.
Bakunin.— Há por volta de 40 milhões de Alemães. Todos eles serão membros do governo?
Marx. — Certamente. Pois todo o assunto começa com o governo autônomo da Comuna".
Como se vê, para Marx, como mais tarde para Lenin, o Estado operário é aquele no qual "cada cozinheira" deverá exercer o poder de Estado. Lembremos, ademais que, desde 1852, Marx já constatara que o proletariado devia, não se apoderar da antiga máquina de Estado burguesa, mas quebrá-la. São conhecidas as conclusões que ele tiraria da Comuna de Paris, as quais Lenin retomou e ampliou em O Estado e a Revolução, o que levou Noir et Rouge a escrever muito ingenuamente:
"A atitude anarquizante de Marx ajudou demais, infelizmente, a propagar entre as massas a idéia de uma ditadura... Lenin exploraria a fundo essa confusão em O Estado e a Revolução" (!)
A necessidade de um poder, instrumento das massas, de uma força concentrada para conduzir o combate contra a burguesia, e o impasse do anarquismo foram demonstrados com clareza na revolução espanhola. Sabe-se como, quando todas as condições para um poder dos conselhos estavam dadas, quando o comitê central das milícias da Catalunha era virtualmente o órgão do poder dos trabalhadores, os dirigentes da organização majoritária do proletariado espanhol, a C.N.T. — F.A.I., entraram para o governo burguês "republicano" e participaram da reconstrução do Estado burguês, até a repressão da insurreição proletária de maio de 37 em Barcelona (inclusive), abrindo assim o caminho para a contra-revolução stalinista e finalmente para a vitória de Franco.
A Espanha permaneceu, então, um ponto focal, em tomo de que se move desesperadamente o pensamento anarquista a propósito do Estado. É assim que no número 36 de Noir et Rouge, um dos colaboradores espanhóis dessa revista escreve:
"Ninguém pode minimizar a importância dos problemas colocados aos anarquistas em 20 de julho de 1936, quando se viram com a situação nas mãos sem saber o que fazer. O que nós lhes reprovamos não é a renúncia à ditadura anarquista, mas o terem optado pela contra-revolução. O dilema que então se apresentava: ditadura ou colaboração governamental, é falso. Do ponto de vista anarquista, a colaborado governamental e a ditadura são a mesma coisa. E duas coisas iguais não podem constituir um dilema...
"Com esses 200.000 homens armados e perto de um milhão de filiados organizados nos centros de produção, os anarquistas representavam um poder econômico formidável e uma força de dissuasão não menos respeitável. Empenhar-se na conservação dessa força, articulá-la, reforçá-la, face à guerra, face ao Estado agressivo e face à revolução, nos teria tornado imbatíveis e nosso serviço ao antifascismo teria sido ao mesmo tempo mais eficaz" (pp. 26-27).
Como se a "economia" e a "política" (o Estado) fossem mundos separados! Como se pudesse existir um "poder econômico" que não fosse um poder de coerção exercido por uma classe sobre uma outra (no caso, os trabalhadores sobre a burguesia)! Como se os 200.000 homens armados constituíssem um "poder econômico", indiferente à reconstrução do "exército republicano" (burguês), da "polícia republicana"! . . . Com esse gênero de frivolidades, não se está longe do "poder estudantil nas universidades, poder operário na usina, etc.", e poder de Estado policial no Eliseu, dos C.R.S. em suas casernas...
Mas no número 37 de Noir et Rouge, da lavra de um outro militante espanhol, pode-se ler o seguinte:
"Se se tratasse apenas da revolução, a própria existência do governo teria sido, não um fator favorável, mas um obstáculo a destruir; ora, tínhamos que enfrentar as exigências de uma guerra violenta, com complicações internacionais, e estávamos ligados aos mercados internacionais e às relações com um mundo estatizado. E para a organização e a direção dessa guerra, nas condições em que nós nos encontrávamos, não dispúnhamos do organismo que teria podido substituir o velho aparelho governamental." (p. 23).
Resumindo, os anarquistas podem fazer a revolução em "boas condições" — condições pacíficas — mas não nas condições reais, as da guerra civil (as de toda revolução real). Eles não dispõem do "organismo" necessário!
O "organismo" que lhes falta, é a doutrina marxista — é o programa marxista do poder dos conselhos operários.
