Terceiro Texto

Charles Bettelheim

Novembro de 1971


Primeira Edição: Monthly Review Vol. 23 Nº. 6, Novembro 1971

Fonte: Portucalense Editora Porto, setembro 1971

Tradução: Alberto Saraiva

Transcrição: Graham Seaman

HTML: Fernando Araújo.


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O texto de Paul Sweezy indica que chegámos a acordo quanto ao essencial das respostas a dar aos principais problemas explicitamente abordados na nossa correspondência anterior. Isto confirma que é possível superar divergências iniciais, mesmo sobre problemas complexos, desde que se parta dessa base comum que é a concepção marxista da história, da economia e da política e se proceda a uma discussão suficientemente ampla.

Bem entendido, a discussão travada entre Paul Sweezy e eu próprio desde Outubro de 1968 levou-nos a levantar «novos» problemas: os problemas que, na realidade estavam por trás das divergências iniciais de pontos de vista.

— A propósito de algumas perguntas:

As perguntas que me são feitas por Paul Sweezy no seu último texto parecem-me poder resumir-se do seguinte modo:

Partindo de um ponto que aceitamos em comum — a marcha para o socialismo pressupõe que o proletariado esteja no poder — P. Sweezy pergunta:

  1. se, a meu ver, o problema da natureza de classe do poder depende exclusivamente da política prosseguida pelo Governo e pelo Partido;
  2. se, para que a teoria do poder proletário tenha um valor explicativo, não seria necessário dispor de um «método independente» para estabelecer a identidade da classe no poder.

A estas perguntas Paul Sweezy acrescenta outras duas:

  1. Quais são as modalidades e as etapas do crescimento de uma nova burguesia de Estado?
  2. Em que condições se pode esperar uma vitória do proletariado e em que condições se pode esperar uma vitória da nova burguesia de Estado?

Parece a Paul Sweezy que as dificuldades levantadas por estas perguntas estão por sua vez ligadas à dificuldade de precisar o que se entende por «proletariado» no «tipo de países subdesenvolvidos em que se verificou a maior parte das revoluções anticapitalistas do século XX». Com efeito, Paul Sweezy pensa que a teoria «clássica» de Marx e Engels tinha sido elaborada em função do papel histórico que, aos olhos dos fundadores do socialismo científico, o proletariado dos países industriais devia desempenhar no processo revolucionário. Ora, acrescenta ele, com excepção da União Soviética, tal proletariado não existia nos países que conheceram uma revolução socialista. Mais ainda: mesmo na Rússia, o proletariado, fortemente destruído e disperso em consequência das condições da guerra civil e da invasão estrangeira, não teve a possibilidade de levar a bom termo as suas tarefas de direcção económica e política.

Não me proponho discutir neste momento o peso real da classe operária nos diferente países que conheceram uma revolução socialista nem os efeitos da guerra civil na U.R.S.S. sobre o poder proletário; em contrapartida, julgo que é muito importante fornecer elementos de resposta às outras perguntas acima enumeradas.

Evidentemente, a importância e a amplitude das perguntas não permitem uma resposta tão pormenorizada como o mereciam, pelo menos num artigo de revista: seria preciso um livro. No entanto, é possível e útil enunciar resumidamente certas respostas. As teses desenvolvidas por P. Sweezy na segunda parte do seu último texto ajudam, aliás, a enunciar essas respostas.

— Sobre a natureza de classe de um poder saído da revolução:

Penso que o que permite determinar a verdadeira natureza de classe de um poder que se estabeleceu de forma revolucionária graças à luta das massas trabalhadoras, de um poder que expropriou as antigas classes possuidoras e que se reclama da classe operária, é a natureza dos interesses de classe que esse poder serve, o que remete para as relações concretas desse poder com as massas trabalhadoras, portanto, para as formas de existência do poder do proletariado.

  1. A natureza dos interesses de classe que o poder serve. A análise deve responder, em termos de classe, à pergunta: «A quem serve o poder?» Serve os interesses presentes e futuros dos produtores directos e, em primeiro lugar, da classe operária; ajuda os trabalhadores a transformar as relações sociais de forma revolucionária, para que eles dominem cada vez mais as suas próprias condições de existência? Ou servirá os interesses de uma minoria de não-produtores, proclame-se ou não essa minoria «dedicada à causa do socialismo»?
  2. As relações concretas que os órgãos do poder mantêm com as massas trabalhadoras. Actualmente, à luz da experiência histórica e da análise teórica referente a essa experiência, é evidente que só se pode falar de um poder proletário se o poder, do ponto de vista das suas práticas reais, comportar características específicas e se o partido dirigente seguir uma linha proletária.

1. AS CARACTERÍSTICAS DE UM PODER PROLETÁRIO

Face às confusões que durante muito tempo existiram, e que ainda não desapareceram, é preciso lembrar que a ditadura do proletariado tem essencialmente como efeito permitir o estabelecimento de determinadas das condições políticas requeridas para que os produtores directos possam dominar colectivamente, quer dizer, à escala social, os seus meios de produção e as suas condições de existência. É preciso lembrar também que este domínio não é de modo algum assegurado apenas pela estatização dos meios de produção e pela «planificação económica». O que comanda este domínio, que só se adquire através de uma longa luta de classes, é antes de mais, mas não unicamente, a detenção do poder pelos produtores. Pode recordar-se aqui o que Lenine escrevia em 1917:

«A questão do poder é certamente a questão mais importante de qualquer revolução. Qual é a classe que detém o poder? Este é o fundo do problema... a questão do poder não pode ser iludida nem relegada para último plano... é a questão fundamental, aquela que determina todo o desenvolvimento da revolução, a sua política externa e interna.»(1)

O domínio dos trabalhadores sobre as suas condições de existência exige, antes de mais nada, que o antigo aparelho de Estado seja destruído e substituído por um aparelho radicalmente diferente. Se o novo aparelho de Estado é semelhante, no essencial, ao antigo, só poderá assegurar a reprodução das mesmas relações sociais.

