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Primeira Edição: BENSAID, Daniel. Teoria do valor, trabalho e classes sociais. Entrevista concedida a Henrique Amorim. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Unesp, n.30, 2010, p.89-102. Esta entrevista, realizada por Henrique Amorim em 5 de maio de 2009, teve o apoio da Fapesp. A revisão técnica da tradução foi realizada por Leandro Galastri.
Fonte: Crítica Marxista, n.º 30, p.89-102, 2010.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
“Para entrar na luta, não é necessário possuir as chaves do paraíso ou da cidade perfeita. É resistindo ao que parece irresistível que nos tornamos revolucionários, sem o saber.”
Daniel Bensaid morreu em combate no último dia 12 de janeiro. Participava de uma avançada frente de batalha da guerra contra o capital, sendo figura proeminente dos esforços de construção do Novo Partido Anticapitalista na França, criado oficialmente em janeiro de 2009. Foi também um dos fundadores das mais recentes versões impressa e eletrônica da revista Contretemps, que procura ser atualmente instrumento intelectual da tentativa de renovação das estratégias da esquerda revolucionária francesa. Tais foram os últimos movimentos de uma vida inteiramente balizada pela convicção na militância socialista, desde fins da década de 1960, quando Bensaid já se encontrava entre os agudos críticos juvenis do status quo na vaga contestatória do maio de 68 francês.
Importante filósofo marxista da contemporaneidade, uma de suas elaborações teóricas recentes mais interessantes foi a da “discordância dos tempos”, ou das diferentes temporalidades históricas. Propunha uma nova escrita da história, que seria simultaneamente uma nova “escrita e uma nova escuta do tempo”. Para ele, o tempo se concretizaria na existência dos espaços sociais. Sem a separação dicotômica entre tempo e espaço, sustenta, citando Hegel, que o “tempo é a verdade do espaço”. Assim, a existência dos diversos espaços sociais representaria a ocorrência das diferentes temporalidades concomitantes da história, um conjunto repleto de fraturas pelas quais escaparia “um turbilhão de ciclos e espirais, de revoluções e restaurações”. Ora, tratar a história como o conjunto de suas diversas temporalidades seria, de certa forma, tratar sempre do presente. E qual o lugar da política? Se o que está em causa são os desfechos possíveis do presente, a história é superada pela política. O presente deixaria, portanto, de ser um momento da continuidade temporal e tornar-se-ia um embate pela seleção de possibilidades; deste modo, a ação revolucionária converte-se numa luta de resultados imprevisíveis.
Pode-se então considerar a luta anticapitalista defendida por Bensaíd como inserida na disputa pela definição dessas possibilidades históricas contra o sistema de dominação vigente. Para ele, a dominação na sociedade capitalista se construiria - e, quando necessário, se regeneraria - através de um “círculo vicioso”, expressão tomada de empréstimo a Marcuse. O autor alemão formula a noção de “círculo vicioso da dominação” a partir de sua análise da sociedade de consumo de massa na década de 60, o que considera ser a “sociedade tecnológica”. Esta sociedade forneceria a satisfação virtualmente plena das necessidades e desejos dos indivíduos porque conseguiria forjar ela mesma essas necessidades e desejos. Em suma, ela criaria as necessidades adequadas a serem satisfeitas e assim consolidaria a dominação por meio do consenso, numa aparência de mais ampla liberdade possível. Não necessitaria, assim, reprimir com força física os desejos que ela mesma cria, controla e satisfaz. Os indivíduos mover-se-iam, aqui, no interior de um círculo de dominação totalitária, unidimensional.
Como complemento desse círculo vicioso hegemônico, Bensaíd aponta a divisão capitalista do trabalho, que oporia os dominados uns aos outros: desempregados contra aqueles que têm emprego, nacionais contra imigrantes, homens contra mulheres, jovens contra velhos. Enfim, uma hegemonia que se consolidaria também pela reprodução cotidiana e impositiva do discurso unificado, pelo enquadramento ideológico das perspectivas de mudança nos limites do horizonte burguês, ou seja, da propriedade privada e do individualismo competitivo. Discurso unificado que aprofundaria as raízes da dominação nos costumes aprendidos em família, na escola, no trabalho, que ensejam a submissão.