É evidente que o Estado operário — todo estado operário — pode degenerar. Como a URSS mostrou, essa degenerescência pode, evidentemente, tomar proporções monstruosas. Todavia, será necessário lembrar ainda que as condições da degenerescência da U.R.S.S. — isolamento do Estado operário num país atrasado, onde o proletariado, inculto, constituía uma pequena minoria da população — não podem mais se reproduzir, que as perspectivas que se abrirão à classe operária vitoriosa na Europa ocidental serão incomparavelmente mais favoráveis em países onde a classe operária, possuindo poderosas tradições de organização, constitui a maioria da população — onde as bases materiais do Estado operário serão, desde o começo, incomparavelmente mais elevadas — onde, ademais, o isolamento duradouro da revolução, após uma primeira vitória, é altamente inverossímil?
Certamente todo Estado operário comportará, devido ao fato de ser, ao mesmo tempo, segundo a expressão de Lenin, o Estado burguês sem burguesia, tendências burocráticas, um perigo de degenerescência.
Teria sido necessário, por isso, renunciar, em maio de 68, a levantar, com o comitê central da greve, a força concentrada do proletariado para o assalto ao poder burguês? É por essa razão que nós marxistas fomos os únicos a lançar essa palavra de ordem? Não está claro que renunciar ao poder dos Conselhos é renunciar a abater o Estado burguês?
Façamos, a esse respeito, justiça a algumas bobagens, "Um partido no poder e os outros na prisão", esta fórmula nunca fez parte dos princípios do bolchevismo, muito ao contrário. Os bolchevistas só usaram a repressão contra os partidos pequeno-burgueses em defesa própria, porque estes, colaborando com os brancos, combatiam, armados o poder soviético. Será necessário lembrar que o primeiro governo soviético, logo após a revolução de outubro, era um governo de coalizão entre bolchevistas e socialistas revolucionários de esquerda? Que não teria sido mantido pelos bolchevistas se os menchevistas não estivessem associados a eles? E que esta coalizão não foi rompida pelos bolchevistas, mas por seus parceiros?
Acontece que as medidas preconizadas por Lenin (seguindo Marx) contra as tendências burocráticas — revogabilidade a todo momento dos eleitos por seus eleitores, limitação do salário dos funcionários, os do governo inclusive, ao salário de um operário, etc. — podem-se revelar insuficientes.
Esta é uma das razões pelas quais — se bem que, nas condições objetivas de uma derrota do proletariado em escala internacional, nada teria podido impedir a burocracia na URSS de tornar o poder — nós, marxistas, revisando nesse ponto uma das 21 condições da I.C. sublinhamos, desde 1946, que os sindicatos deviam conservar sua autonomia, não somente com relação ao Estado operário (o que Lenin havia pedido desde 1920 — 21), mas também com relação ao partido marxista revolucionário.
Acontece também, por outro lado, que as massas, após a experiência do stalinismo, darão prova, quando de próximas vitórias da revolução, de uma vigilância incomparavelmente maior com respeito a toda manifestação de burocratismo, mesmo embrionário.
Mas acontece sobretudo que a pretensão de abolir o Estado por decreto é da mesma natureza idealista, voluntarista, que a pretensão de instaurar a "igualdade" por decreto (ou abolir a religião inscrevendo nos cemitérios "a morte é um sono eterno"). Repitamos: renunciar a combater pelo poder dos conselhos operários, pela ditadura do proletariado, é renunciar a lutar pela revolução socialista.
Sobre a necessidade de uma organização da vanguarda proletária o mesmo infantilismo, mesclado de considerações morais, parece presidir às concepções dos anarquistas — isso não impedindo, naturalmente, que constituam, com razão, organizações como as outras tendências do movimento operário.
É assim que Noir et Rouge escreve (n.º 18): "Criar a organização antes de criar o homem anarquista é o mesmo que construir uma casa começando pelo teto". Como se criará o "homem anarquista" na sociedade capitalista? Isso não nos dizem. Esclarecem somente que há "elementos éticos sem os quais parece vão construir qualquer organização, seja ela qual for". Esses "elementos éticos" etc., isto tudo, consiste em se perguntar se "um anarquista pode ser amigo de um fascista" e coisas desse gênero. Nesse nível, não há grande coisa a acrescentar. Para os marxistas, a organização não tem fundamentos "éticos", mas, antes, fundamentos políticos: seu programa.
Talvez seja mais interessante considerar de que modo Cohn-Bendit vê as relações entre a ação espontânea das massas e a intervenção de uma organização revolucionária, no caso típico da ocupação da Sud-Aviation Bouguenais em 14 de maio, começando a greve geral. Para os honoráveis Bensaid e Weber, a questão é simples, assim como para a totalidade da "grande" imprensa: não foi aí que começou a greve geral.
Para Cohn-Bendit, o problema é mais complexo. Ele escreve, na página 71:
"Uma vez decretada (?) a greve geral, um novo passo adiante (sublinhado por nós) foi dado com a ocupação da Sud-Aviation em Nantes".
