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Fonte: Associação Política Socialista Revolucionária.
HTML: Fernando A. S. Araújo
A crise atual vai dar lugar a novas regulamentações. Os liberais fanáticos se apagam diante dos seus rivais heterodoxos, Joseph Stiglitz, George Soros ou Paul Krugman e de todos os defensores de um New Deal que repetem que a doença provinha da desregulamentação e que o remédio viria de uma boa regulação.
Tal ideia significa esquecer demasiado depressa que a desregulamentação liberal não era fruto de um capricho doutrinário. Ela visava restabelecer os lucros erodidos nos anos 1960 e 1970 pelas resistências e conquistas sociais. Voltar ao Estado social e às receitas keynesianas significaria reconstruir o que fora destruído. Mas ainda que tal fora possível numa economia mundializada, isto apenas traria de volta as nossas sociedades ao ponto de partida anterior. O capitalismo não teria de forma alguma resolvido o seu problema insuperável, que é o de produzir de maneira anárquica e em sobre-capacidade. Como disse muito bem Jean-Marie Harribey, co-presidente da Attac, “regular não é resolver”.
É previsível que as classes possidentes agirão como sempre fizeram. Elas estabelecerão e utilizarão as regras quando delas tiverem necessidade. Elas as contornarão (com toda a legalidade) quando estas lhes forem demasiado constrangedoras. E as alterarão de novo quando a situação a isso se tornar propícia.
Será necessário relembrar que Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, quando da Grande Crise, adoptou em 1933 o Glass-Steagall Act que constrangia os bancos a separar as actividades de financiamento e de investimento (bancos de negócios) das de depósito (bancos ditos “de retalho”). Em 1999, em véspera de entrar na verdadeira “idade de ouro” dos negócios, os banqueiros fizeram com que esta lei fosse abolida. Os capitalistas aplaudiram entusiasticamente esta saída financeira oferecida aos lucros obtidos na produção.
Será preciso relembrar que a política de New Deal de Roosevelt, que consistia em lançar grandes obras públicas e grandes estaleiros para relançar a economia, recusando colocar em causa minimamente os sacrossantos privilégios capitalistas, não foi suficiente para relançar duravelmente a economia e evitar a guerra? Se a população laboriosa pôde beneficiar então de novas conquistas sociais ao nível de empregos e salários, ela o deve em primeiro lugar a ela própria, à sua determinação, às suas lutas vitoriosas e à sua greve geral de 1934. As medidas de Roosevelt, incensadas pela esquerda reformista, não travaram a recessão económica que, em 1937, desembocou numa nova depressão financeira. Na realidade, mais que o New Deal, foi, infelizmente a segunda guerra mundial que, relançando a actividade industrial militar, restabeleceu a economia dos Estados Unidos.
Para sair da crise sem enveredar por novas guerras, é preciso enfrentar o sistema, no próprio coração da lógica capitalista: o poder absoluto do mercado, a corrida desenfreada ao lucro, a propriedade privada dos grandes meios de produção e de troca e a concorrência de todos contra todos. Naquilo que diz respeito às medidas governamentais bem como nas propostas da esquerda de governo, ainda estamos bem longe disso na França.
Limitar os privilégios dos gestores, rever as normas de contabilidade, rever os critérios e o estatuto das “agências de notação”? Isto seria o mínimo. Seriam apenas correctivos para os defeitos mais gritantes ou mais escandalosos do sistema. Ao contrário da petição lançada na primavera de 2008 por alguns economistas críticos, estas medidas não iriam nem mesmo até à revogação do artigo 56 do Tratado de Lisboa, o qual proibia qualquer restrição aos movimentos do capital financeiro. Nem a reclamar a revogação de artigo 48 do mesmo tratado, o qual, em nome da “liberdade de estabelecimento”, deixa ao capital a possibilidade de se dirigir para onde as condições são mais favoráveis e às instituições financeiras a liberdade de buscar abrigo onde mais lhe convenha.
Alguns falam de retorno do Estado Providência ou de Estado Social sob pretexto de que alguns bancos teriam sido nacionalizados. Não foi este o caso, porém, nem de longe. O Estado não terá nem mesmo um direito de voto aquando dos conselhos de administração dos estabelecimentos bancários nos quais ele detém uma participação de 34%. No entanto, o muito liberal Nicolas Baverez define a banca como
“um bem público da mundialização”: “Sob o choque actual do afundamento do crédito se divisa um oligopólio bancário altamente rentável e tendo a sua perenidade garantida pela presença forte de interesses públicos e de uma imunidade ilimitada contra todos os riscos. Eis aí porque os bancos continuam a ser a base da mundialização. Pelas suas características eles tem a natureza de um bem público que gera ganhos de produtividade consideráveis para a economia no caso de um bom funcionamento e grandes destruições em caso de disfuncionamento.”