O conteúdo fundamental da diferença entre um aparelho de Estado proletário e um aparelho de Estado burguês é a não-separação do aparelho de Estado proletário em relação às massas, a sua subordinação a estas, portanto, o desaparecimento daquilo a que Lenine chamava «um Estado no sentido próprio»(2) e a sua substituição pelo «proletariado organizado em classe dominante».(3)

Para que os produtores directos possam dominar as suas condições de existência é necessário que tenha desaparecido o antigo tipo de aparelho de Estado, que concentra em si mesmo o essencial das decisões políticas e dos meios de execução e dispõe de forças repressivas autónomas que não hesita em utilizar contra as massas trabalhadoras.

Sem cair no formalismo dos «critérios abstractos» estabelecidos à margem de qualquer consideração de tempo e de espaço, pode dizer-se que um sinal extremamente importante do carácter não proletário do poder, ou de que o poder já perdeu largamente o seu carácter proletário, é a existência de um aparelho de Estado colocado acima das massas e que age de forma autoritária em relação a elas.

O carácter significativo deste índice da natureza não proletária do poder é ainda reforçado se as relações de subordinação das massas em relação ao aparelho de Estado são redobradas por relações análogas entre as massas e o partido dirigente (mais adiante volto a este ponto).

Quando o aparelho de Estado está separado das massas e colocado acima delas e o partido dirigente, em vez de lutar contra esta situação, contribui para a reforçar, estão reunidas as condições objectivas para que se reproduzam relações políticas de opressão, no interior das quais se podem também reproduzir relações de exploração. Quando um sobretrabalho é imposto aos produtores directos pelos não-produtores e quando a utilização do produto desse sobretrabalho não é controlado pelos produtores mas decidido à margem deles, mesmo que seja através de um «plano económico», tais relações de exploração existem. Também é sabido que pode haver exploração mesmo que o produto do sobretrabalho não seja consumido individualmente pelos que controlam o seu emprego. Aliás, o aspecto principal da exploração capitalista é o de ser uma exploração efectuada com vista à acumulação e não ao consumo.

Em resumo, se é um aparelho de Estado separado das massas que detém os meios de produção (devido à estatização destes) e se, além disso, este aparelho não está submetido ao controlo dum partido ligado às massas e que ajude estas a lutar pelo controlo do emprego dos meios de produção, estamos em presença de uma estrutura de relações que reproduz a separação dos produtores directos dos seus meios de produção. Nestas condições, se a combinação das forças de trabalho e dos meios de

produção se realiza através de uma relação salarial, isto significa que as relações de produção são relações capitalistas e que os que ocupam postos de direcção no aparelho de Estado central e nos aparelhos a ele ligados constituem um capitalista colectivo, uma burguesia de Estado.

Como incidentalmente atrás observámos, seria dogmático e formalista tentar propor um critério abstracto e isolado do carácter proletário do Estado sem tomar em consideração as condições históricas concretas e, particularmente, a natureza das relações entre o Estado e o partido dirigente, as características deste partido e o sentido em que se dirige a sua acção. É por isso que não existe um «modelo único» da não-separação, quer dizer, da unidade entre o aparelho de Estado e as massas, mas apenas formas concretas correspondentes às condições históricas da luta de classes.

Os exemplos históricos de surgimento de tais formas de unidade são constituídas pela Comuna de Paris, pelos Sovietes de 1917 na Rússia e pelas diversas formas de poder popular na China (tanto as formas «civis» como as formas «militares»: o Exército Popular de Libertação é, sem dúvida, o primeiro exército não separado do povo mas, pelo contrário, nele integrado e ao seu serviço).

A experiência histórica mostra que, devido às relações ideológicas dominantes, produto de séculos de opressão e de exploração e que se reproduzem com base numa divisão social do trabalho que não pode ser imediatamente revolucionarizada, as formas políticas que permitem aos produtores directos organizarem-se eles próprios como classe dominante tendem espontaneamente, se não se travar uma luta sistemática contra essa tendência, a transformar-se no sentido de uma «autonomização» dos órgãos do poder, isto é, no sentido de uma nova separação entre as massas e o aparelho de Estado, e, portanto, da reconstituição de relações políticas de opressão e de relações económicas de exploração. Por isso, durante todo o período de transição, há uma luta entre as duas vias: a via socialista e a via capitalista.

Dizer que uma formação social em transição segue a via socialista é dizer que ela está empenhada num processo de transformação revolucionária que permite às massas trabalhadoras dominarem cada vez mais as suas condições de existência, ou seja, libertarem-se cada vez mais. Dizer que determinada formação segue uma via capitalista é dizer que ela está empenhada num processo que submete cada vez mais as massas trabalhadoras às exigências de um processo de reprodução que elas não controlam e que, em última análise, só pode portanto servir os interesses de uma minoria, a minoria que utiliza o aparelho de Estado para estabelecer e consolidar as condições da sua própria dominação.