Eis, portanto, a função estratégica do partido político - revolucionário, bem entendido: romper aquele “círculo vicioso da dominação”. Partido compreendido como organização portadora de uma memória coletiva, feita de experiências de luta, de assimilações de vitórias e derrotas, que saiba agir e tomar as decisões necessárias nos momentos de crise aguda do capital e de revolta social. É para essa tarefa que Bensaíd esperava que se voltasse o NPA, porta-voz que seria de um anticapitalismo de novo tipo, não mais como crítica romântica à sociedade burguesa, mas como palavra de ordem com vistas a agregar todos aqueles que, de alguma forma, estivessem dispostos a oferecer resistência às forças do capital.
Ele acreditava que a luta contra o círculo vicioso da dominação se daria passo a passo, dia a dia, contra os preconceitos, a desinformação, evitando as armadilhas do “discurso dos outros”. Uma luta desigual, por certo, mas com a tenacidade que permitisse superar os limites materiais dos meios à disposição, que permitisse construir um discurso próprio. Afinal, “as palavras têm sua importância. Pensamos por palavras. Representamos o mundo através de palavras. E quando as palavras estão enviesadas, acabamos por pensar de forma enviesada”. O autor relembra, no entanto, que é nas condições mesmas da produção que se enraíza a subordinação às ideias dominantes. E seria contra essas condições que se deveria centrar a estratégia de toda a resistência. A resistência, porém, não é tudo, e Bensaid o sabia claramente. O anticapitalismo era para ele, no entanto, ao menos a designação clara do inimigo contra o qual se bater. Tratar-se-ia de uma alternativa à qual cumpriria ainda conferir um conteúdo revolucionário propositivo, que incorporasse em linhas gerais a igualdade, a solidariedade, o questionamento das relações de produção, o internacionalismo. Ou seja, uma tomada de posição pela superação do sistema capitalista, contra o novo discurso unidimensional defensor de sua “recuperação ou moralização”.
A entrevista que se segue tratou de alguns elementos centrais para a análise do capitalismo atual, como a teoria do valor, a teoria das classes sociais, as novas formas de exploração do trabalho e suas consequências para os trabalhadores. Realizada no dia 5 de maio de 2009, nela Bensaid falou sobre questões relevantes também para a literatura marxista, sociológica e filosófica contemporânea. A entrevista, registrada em vídeo com quase duas horas de duração, foi realizada na livraria La Brèche, em Paris.
Um dos momentos de destaque é a questão da constituição das classes sociais. Elaborador de uma análise profunda sobre o tema em suas obras, nessa entrevista o autor confirmou sua perspectiva crítica indicando a impossibilidade de definir, como a tradição positivista o faria, as classes sociais a priori. Reiterando a importância relativa dos dados históricos e estatísticos para a avaliação dos conflitos sociais hoje, Bensaid faz uma interessante separação entre uma concepção de classe que se funda em critérios sociológicos e uma outra, a sua, fundada em uma perspectiva estratégica das classes sociais em luta. Indica, assim, que: “A noção de classe, segundo Marx, não é redutível nem a um atributo de que seriam portadoras as unidades individuais que a compõem, nem à soma dessas unidades. Ela é algo diferente. É uma totalidade relacional e não uma simples soma”. A perspectiva sociológica tentaria situar, a qualquer preço, um grupo de indivíduos em critérios arbitrariamente escolhidos. Lembra as tentativas do Partido Comunista Francês nessa empreitada. Critica, dessa forma, uma concepção de classe que teria por finalidade realizar o que chamou de “autolegitimação” de sua condição de representante dos “verdadeiros” trabalhadores.