Esperar-se-ia então que este bem público voltasse a uma gestão pública sob controlo público, de acordo com a sua “natureza”. Mas a conclusão tirada é a inversa, após uma pirueta sem rede: “Daí advém a necessidade de uma regulação que deve integrar a dimensão mundial do risco e abrir um caminho estreito entre as duas possibilidades mais seguras de desembocar num “crash” bancário, a desregulamentação e a nacionalização.” Para este economista do “meio-termo” (liberal), o Estado garante portanto aos bancos uma “imunidade ilimitada” para as perdas e um seguro de todos os riscos para os lucros.
Laurence Parisot apressou-se a convocar um G5 patronal para precisar que é importante que o Estado jogue o seu papel correndo em socorro da finança, na condição que isso seja a título provisório e que ele prometa retirar-se gentilmente logo que os negócios tenham retomado o seu curso lucrativo. Ou seja, socializar as perdas antes de reprivatizar os lucros. Enquanto certos economistas fazem grandes elogios ao capitalismo, atribuindo-lhe “uma ética de risco”, o Estado intervém na realidade, temporariamente, como segurador dos banqueiros ameaçados de falência. O risco é para os outros, para os trabalhadores despedidos, precarizados, sobre-endividados, os quais não beneficiam da mesma indulgência, nem das mesmas medidas de facilidade.
Combater realmente o sistema implicaria reunificar todos os bancos num só serviço público bancário, expropriando os interesses privados, sem resgate nem indemnização. Este serviço teria o monopólio do crédito para financiar as prioridades sociais, para orientar os investimentos para a satisfação das necessidades, para financiar grandes trabalhos de reconstrução e de renovação de serviços públicos, para impulsionar a transição energética. Combater o sistema, seria colocar esse serviço público de crédito sob o controle dos assalariados e dos utentes, levantar o segredo bancário e o anonimato de certos depósitos, estabelecer um controle público e uma taxa sobre os movimentos de capital.
A brutalidade da crise vai exacerbar a luta pela divisão de territórios, o controle dos recursos energéticos, a segurança das vias de transporte, ou seja, vai reforçar a lógica de guerra e de militarização, ainda mais porque, em período de recessão e de inflação, a economia de armamento é o meio clássico de apoio dos Estados à indústria. Logo a seguir ao 11 de Setembro de 2001, os Estados Unidos oficializaram a doutrina da “guerra preventiva”, libertando-se assim das regras em vigor no direito internacional e autorizando-se a intervir militarmente, com ou sem a permissão da ONU, onde e quando quiserem. O corolário disto é a adopção, sob pretexto de anti-terrorismo, de legislações de excepção e de criminalização preventiva, sendo o modelo o Patriot Act. Elas generalizam a presunção de culpabilidade em detrimento da presunção de inocência. A lei da detenção preventiva, a criminalização das resistências sociais, a detecção da periculosidade desde a idade de 3 anos inscrevem-se na mesma lógica.
Contra a mundialização armada e as novas guerras imperiais, nós exigimos a retirada das tropas francesas do Afeganistão e da África, a retirada definitiva da França da OTAN e o desmantelamento das suas bases (contra as quais uma manifestação europeia terá lugar em Strasbourg na primavera de 2009), a destruição de todas as armas de destruição massiva, a redução dos orçamentos militares, a nacionalização das indústrias de armamento e um plano para a sua reconversão.
A crise, as guerras, a mudança climática fazem correr o risco de amplificar as deslocações de população e os movimentos migratórios. O capitalismo vai explorar essa miséria para dividir os trabalhadores, opor as nações a outras nações, as etnias a outras etnias e atiçar novas guerras de religião. Ele vai explorar a vulnerabilidade dos trabalhadores sem papéis para fazer pressão sobre as condições de vida e de trabalho de todos. Mais do que nunca, nós opomos a ele a solidariedade com os trabalhadores imigrados, a exigência de regularização dos sem-papéis e do direito de voto para os imigrados, um princípio de cidadania de residência fundada sobre um aprofundamento do direito do solo.