A via seguida por uma formação social é sempre um produto da luta de classes. Esta opõe os que lutam pelo triunfo da via socialista aos que lutam pelo triunfo da via capitalista. Os primeiros são constituídos pelo proletariado e pelo conjunto das classes populares a ele associadas; os segundos são constituídos pelo conjunto das forças sociais burguesas, tenham elas ou não pertencido à antiga burguesia ou estejam elas ou não «conscientes» do facto de que a linha política que defendem conduz à perda do poder pelo proletariado. Nas condições de estatização dos meios de produção, o local privilegiado de constituição ou de reconstituição das forças sociais burguesas é o próprio aparelho de Estado, as cúpulas do partido dirigente e as dos aparelhos ideológicos e económicos. Para que o proletariado não deixe de ter o papel dirigente é necessário que, na prática, conserve sempre a iniciativa nas frentes ideológicas e políticas. Para isso, precisa de continuar unido e estreitamente associado ao conjunto das classes populares igualmente interessadas no socialismo. Estas condições só podem ser preenchidas se o proletariado dispuser de um aparelho ideológico e político próprio: um partido marxista-leninista. E aqui surge uma segunda categoria de problemas.

2. AS CARACTERÍSTICAS DO PARTIDO DIRIGENTE

O núcleo destes problemas é o seguinte: para ajudar o proletariado e as classes populares a ele associadas a avançarem na via socialista não basta que o partido marxista-leninista, que guiou o proletariado na conquista do poder, se conserve aparentemente «o mesmo»: é necessário que ele não mude realmente de carácter de classe» portanto, é necessário que continue a ser um partido proletário; com efeito, não pode existir ditadura do proletariado se o partido dirigente não é o da classe operária.

O carácter proletário do partido não releva evidentemente da «auto-proclamação», da afirmação pelo próprio partido da sua vontade de «construir o socialismo» ou da sua «determinação de ser fiel ao marxismo-leninismo» ou a um «ideal revolucionário». Este carácter só pode ser determinado por uma análise concreta que revelará se as práticas políticas e ideológicas do partido dirigente são ou não práticas proletárias.

A experiência histórica permite, a partir de agora, caracterizar melhor a natureza de classe das práticas políticas e ideológicas que um partido dirigente desenvolve. Esta experiência, iluminada pela teoria marxista, leva-nos a concluir que o carácter de classe da prática ideológica e política de um partido se manifesta na forma das suas relações com as massas, nas relações internas do partido e nas relações deste com o aparelho de Estado.

Se as relações concretas entre o partido dirigente e as massas não são as que correspondem a uma prática proletária e se, no próprio partido, as relações autoritárias prevalecem sobre a discussão e a luta ideológica, é inevitável que as concepções teóricas efectivas do partido se afastem cada vez mais do conteúdo revolucionário do marxismo. Não pode haver concepções teóricas justas na ausência de uma prática política correcta. Por conseguinte, para que os princípios marxistas-leninistas a que se refere um partido dirigente continuem vivos e não «funcionem» como um dogma morto, desligados da vida, é necessário que o partido e os seus membros não desenvolvam práticas autoritárias, que submetam à crítica os que se comprometem em tais práticas e que façam constantemente apelo à crítica das massas.

Em resumo, um partido dirigente só pode ser um partido proletário se não pretender comandar as massas e se, pelo contrário, for o instrumento das suas iniciativas. Isto só é .possível se ele se submeter efectivamente à crítica das massas, se não pretender impor-lhes o que elas «devem» fazer, se partir daquilo que as massas estão aptas a realizar e que auxilia o desenvolvimento de relações socialistas. Para auxiliar este desenvolvimento, o partido deve saber reconhecer o que é que vai no sentido deste; é muito particularmente para isto que a teoria marxista-leninista deve servir.

O papel de um partido proletário, portanto, é ajudar as massas a realizarem elas próprias aquilo que é conforme aos seus interesses fundamentais. Em cada etapa de uma luta ininterrupta pela transformação das relações sociais, o partido deve guiar as massas a avançarem o mais longe possível na via das iniciativas que permitem consolidar e desenvolver relações sociais proletárias, tendo em conta os limites objectivos e subjectivos do momento e do lugar.

Um partido proletário não pode pretender «agir em vez» das massas. Estas, com efeito, devem transformar-se elas próprias ao mesmo tempo que transformam o mundo objectivo, e só podem transformar-se através da sua própria experiência das vitórias e dos fracassos. Só assim podem as massas conquistar uma consciência, uma vontade, uma capacidade colectivas, ou seja, a sua liberdade de classe.

Portanto, uma política proletária — única garantia da conservação do poder pelo proletariado — deve assegurar que as massas realizem elas próprias aquilo que objectivamente é do seu interesse fazerem, isto na medida em que estejam subjetivamente prontas para o fazer. Toda a violação da consciência e da vontade própria das massas constitui um passo atrás. São passos atrás deste tipo que podem levar à perda do poder pelo proletariado.

Por conseguinte, o papel do partido consiste não só em definir objectivos justos mas sem discernir o que é que as massas estão aptas a fazer e levá-las para a frente sem jamais recorrer à coerção mas lançando palavras de ordem e directivas de que as massas possam apoderar-se, elaborando uma táctica e uma estratégia adequadas e ajudando as massas a organizarem-se.

