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Primeira Edição: Revista Socialismo o Barbarie, Ano 1, No. 3, octubre de 2000.
Fonte: http://www.marxists.org/espanol/tematica/mujer/autores/berkins/2000/x.htm
HTML: Fernando A. S. Araújo
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Quando surgiu o Código de Convivência Urbana na Capital Federal, todos os jornalistas do regime denunciaram noite e dia um ataque à moral e aos bons costumes. Com a descriminalização da oferta sexual na rua, a dupla moral burguesa havia chegado à televisão uma vez mais. Os travestis foram o alvo predileto da hipocrisia da sociedade. Quando todos os partidos do poder deram início à proposta, a TV e os jornais se esqueceram do assunto, e os polícias voltaram a seus velhos negócios. Lohana Berkins, dirigente da Associação de Luta pela Identidade Travesti (ALIT), não perdeu a memória, e no caminho encontrou muito mais coisas para contar.
O feito que mais me orgulha é que muitas travestis deixaram de ser vítimas passivas para ser vítimas ativas. Na medida em que nós vamos mudando, a sociedade vai mudando. E é porque nos tornamos sujeitas perigosas. Primeiro, sujeitas de consciência, depois sujeitas de direito e sujeitas demandantes. Por exemplo, ano passado decidi terminar o secundário. A diretora, quando fui pela primeira vez, me disse que não havia vagas, e não é um colégio de difícil ingresso nem nada disso. Minha reação pessoal foi dizer-lhe: “olhe senhora, reveja sua situação porque eu vou iniciar um julgamento que você não vai esquecer jamais”.
Essa é a mudança, obrigar um colégio inteiro a conviver, ou pelo menos respeitar uma travesti, e a experiência é maravilhosa. Fui eleita como delegada para o Conselho de Convivência, sou a mais popular do colégio. As companheiras travestis também vão fazendo. Umas garotas tomaram um hotel onde trabalhavam e eram muito exploradas: essas são sujeitas demandantes. Estão dizendo ao Estado: primeiro, não vão poder nos atropelar tão facilmente porque temos direitos. E segundo, quero dignidade de direitos como qualquer outro.
Em uma sociedade que te obriga a definir-se como homem ou mulher, é mais divertido dizer: sou travesti. O ideal seria que cada um pudesse dizer, ser e ter a imagem que quiser. A pergunta que eu me faço é se nesta sociedade tão alinhada, tão educada, tão etiquetada, todavia se puder falar de instintos primários e desejo puro. Até que ponto estruturamos o desejo? A opressão, desde o ponto de vista das travestis, tem a ver com a idéia que só se pode ser homem ou mulher no esquema sexo-gênero (que implica que a uma condição biológica corresponda um determinado rol social e um desejo; mulher = mãe = dona de casa). Esta sociedade fica um pouquinho permissiva – um pouquinho – e diz: podem ser gays ou lésbicas. E justamente o travestismo vem produzir uma ruptura. Por que tenho que escolher um dos dois gêneros, como se estes gêneros fossem a panacéia do mundo, um por opressor e a outra por oprimida?
A prostituição segue sendo a única alternativa. Nós não podemos falar que escolhemos a prostituição. Poder-se-ia falar de escolha se pudéssemos ter trabalhos comuns. Então sim, eu opto e pode ser tudo tão democrático que se estaria escolhendo a prostituição. Porém não é o caso das travestis, que não têm outra alternativa. E o efeito mais lamentável, mais que a prostituição, é que nós não podemos conceber o travestismo sem a prostituição, nós nos constituímos na prostituição, não para a prostituição e sim na prostituição.
Eu primeiro pensava que a prostituição era um ato que dependia totalmente de mim, que eu decidia ir e parar em uma esquina. Um dia deixei de estar alienada e me dei conta que a prostituição não era um ato fortuito, alimentado e criado por mim, e sim que teria a ver com um fato muito mais perverso sustentado por todo um sistema. A prostituição é causada pela pobreza e a corrupção do Estado.
A vida das travestis está ligada à vida das prostitutas, há um paralelismo e um cruzamento de histórias, que lamentavelmente é a história da opressão. Temos caras distintas de um mesmo opressor. Depois as mulheres têm sua própria história.