Combater a fundo o sistema seria adoptar um escudo social para proteger os trabalhadores dos desgastes da crise: aumentar os salários, as pensões e as reformas; anular o endividamento das categorias sociais empobrecidas, proibir os despedimentos fundados nos movimentos da Bolsa, cessar as supressões de postos de trabalho na função pública, criar um fundo comum para a formação e a reconversão dos assalariados e garantir a perenidade dos seus rendimentos, adoptar um plano de relançamento coordenado ao nível europeu. Para tal seria necessário revogar o Tratado de Lisboa, liquidar o espartilho dos critérios de Maastricht e do pacto de estabilidade, por fim à independência do Banco Central Europeu, reorientar radicalmente a construção europeia começando pela harmonização dos direitos sociais, do sistema fiscal e abrindo um verdadeiro processo constituinte.
Conduzir um combate contra a crise energética, climática e alimentar significaria rever radicalmente o modo de vida e de desenvolvimento. Os bens públicos inalienáveis (agua, ar, etc.) deveriam ser defendidos acima de tudo e um plano de reconversão energética deveria ser elaborado pelas colectividades em vez de ser confiado à lei da concorrência mercantil.
O “buraco da Segurança Social”, os 1,5 mil milhões para o RSA(2), os 1,2 mil milhões do Banco Mundial para ajuda alimentar de urgência e mesmo os 30 mil milhões anuais necessários, segundo a FAO, para nutrir os biliões de seres humanos vítimas da fome, parecem irrisórios ao lado das centenas de milhares de milhões que os governos tiram de repente do seu chapéu. A verdadeira questão é saber quem vai pagar: o capital ou o trabalho? Adivinhem! Na França, o aumento da necessidade de financiamento deverá atingir os 154 milhares de milhões de euros em 2009 para cobrir o défice orçamental, o reembolso dos empréstimos cujo pagamento se vence, as novas necessidades ligadas à criação do “fundo soberano à francesa” caro ao senhor Sarkozy. Como financiá-las? Lançando novos empréstimos, para os quais os investidores solicitados serão mais exigentes do que nunca, exigindo o abaixamento dos preços do que ainda falta privatizar, fazendo punções nas prestações (trata-se de 2 mil milhões de euros) sobre as receitas das empresas (ainda) públicas, financiando-se nas reservas da Caixa de Depósitos?(3)
Tudo isto são expedientes de efeitos provisórios e incertos. Serão portanto, forçosamente, os trabalhadores que pagarão a maior parte da conta. Se não for pelo aumento dos impostos, será pela compressão social, pelos cortes nos orçamentos e nos serviços públicos, pelo menor reembolso das despesas de saúde, etc.. Estes métodos são já conhecidos, utilizados há demasiado tempo.
Tratar-se-á então agora de inverter a tendência: devemos lutar pelo aumento de todos os salários, das pensões e das prestações mínimas sociais; pelo recuo do desemprego, a transformação das horas suplementares e tempos parciais em empregos verdadeiros, o que economizaria nas despesas sociais e aumentaria as verbas da Segurança Social; pela supressão dos tectos e lacunas fiscais (cujo prejuízo causado é avaliado em 70 mil milhões pela comissão de Finanças da Assembleia Nacional); pelo restabelecimento das quotizações sociais das empresas, o fim das subvenções às empresas que deslocalizam, a adopção de um imposto fortemente progressivo sobre os rendimentos e os lucros; pela proibição da evasão para os paraísos fiscais cujo prejuízo causado é estimado a um mínimo de 40 mil milhões; pela limitação dos dividendos (em 2007, as empresas repartiram em dividendos 8,1% do seu valor acrescentado contra 3,2% em 1982) e a sua transferência a um fundo comum para financiar a proibição dos despedimentos.(4)
Tem-se falado muito em crise de confiança. A confiança vai e vem, como os movimentos caprichosos da Bolsa. A crise de fé, essa, é durável. Os deuses do mercado e a fé na sua omnipotência, estão mortos. É chegada a hora de um anti-capitalismo tão descomplexado como o é o “puro capitalismo” predador.
Notas:
(1) Daniel Bensaïd e Olivier Besancenot são dois dirigentes do Nouveau Parti Anticapitaliste (NPA). São ambos co-autores do livro ‘Prenons Parti – pour un socialisme du XXI siècle’, Mille et une nuits, Paris, 2009, de que este texto constitui um capítulo. (retornar ao texto)
(2) [Nota da Tradução] O Revenu de Solidarité Active (RSA) é uma alocação, ainda em projecto, em França, que visa substituir os rendimentos mínimos existentes e os mecanismos de incentivo à reinserção no mercado de trabalho. (retornar ao texto)
(3) La Tribune , 20 de Novembro de 2008. (retornar ao texto)
(4) Ver Michel Husson, ‘Un capitalisme toxique’, Imprecor nº 541-542, Setembro-Outubro de 2008. (retornar ao texto)
Este texto foi uma colaboração |
Inclusão | 14/02/2010 |
Última alteração | 20/05/2014 |