É em função da exigência de tais relações entre o partido e as massas, é em função de tais práticas que é essencial, como escreve Mao Tsé-tung, que «a ditadura não se exerça no seio do povo» e que as massas populares «gozem da liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de desfile, de manifestação, de crença religiosa e de outras liberdades».(4)

Dizer que a ditadura não se exerce no seio do povo é dizer também que ela não se exerce sobre a pequena burguesia e, particularmente, sobre as camadas menos ricas do campesinato médio. O proletariado e o seu partido devem conduzir a pequena burguesia para a via do socialismo, que é a própria via do seu interesse real, mas não devem exercer uma coerção sobre ela. Trata-se é de conduzir uma luta ideológica que permita, segundo uma outra fórmula de Mao Tsé-tung, «arrastar as ideias pequeno-burguesas na esteira das ideias proletárias».

Estas são algumas das características das práticas políticas e ideológicas que manifestam que um partido é, ao mesmo tempo, um partido dirigente e um partido proletário, quer dizer, um partido que dirige as massas mas que não comanda, um partido que centraliza as iniciativas das massas para as ajudar a travar batalhas políticas, unificadas. Para o exercício da ditadura do proletariado é necessário um partido que proceda deste modo, pois é graças à sua ajuda que o proletariado e as classes populares podem tornar-se cada vez mais senhores das suas condições de existência, avançando no caminho da sua liberdade colectiva, o que só é possível na base da sua unidade, mas de uma unidade realmente querida e não imposta.

3. O PARTIDO E O APARELHO DE ESTADO

É necessário insistir aqui nos problemas levantados pelas relações entre o partido e o aparelho de Estado, pois a natureza destas relações constitui uma das características essenciais da ditadura do proletariado. Com efeito, a ditadura do proletariado exige que o aparelho de Estado esteja subordinado ao .partido proletário. Só esta subordinação permite lutar contra a tendência para a autonomização do aparelho de Estado, evitar a via capitalista e assegurar o deperecimento do Estado, na condição de que as relações entre o partido e as massas sejam correctamente articuladas.

O aparelho dominante do poder proletário, portanto, é o partido marxista-leninista e não o aparelho de Estado. O partido marxista-leninista é o verdadeiro instrumento da ditadura do proletariado e a forma essencial de organização do proletariado em classe dominante.

O papel decisivo que cabe ao partido está relacionado com o lugar dominante ocupado pela ideologia proletária de que o partido é portador; por isso, este papel não se exerce apenas em relação ao conjunto dos outros aparelhos sociais mas também em relação às massas trabalhadoras que ele ajuda a transformarem-se, isto é, a apropriarem-se da concepção proletária do mundo, concepção de que, no início, as massas estão parcialmente separadas pela ideologia burguesa. O partido proletário assume o seu papel fazendo penetrar a ideologia proletária nas massas graças à ajuda que lhes dá nas lutas por elas travadas e tirando ele próprio lições dessas lutas, aprendendo, portanto, junto das próprias massas.

O partido proletário é assim o instrumento de uma unificação das massas, não só da sua acção mas também da sua ideologia.

O papel efectivamente dominante dos trabalhadores cresce à medida que eles fazem inteiramente sua a ideologia proletária e que a desenvolvem. É assim que se criam, no seio das próprias massas, as condições do desaparecimento do conjunto das relações sociais burguesas. O papel que um partido dirigente marxista-leninista deve cumprir exige que ele dê sempre o primado à luta de classes e que faça da ideologia proletária o factor dominante dessa luta. Na ausência de um partido que proceda deste modo, a revolucionarização das relações objectivas e subjectivas é impossível e é inevitável o regresso à dominação da burguesia.

O papel dominante do partido e a natureza ideológica e política deste papel determinam o lugar essencial que a luta ideológica de classe ocupa no seio do partido e a necessidade de um certo «estilo de direcção», de um estilo de direcção que precisamente se pôde qualificar de «proletário». Só este estilo de direcção permite progredir na via do socialismo, não pela coerção (que jamais faz progredir nesta via) mas pela ajuda ideológica e política prestada ao conjunto dos trabalhadores. Nestas condições, são efectivamente estes últimos que progridem na via socialista, e esta é a única forma de avançar nesta via. É um dos aspectos daquilo a que no Partido Comunista Chinês se chama uma «linha de massa».

A este respeito não será inútil acrescentar que, se o conceito de «linha de massa» está intimamente ligado à prática do Partido Comunista Chinês, os fundamentos teóricos que permitem construir este conceito encontram-se já em Marx e Lenine. Não obstante, é graças à experiência da revolução chinesa e às concepções de Mao Tsé-tung que se pode hoje pensar teoricamente o conceito de «linha de massa» e que se pode compreender que é através da aplicação da linha de massa que um partido dirigente é o instrumento da ditadura e da democracia proletárias, pois a existência do poder proletário joga-se, em última análise, ao nível das relações do partido com as massas.

A questão de um «método independente».

Não me parece possível julgar da natureza proletária ou não de um poder político instaurado a seguir a uma revolução por um «método independente» daquele que se acaba de indicar. Com efeito, o poder do proletariado exerce-se antes de mais sobre uma base económica que a detenção do poder político, por si só, não basta para transformar de alto a baixo.