Eu sempre digo que sou duas vezes Judas. Os homens sentem que nós somos traidoras do patriarcado, porque tendo um pênis, o símbolo, renunciamos ao poder. O segundo questionamento vem rechaçar a imagem de mulher que propõe esta sociedade. O que acontece comigo na vida, é eu me chamar Lohana e levar a bandeira da imagem feminina. Porque se eu me tivesse me tornado um gay da classe branca, com universidade, não passaria pelas mesmas coisas. Em todo os âmbitos de seu problema – a mulher negra, a mulher lésbica, a mulher prostituta, a mulher que abortou, a mulher profissional – a mulher tem uma história parecida com a nossa.
Eu penso que quando vou a uma entrevista, os que não me conhecem esperam que venha o estereótipo da travesti, e se encontram com outra coisa. Você começa a romper com o estereótipo quando começa a viver como quer. As travestis me dizem que pareço uma lésbica. Elas estão aí com seus tacos e eu sem nada. Esse imaginário que elas têm de uma lésbica também é um problema. Estamos tão confinadas. Também o uso de jeans, antes eu falava com as garotas e lhes dizia: não vão como Greta Garbo as dez da manhã. Não para cercear sua liberdade, vão um pouco mais tranqüilas e evitem uma situação de violência. Nós ocultamos que temos pênis, e isso chamamos de “trucar-se”. Um dia fui a um lugar e uma travesti estava “destrucada”. A segunda vez o mesmo. A terceira me disse: como você é tarada. Relaxei-me e comecei a desfrutar da mesma liberdade dela. Pensei que se não o fizesse, também entraria no círculo de hipocrisia. Se eu sabia que ela tinha pênis e eu também tenho.
Quando nós iniciamos o movimento travesti e íamos às reuniões e as lésbicas feministas colocavam em palavras tudo o que nós estávamos pensando. Mudei primeiro a visão do mundo. E depois a minha visão de mim mesma. Comecei a olhar para dentro, a falar, a colocar em palavras o que toda minha vida havia significado uma ação. Antes era muito misógina, até que comecei um caminho muito interessante que é o de conhecer às mulheres reais. Não a mulher comercial, a que é sempre divina, mas sim a que vive o cotidiano.
As travestis estão marcadas por todas as discriminações: pobres, prostitutas, analfabetas e espancadas. Fui a uma reunião sobre violência doméstica e fiquei estarrecida, porque cada vez que uma mulher falava, eu pensava que aquilo tinha acontecido comigo. Porém, no meu caso, não em relação a um homem em particular, mas em relação à sociedade. A sociedade me isolou, me diminuiu, me fez sentir uma merda. “Seu “mariconcito” de merda, te ponho na cadeia, te mato como um cachorro e não digo nada”. Esse quadro, essa menos-valia, a sociedade impôs a mim. Esta é uma sociedade traiçoeira. O que se passa na Argentina é que todos os movimentos são dirigidos pela burguesia, por isso que nunca chegam à verdadeira revolução, nem produtiva nem de nada.
A esquerda também, sim. Para mim não nada tão antidemocrático como os partidos políticos: estruturas patriarcais fortíssimas onde se decide o que o feudo quer.
Creio que o primeiro passo é tentar fazer com que as organizações não se convertam em estruturas e voltar ao trabalho de base. É fácil falar quando o problema é dos outros. Por aqui, falta discussão e participação dos verdadeiros atores sociais. Eu vou sentir que há participação quando Elena Reynaga (presidenta da Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina) seja deputada e eu discuta com ela. Quando for Elena a que estiver falando da prostituição, e quando os obreiros tiverem onde devem estar.
Não. Eu creio que é necessário desmantelar as estruturas. E isso se faz quando gerando a verdadeira participação dos atores sociais. E a mudança não passa por as mulheres terem o poder: honestamente, em Graciela Fernández Meijide, me cago; na mulher de Chaco Alvarez, também. Creio que o fascismo não tem gênero. Se amanhã uma travesti vier e me diz que vai virar policial, vomito encima dela e acabou a história; para mim deixa de ser travesti. Creio que o poder é corruptível porque há estruturas corruptíveis, então não importa se há mulheres ou homens.