Depois na página 98:
"Terça-feira 14, tarde da noite, os ocupantes da Sorbonne tomam conhecimento de que a usina Sud-Aviation de Nantes está ocupada; e esse movimento, sempre espontâneo (sublinhado por nós), crescerá continuamente".
Finalmente, na página 172:
"Desde o 14 de maio, a usina Sud-Aviation de Nantes está ocupada e o seu diretor preso em seu escritório... A seção F. O. compreende numerosos militantes esquerdistas. A União de-partamental desse sindicato é aliás famosa por seu esquerdismo há já alguns anos e opõe-se à orientação nacional-reformista e integracionista da F.O. Não é casual, portanto, que a usina Sud-Aviation de Nantes, e não uma outra qualquer, tenha entrado em greve em primeiro lugar".
Adivinha se puderes e escolhe se ousares! pensará o infeliz leitor do estimado vermelho. O referido leitor, todavia, não terá a honra de saber quais podem ser esses pretensos "esquerdistas" da Sud-Aviation. Isso não lhe concerne.
O caso da ocupação da Sud-Aviation é, entretanto, um exemplo notável do que pode, numa situação favorável, a intervenção de uma organização revolucionária, que tem feito, durante anos e anos, sobre a base do programa marxista e de palavras de ordem, da tática daí deduzida em cada etapa, um trabalho paciente, sistemático, perseverante.
Mas nos é necessário ainda abrir aqui um parêntese a propósito da relação que existe entre uma situação revolucionária e o partido revolucionário.
Abramos na página 166 o livro já citado de Bensaid e Weber; esses dois gentlemen escrevem aí:
"Falou-se muito em maio de situação revolucionária, misturando-se ao acaso das tribunas as noções de crise, condições, situação revolucionárias. Não basta, para escolher seu limite, fotografar uma situação que indique somente vacância de um poder.
"Para julgar mais serenamente o caráter da situação, é útil mesmo com o risco de passar por arqueo-marxista, referir-se a Lenin e aos famosos critérios enunciados na "Falência da Segunda Internacional". Neste texto, uma situação é considerada revolucionária quando se reúnem quatro condições:
"Em que medida esses fatores estavam presentes em maio?"
E eles concluem naturalmente, após longos desenvolvimentos, que, na medida em que não havia "força revolucionária organizada", "a situação continuava pré-revolucionária" (p. 177). Portanto a classe operária não devia lutar pelo poder. O que permite não explicar porque eram contra a palavra de ordem do Comitê central da greve (a situação, vejam vocês, não era revolucionária — nós também não, aliás) e ironizar os "arqueo" que exigiam que as organizações operárias chamassem, em 30 de maio, um milhão de trabalhadores ao Eliseu. Compreende-se o que os incomoda. Assim como que nossos dois gentlemen também não são arqueo-marxista; são neo-marxistas e fabricam um neo-Lenin à sua conveniência. É inútil procurar, na "Falência da Segunda Internacional", as quatro condições citadas. Ao contrário, vamos achar aí as linhas que se seguem, e que vale a pena citar por extenso:
"Para um marxista, está fora de dúvida que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária leva à revolução. Quais são, num sentido geral, os sinais da situação revolucionária? Não nos enganamos, certamente, ao indicar os três principais sinais, que são os seguintes: 1º) Impossibilidade para as classes dominantes de conservarem sua dominação sob uma forma não-modificada; tal ou qual crise da "cúpula", crise da política da classe dominante, que cria uma fissura pela qual o descontentamento e a indignação das classes oprimidas abrem um caminho. Para que a revolução estoure não basta de ordinário que a "base não queira mais" viver como antes, mas importa ainda que a "cúpula não o possa mais". 2º) Agravação, maior que a ordinária, da miséria e da desgraça das classes oprimidas. 3º) Acentuação marcada, pelas razões indicadas acima, da atividade das massas, que, em período de "paz", deixam-se pilhar tranqüilamente, mas que, em período tumultuado, são chamadas, tanto pelo conjunto da crise como pela própria "cúpula" para uma ação histórica independente.
Sem essas mudanças objetivas, independentes da vontade, não somente de tais ou quais grupos e partidos, mas ainda de tais ou quais classes, a revolução é, em regra geral, impossível. A soma dessas mudanças objetivas denomina-se justamente uma situação revolucionária. Esta situação existia em 1905 na Rússia e em todas as épocas de revolução no Ocidente; mas ela existia também nos anos 60 do último século na Alemanha; assim como em 1859-61 e 1879-80 na Rússia, ainda que ai não tenha havido revolução nesses momentos. Por quê? Porque a revolução não surge de toda situação revolucionária, mas somente no caso em que a todas as mudanças objetivas acima enumeradas vem juntar-se uma mudança subjetiva, a saber: a capacidade da classe revolucionária para conduzir ações revolucionárias de massa bastante vigorosas para quebrar (ou prejudicar) o antigo governo, que não "cairá" jamais, mesmo em época de crise, se não se o "faz cair".