Depois de uma revolução proletária, a despeito de todas as «nacionalizações» ou «estatizações», a maior parte das antigas relações sociais subsistem, pois não podem ser directamente «abolidas». A eliminação dessas relações não depende de «decisões» que poderiam ser tomadas na «cúpula» e imediatamente aplicadas. Essa eliminação só pode ser o resultado de um processo revolucionário que se desenvolve durante um período histórico, de um processo ao longo do qual o conjunto das relações sociais é «revolucionarizado», ao mesmo tempo que são «revolucionarizados» os que participam nesse processo. Em particular, o domínio dos produtores sobre as suas condições de produção e de existência exige uma transformação crescente da divisão social do trabalho, a fim de que progressivamente seja suprimida a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, a distinção entre as tarefas de execução e as tarefas de direcção e, portanto, seja também reduzido, e depois eliminado, o papel dos técnicos colocados «acima» dos trabalhadores.

Enquanto se processam estas transformações, aqueles que desempenham tarefas de direcção e tarefas «técnicas», os quadros políticos e os técnicos, devem viver no seio das massas, da mesma maneira que estas, estar submetidos ao seu controlo e participar no trabalho manual.

Mas a transformação radical das relações dos trabalhadores entre si e com os seus meios de produção, o desaparecimento total das relações de produção burguesas e da divisão social do trabalho, não pode ser produto «espontâneo» do «desenvolvimento das forças produtivas». Essa transformação só pode ser o resultado de uma longa luta de classes conduzida sob a ditadura do proletariado, de uma luta de classe que se desenvolva numa via correcta, o que exige que ela seja guiada pelas concepções marxistas-leninistas nas suas formas mais desenvolvidas, quer dizer, tal como hoje se apresenta tendo em conta os ensinamentos da revolução chinesa. Ainda aqui é o marxismo-leninismo como teoria e prática que desempenha um papel decisivo, e por isso é importante fazer ressaltar claramente em que é que consiste o carácter proletário do marxismo-leninismo.

O marxismo-leninismo como teoria do proletariado.

O marxismo-leninismo é a teoria do proletariado porque é a expressão teórica da existência do proletariado no modo de produção capitalista: o marxismo desenvolveu-se colocando-se do ponto de vista do proletariado, único ponto de vista a partir do qual é possível compreender o significado das lutas proletárias. Devem recordar-se aqui as palavras de Marx, que, ao analisar o alcance histórico da Comuna de Paris, declarava que, para a burguesia e para os que se colocam na posição desta, o sentido das lutas proletárias de classe é uma «esfinge», ou seja, um «enigma».

O marxismo e o leninismo partem não só das lutas proletárias de classe mas também de uma análise das contradições objectivas do modo de produção capitalista, do estabelecimento da especificidade da posição do proletariado neste modo de produção. Esta posição é a de uma classe produtora inteiramente desprovida de meios de produção, totalmente separada das suas condições de existência pelo processo de reprodução capitalista, de uma classe que só se pode libertar da exploração capitalista se suprimir não só o capitalismo mas todas as formas de exploração do homem pelo homem, destruindo totalmente as relações sociais existentes e substituindo-as por relações radicalmente novas.

A especificidade da posição do proletariado no modo de produção capitalista obriga-o, para se libertar, a desenvolver uma ideologia revolucionária radical. Com efeito, a libertação do proletariado da exploração e da opressão exige a sua radicalização ideológica, a sua adesão crescente a uma ideologia completamente revolucionária que é fundamentalmente a sua, diferente daquela a que a enorme pressão dos aparelhos ideológicos da burguesia tende permanentemente a submetê-lo.(5)

A ideologia proletária é a que corresponde à posição do proletariado no modo de produção capitalista; esta ideologia é o marxismo-leninismo, que, precisamente, se desenvolveu e se desenvolve a partir de uma análise da posição objectiva do proletariado, a partir de uma tomada em consideração das contradições no seio das quais se desenvolve espontaneamente a luta proletária de classe e das posições que espontaneamente toma o proletariado todas as vezes que as suas próprias lutas atingem uma certa intensidade.

É neste sentido muito preciso que o marxismo-leninismo é a teoria revolucionária do proletariado. É por esta razão que ele tem a capacidade de penetrar com uma velocidade avassaladora na classe operária todas as vezes que as contradições objectivas em que o proletariado é envolvido atingem uma certa acuidade. É também por esta razão que, todas as vezes que as lutas proletárias de classe atingem uma certa intensidade, o proletariado encontra por si mesmo formas de organização de massa que Marx e Lenine mostraram corresponderem ao papel revolucionário do proletariado: estas formas de organização são as da Comuna de Paris, dos Sovietes de 1905 e de 1917, dos Comités Revolucionários num grande número de países e nomeadamente na China durante a revolução cultural.

Ao mesmo tempo, a natureza das contradições em que o proletariado é envolvido explica que estas formas de organização, que podem designar-se pelo termo de «realização espontânea da ideologia proletária», sejam por si sós instáveis e frágeis, donde a necessidade da construção de um aparelho ideológico e político especificamente proletário, de um partido marxista-leninista portador da ideologia proletária. Só um tal aparelho permite, ao mesmo tempo, concentrar as iniciativas das massas que correspondem às exigências da libertação das classes dominadas de todas as formas de exploração e de opressão e permite que estas classes, através das lutas que travam, se apropriem da ideologia proletária de que a acção da burguesia tende permanentemente a separá-las. Como o sublinha Marx, é através das lutas revolucionárias e só através destas lutas que o proletariado consegue transformar-se a si próprio ideologicamente. Tala como ele escreve na Ideologia Alemã:

«...A revolução não é... necessária apenas porque não há outros meios de derrubar a classe dominante, mas ainda porque a classe que derruba a outra só por uma revolução pode conseguir desembaraçar-se de toda a velha mixórdia e tornar-se assim capaz de realizar uma nova fundação da sociedade.»(6)

O marxismo-leninismo é a teoria revolucionária do proletariado porque tira até ao fim as conclusões que a análise das lutas do proletariado e da posição deste no modo de produção capitalista impõe, quando nos colocamos do ponto de vista dos explorados e não do ponto de vista dos exploradores. O marxismo-leninismo pôde assim mostrar, ao mesmo tempo, o papel radicalmente revolucionário do proletariado e o carácter histórico mundial da revolução proletária, carácter este ligado ao desenvolvimento do modo de produção capitalista como um sistema mundial de exploração e de opressão de que os povos só à escala mundial podem definitivamente libertar-se.

— A teoria revolucionária do proletariado e as forças sociais e políticas da revolução.

A partir do que precede, pode abordar-se o seguinte ponto decisivo: uma vez que o marxismo-leninismo existe como teoria proletária revolucionária e como partido revolucionário que «realiza» esta ideologia e que a põe em prática, o alcance desta teoria não está de modo algum limitado apenas ao proletariado.

E é assim porque a revolução proletária não é uma revolução destinada a levar ao poder uma nova classe exploradora mas, pelo contrário, destinada a fazer desaparecer todas as formas de exploração e de opressão. Como o lembra Engels no prefácio de 26 de Junho de 1883 ao Manifesto Comunista, a revolução proletária, no seu desenvolvimento, não leva apenas à libertação do proletariado da exploração, ela liberta «toda a sociedade da exploração, da opressão e das lutas de classes». Este carácter específico da revolução proletária significa que, se esta revolução é tornada possível pela existência mundial do modo de produção capitalista e pela existência do proletariado, ela não diz respeito apenas ao proletariado, diz respeito a todos os explorados, todos os oprimidos e todos os que tomam posição pelo fim da exploração e da opressão.

Isto permite compreender por que é que uma revolução proletária pode muito bem triunfar mesmo em países em que a classe operária é numericamente fraca e por que é que esta revolução não deixa por isso de ser uma revolução proletária.

Com efeito, o carácter proletário de uma revolução tem muito mais a ver com o papel dominante desempenhado pela ideologia proletária e pelo partido portador dessa ideologia que com a amplitude «numérica» do proletariado. Por conseguinte, o papel dominante do proletariado na revolução é, antes de mais, um papel ideológico e político. O proletariado pode, portanto, ser a força ideológica e política dirigente da revolução mesmo quando não é a força numericamente determinante, quer dizer, quando são outras classes sociais, por exemplo, os camponeses pobres e médios, que constituem essas forças determinantes.

É preciso abordar aqui um problema importante, o da determinação do proletariado como classe durante a transição socialista. Este problema está ligado ao papel dominante da ideologia proletária durante essa transição.

A constituição do proletariado em classe dominante é o resultado de um processo histórico: o processo de apropriação pelo proletariado da sua própria ideologia. Este processo histórico exige a intervenção de um aparelho ideológico específico, o partido proletário, e é ele próprio efeito de um processo de lutas sociais, um processo de lutas pela transformação da sociedade e do mundo. Como se sabe, é através dessa luta que o proletariado se transforma a si mesmo unificando-se graças à sua própria ideologia, rejeitando cada vez mais a ideologia estranha que sobre ele pesa e dominando cada vez mais as forças materiais e sociais, transformando a natureza das forças produtivas graças à verdade da sua ideologia, essa verdade que lhe dá a força a partir do momento em que se apodera das massas. O proletariado, através das transformações que assim realiza, toma-se uma classe dominante que não domina nenhuma outra classe mas que se domina a si mesma.

A determinação do proletariado como classe dominante graças à apropriação da ideologia proletária é um processo que, antes de mais nada, diz respeito à classe operária, porque a ideologia proletária é precisamente a que corresponde à posição objectiva do proletariado no modo de produção capitalista. No entanto, desde que se esboça a ruptura com este modo de produção, a apropriação da ideologia proletária é um processo que diz respeito não só ao conjunto dos produtores directos mas também — precisamente devido ao carácter libertador da revolução proletária para toda a sociedade — aos agentes das outras práticas sociais, na condição de que eles renunciem completamente e totalmente aos interesses estreitos da sua classe de origem, lutem concreta e efectivamente pela vitória da revolução proletária e sejam permanentemente guiados pelas exigências da luta pelo socialismo e pelas concepções proletárias, que visam a supressão de tudo o que entrava o domínio pelos produtores directos das suas condições de existência, de tudo o que os separa dos seus meios de produção, de tudo o que os divide.

A determinação ideológica do proletariado como classe dominante significa que se podem incorporar no proletariado todos os que estão em posições proletárias de classe, na medida em que estejam inteira e completamente nessas posições. É assim que, numa formação social em transição para o socialismo, os que ocupam postos de direcção são proletários ou burgueses conforme são ou não comunistas no sentido mais completo da palavra, ou seja, completa e inteiramente colocados em posições proletárias. É pelo facto de esta posição de classe, não enraizada numa situação de classe inscrita no processo de produção, poder ser transformada pela luta ideológica de classe que esta luta reveste uma importância primordial e pode determinar a via em que a formação social evolui. É também pelo facto de a situação social efectiva, presente ou passada, a experiência da exploração, da opressão e da miséria facilitarem a adesão a uma posição proletária de classe que os camponeses pobres e os camponeses médios mais pobres constituem, a par do proletariado, a base social fundamental da ditadura do proletariado.