Esta situação, manter-se-á ainda durante muito tempo e até que ponto vai se agravar? Levará a uma revolução? Ignoramos, e ninguém pode sabê-lo. Somente a experiência do desenvolvimento do estado de espirito revolucionário e da passagem da classe avançada, o proletariado, à ação revolucionária, poderá mostrá-lo. Não se trata neste caso, nem de "ilusões", em geral, nem de sua refutação, pois nenhum socialista, em nenhuma parte, jamais garantiu que a revolução será engendrada precisamente pela atual guerra (e não pela próxima), pela situação revolucionaria presente (e não pela de amanhã). Trata-se aqui do dever mais incontestável e mais essencial de todos os socialistas: o dever de mostrar às massas a presença de uma situação revolucionária, de explicar sua extensão e profundidade, de despertar a consciência revolucionária do proletariado, de ajudá-lo a passar à ação revolucionária e a criar organizações conformes à situação revolucionária a fim de trabalhar nesse sentido".
A relação entre a situação revolucionária objetiva e a vanguarda, entre as massas e o elemento consciente, está tão claramente exposta no texto acima que não há grande coisa mais a acrescentar. Sim, a situação era revolucionária em maio de 68. Eis porque teria sido necessário definir as palavras de ordem e uma estratégia de luta das massas pelo poder. Era, aliás, a única maneira de avançar na via da construção do partido revolucionário, na via da reconstrução da Quarta Internacional, da organização mundial, instrumento indispensável da vitória final da revolução socialista.
É isso que nossos dois neo-marxistas não arriscam fazer; falta-lhes apenas um programa, uma bandeira e uma coluna vertebral. Dizem, certamente, que o programa marxista, o Programa de Transição, está caduco; não sabem, entretanto, o que é necessário colocar em seu lugar, nem se preocupam com isso; o empirismo é tão mais confortável! Sabem pelo menos uma coisa: que não se arriscam a enfrentar as dificuldades de uma situação revolucionária — porque é necessário, para isso, uma "força revolucionária organizada" e eles não têm a menor chance de construir uma!
Voltemos ao problema do partido, e às críticas anarquistas da noção de partido revolucionário. Faz-se necessário sublinhar que, como em relação ao Estado, o problema é falseado pelo stalinismo. Quando se fala desse partido, pensa-se imediatamente num partido monolítico que mantém com as massas as mesmas relações de um estado-maior com seu exército.
Nada é mais estranho ao marxismo. A história do partido bolchevista (ver sobre esse tema o livro de P. Broué), quando ainda não havia sido destruído pela contra-revolução burocrática, foi a de uma luta constante de tendências e facções; e não podia ser de outra forma para uma organização que, submetida a todas as pressões das forças de classe hostis, mas armada com o método marxista, lutava para conquistar a direção do proletariado e conduzi-lo ao assalto do poder burguês.
Tiramos lições dessa experiência, a Organização Comunista Internacionalista inscrevera em seus estatutos, não somente o direito de tendência, mas o direito de fração. Seria esse o motivo pelo qual São Marcelino a dissolveu?
A vida de uma organização revolucionária autêntica não tem nada a ver com a de sua caricatura burocrática. No 2º Congresso da Internacional comunista, estavam presentes os representantes da C.N.T. espanhola. Lenin e Trotsky desejavam sua adesão à Internacional, sem lhe colocar nenhuma condição quanto à sua ideologia anarquista. Ainda uma vez aqui foram os anarquistas que romperam com os "sectários" marxistas, e não o inverso.
O partido revolucionário, certamente, pode degenerar, como o Estado operário. Forças sociais hostis ao proletariado podem destruir o partido do proletariado. É necessário concluir disso que o proletariado pode dispensar uma organização que resume e traduz em termos de consciência, em seu programa e sua ação, o balanço da experiência de um século e meio de lutas operárias?
Os marxistas, tais quais somos, consideraram que esse programa é o programa de transição da Quarta Internacional. Consideram que esse programa é a expressão das tarefas da revolução proletária em nossa época, qual seja, a época da agonia do capitalismo. Estão prontos a debatê-lo, no quadro da democracia operária, com todas as tendências proletárias que combatam, efetivamente, a ditadura do capital. Isto quer dizer que crêem que a luta de classes não tem mais nada a lhes ensinar? Somente um louco para pensar assim, agora que se aproximam os maiores combates revolucionários da história.