Com efeito, nas formações sociais em transição, além do proletariado e da burguesia, continuam a estar presentes, durante todo um período, outras classes e forças sociais, em particular, as diversas classes populares como os pequenos e médios camponeses. A solidez do poder do proletariado exige que esse poder assente em relações democráticas com estas classes populares. Em consequência, a própria unidade do proletariado e das outras camadas populares (unidade sem a qual a ditadura do proletariado é impossível) exige que o proletariado respeite a especificidade dessas camadas a fim de as guiar na via do socialismo, que, como se sabe, é também a via da sua própria libertação. Nada se pode obter neste sentido pela coerção: o recurso à coerção só serve para dividir as forças populares, isolar o proletariado e, portanto, só pode fazer-lhe perder o poder. Isto é tão verdade nos países industrializados como nos países fracamente industrializados, em que o proletariado é pouco numeroso.

A expressão, justa de um ponto de vista científico, «ditadura do proletariado» chegou a fazer perder de vista que nenhuma ditadura deve ser exercida sobre as diversas classes populares. O termo «ditadura do proletariado» designa, com efeito, a relação de dominação política que deve ser exclusivamente exercida contra a pequena minoria constituída pela burguesia; esta expressão não poderá em caso algum caracterizar as relações que devem existir entre o proletariado e as classes populares. Se, em certos momentos, estas se enganam, é preciso ajudá-las a rectificar os seus erros e não reprimi-las. Na realidade, estas classes também são oprimidas pela burguesia e, eventualmente, por elas exploradas; portanto, são levadas a revoltar-se contra as relações sociais burguesas; o proletariado deve guiá-las nessa revolta porque, no mundo de hoje, essa revolta leva necessariamente as camadas populares, se forem ajudadas política e ideologicamente, a colocar-se nas posições do proletariado. É muito precisamente o que se passa com o campesinato pobre e médio; a certa altura, se o proletariado tem com ele relações políticas, ideológicas e económicas justas, o campesinato é levado a lutar pelo socialismo; nesta luta, estas camadas do campesinato intervêm como forças ideológica e politicamente proletarizadas. Foi assim que as massas do campesinato chinês entraram na via do socialismo.

Em resumo, o termo «poder proletário» designa o papel político e ideológico dominante desempenhado pelo proletariado no seio de uma formação social determinada. Este papel, evidentemente, é o do proletariado de cada país mas é também o do proletariado mundial, cujas lutas produziram o marxismo-leninismo e a ideologia revolucionária proletária. São as lições teóricas e práticas tiradas das lutas do proletariado mundial que constituem o conteúdo do marxismo-leninismo de hoje. Este conteúdo torna-se um agente dominante de transformação social quando penetra nas massas e quando é possuído e desenvolvido por um partido proletário.

Só o papel dirigente de um tal partido, cuja acção e formas de organização tenham incorporado o conjunto dos conhecimentos adquiridos pelo proletariado através dos seus combates revolucionários, pode assegurar não só o derrubamento da burguesia mas também a conservação do poder pelo proletariado.

— A luta de classes sob a ditadura do proletariado.

A existência, num determinado momento, de um partido cuja acção e formas de organização tenham incorporado o conjunto dos conhecimentos adquiridos pelo proletariado através dos seus combates revolucionários não garante de «forma definitiva» que a via socialista não será abandonada. A única «garantia» do progresso na via socialista é a capacidade real do partido dirigente de não se separar das massas. Esta capacidade deve ser permanentemente renovada, o que implica também a renovação do partido e um esforço perseverante para evitar a repetição estéril de fórmulas feitas, para analisar concretamente cada situação nova, sempre diferente de todas as outras. Esta capacidade, por sua vez, exige que o partido do proletariado seja realmente o servidor das massas trabalhadoras, que saiba tirar a lição de todas as suas iniciativas revolucionárias, protegendo estas iniciativas e ajudando a desenvolvê-las.

Se não preencher estas condições, nenhum partido dirigente pode duravelmente levar a vitórias na via socialista, com efeito, se não preencher estas condições, não poderá evitar que a sua linha política deixe de ser uma linha proletária e que a burguesia acabe por se apoderar da sua direcção e por transformá-lo de instrumento da ditadura do proletariado em instrumento da ditadura da burguesia. Esta pode, aliás, apresentar-se, mais ou menos provisoriamente, com os traços de uma «burguesia de Estado». É pois uma grave ilusão acreditar que a luta de classe «termina» com a tomada do poder pelo proletariado e a estatização ou a colectivização dos meios de produção. Esta luta não termina assim; toma simplesmente novas formas.

O que toma objectivamente possível e necessário o prosseguimento da luta de classes nas condições da ditadura do proletariado não é só a existência daquilo a que muitas vezes se chamou «os restos das antigas classes exploradoras», é também, e mesmo principalmente, a existência, e portanto a reprodução, das antigas relações económicas, ideológicas e políticas, aquelas relações que não puderam ser «abolidas» de um dia para o outro e que só podem ser destruídas e substituídas por outras ao fim de longas lutas. São essas relações antigas — ligadas à divisão social burguesa do trabalho, à separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre tarefas de direcção e tarefas de execução, às formas de separação, específicas da ciência burguesa, entre conhecimentos teóricos e saber prático, às formas de representação produzidas por estas separações (e a forma valor é uma delas), às formas ideológicas que nesta base se reproduzem, etc. — são essas relações antigas que constituem a base objectiva que permite a uma minoria de não-produtores explorar uma maioria de produtores e que tornam possível a perda do poder pelo proletariado. Estas relações reproduzem-se durante um período histórico que dura muito tempo após a tomada do poder; este período, aliás, não pode terminar antes de o socialismo ter sido estabelecido à escala mundial.

A perda do poder pelo proletariado não é necessariamente o resultado de uma luta física violenta. Se a ideologia revolucionária do proletariado é um elemento

essencial do poder proletário, também a luta ideológica de classe é um elemento essencial da luta pelo poder e pela sua conservação; isto explica que o enfraquecimento do papel da ideologia proletária e os erros que este enfraquecimento provoca possam criar condições que permitam às forças sociais burguesas desenvolver-se, consolidar-se, ganhar influência, e, finalmente, apoderar-se da direcção do partido e do Estado, portanto, retomar o poder.

Para fazer face a este risco nem as armas da repressão nem a simples «fidelidade» verbal e dogmática a fórmulas feitas são realmente úteis. Para fazer face a este risco, é preciso desenvolver permanentemente de forma viva a ideologia do proletariado, ajudar, por uma prática social adequada, a penetração cada vez mais profunda desta ideologia no conjunto das massas trabalhadoras e ajudar permanentemente as massas a revoltarem~se contra as antigas relações sociais e contra os «valores» pelos quais elas «aceitam» a exploração e a opressão. Só assim pode progressivamente ser destruído o primado que as sociedades de classes conferiram aos interesses individuais e particulares, de modo que o primeiro lugar seja ocupado pela solidariedade e pela vontade de pôr as suas forças e o seu trabalho ao serviço da edificação de uma sociedade inteiramente nova. Nada disto se pode obter pela coerção e pela repressão. O que é necessário é uma prática revolucionária, são exemplos dados concretamente, é uma discussão livre, que não se limite a alguns dirigentes mas que, pelo contrário, se estenda ao conjunto do partido e das massas trabalhadoras, levando estas, pela persuasão e pela acção, para posições ideológicas proletárias cada vez mais claras.

Este é o sentido concreto da luta ideológica proletária de classe; que não tem nada a ver com a repetição de fórmulas estereotipadas e com as «excomunhões» pronunciadas em nome de alguns princípios cortados da realidade e da prática.

É preciso insistir no facto de que esta luta ideológica de classe não pode ser puramente «espontânea», exactamente devido à relação que ela deve permanentemente manter com a prática e a teoria revolucionária mundiais que se apresentam historicamente sob a forma do marxismo-leninismo. Esta luta e a edificação do socialismo são impossíveis na base das simples «concepções espontâneas» das classes exploradas e oprimidas. Estas concepções, como se sabe, foram em larga medidas impostas a estas classes pelas antigas classes exploradoras e dominantes. A simples revolta contra estas concepções, por mais necessária que ela seja, não basta para as substituir pelas concepções revolucionárias do proletariado. É isto que torna indispensável uma organização que seja portadora destas concepções e que assegure, ao mesmo tempo, a sua difusão no seio das massas e o seu desenvolvimento criador, através das lutas de classes e de uma análise crítica contínua do conjunto das práticas sociais.

O papel de um partido revolucionário não pode ser o de um pretenso «guia infalível» ou, por assim dizer, o de uma «elite». Ele não é, e não pode ser, um «representante» da classe operária e das massas populares a ela aliadas. Também não pode ser um «substituto» da classe operária e das massas populares: só pode ser o instrumento do poder dos trabalhadores. O seu papel é o de uma organização que «realiza» a ideologia revolucionária e que desenvolve práticas conformes a esta ideologia, uma organização ao serviço das massas e permanentemente pronta a aprender junto delas. Só uma tal organização pode assegurar que a teoria revolucionária do proletariado não se transforme num dogma mas que, pelo contrário, seja uma arma que permita fazer face às tentativas de novas camadas privilegiadas para retomarem o poder. Parece-me que esta é uma das grandes lições do estilo de direcção do Partido Comunista Chinês e um dos significados profundos da revolução cultural na China.

Charles Bettelheim

TEXTOS DE APOIO

Notas de rodapé:

(1) Lenine, «Uma das questões fundamentais da Revolução», Oeuvres complètes, t. XXV, p. 398. (retornar ao texto)

(2) Cf. as notas de Lenine sobre a Crítica do programa de Gotha, notas tomadas em Janeiro-Fevereiro de 1917. (retornar ao texto)

(3) Cf. Lenine, «O Estado e a Revolução», Oeuvres complètes, t. XXV, op. cit., p. 467. (retornar ao texto)

(4) «Da justa solução das contradições no seio do povo», citado de acordo com Quatre essais philosophiques, Pequim, 1966, p. 93. (retornar ao texto)

(5) A Ideologia a que o proletariado está deste modo submetido não é evidentemente a ideologia do proletariado mas sim a que sobre ele pesa ou, como diz Rivenc num texto não publicado sobre «A filosofia de Mao Tsé-tung», «a ideologia entre o proletariado». (retornar ao texto)

(6) Cf. K. Marx, A Ideologia Alemã, citação de acordo com: Marx, Oeuvres philosophiques, Ed. Costes, t. VI, p. 184. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2020