Ao retomar Marx, Bensaid sustenta a impossibilidade de indicar critérios sociológicos como renda, qualificação profissional etc. como elementos que comporiam uma definição apriori da classe trabalhadora, por exemplo. Segundo ele, Marx não compartilharia desse procedimento teórico. Seguiria, contrariamente, a lógica da determinação conceitual, fundada na tradição filosófica alemã, e não a tradição positivista francesa que teria inspirado muitos intelectuais pelo mundo, inclusive brasileiros. Nesse sentido, “Marx [...] não procede quase por definição (por enumeração de critérios), mas por ‘determinação ’ de conceitos (produtivo/ improdutivo, mais-valia/lucro, produção/circulação), que tendem ao concreto articulando-se no seio da totalidade”.
Daniel Bensaid e suas obras são o exemplo fecundo de uma perspectiva que não deixa espaço para a imposição das teorias quantitativas e estatísticas. Seu trabalho é, entre outras tantas coisas, uma forma de combate político e teórico àqueles que tentam reduzir a obra de Marx, a saber, a teoria do valor, das crises, das classes etc., a números e fórmulas matemáticas. A tradição teórica e filosófica que Bensaid desenvolve - que nutre, por exemplo, suas perspectivas em relação ao tempo, ao espaço, à questão das classes sociais, ao dinamismo e fluidez das condições de luta - corre o risco de ser ofuscada em uma sociedade tão presa aos cânones da objetividade cientificista.
Henrique Amorim: O pensamento de Marx precisa ser atualizado? Como é possível ir além de Marx?
Daniel Bensaíd: O pensamento de Marx não precisa ser atualizado. Ele é atual. Sua atualidade é a atualidade do capital, que é o objeto crítico de Marx. À época de Marx, as relações capitalistas de produção dominavam apenas uma parte do mundo. Hoje essas relações se generalizaram e aí está sua atualidade fundamental. Ela se exemplifica também na questão da mundialização. Marx não se contentou apenas em descrever a mundialização, como faz a maior parte dos jornalistas. Ele explica, primeiramente, a sua lógica, a saber, a acumulação ampliada e a aceleração de rotação do capital. Em segundo lugar, constatamos que há em Marx uma teoria das crises, ou, mais corretamente, os elementos de uma teoria das crises como separação da esfera de produção e consumo, a esquizofrenia geral que caracteriza a sociedade capitalista que tinha raízes na manifestação da superprodução e na crise financeira. E em terceiro lugar, se pegarmos hoje a grande característica da crise social, isto é, de um lado os fenômenos de exclusão e precarização e, de outro, a crise ecológica, são duas grandes manifestações da crise do valor e da lei do valor. A atualidade de Marx é, então, bem evidente.
Bem, se devemos ir além de Marx? Eu penso que sempre devemos ir além. Não se deve retornar a Marx para permanecer onde ele parou, mas tomá-lo como um ponto de partida para ir mais longe. Por exemplo, ir mais longe para analisar fenômenos que ultrapassam a questão ecológica tal como é conhecida hoje, em relação ao desenvolvimento do produtivismo capitalista, mas não se pode dizer que há uma teoria da ecologia em Marx. No entanto, há elementos que podem nos auxiliar.
H.A.: Quais são os elementos conceituais que Marx não desenvolveu em O capital? Seria possível concluí-lo?
D.B.: Concluir O capital é uma tarefa contraditória em relação à forma de pensar de Marx. Marx o pensou em um movimento que acompanha o movimento de seu objeto. Como o movimento do capital é permanente e ilimitado, podemos afirmar que a crítica do capital é uma crítica que não pode ser finalizada. Não penso que, por conta de uma questão biográfica, do fim de sua vida, O capital permaneceu uma obra inacabada, aberta. Não podemos dizer, por exemplo, que Marx tenha desenvolvido uma teoria de relações de exploração e dominação e nem como estas se articulariam. Acredito que, nesse caso, é preciso procurar recursos entre os sociólogos. Como a obra de Marx é contemporânea de um crescimento da colonização, mas anterior à estrutura do imperialismo contemporâneo - não é por acaso que o grande debate sobre o imperialismo data do começo do século XX, com Hilferding, Bukharin, Lênin etc. - isto nos remete a pensar o imperialismo hoje, nos remete à ausência do livro anunciado por Marx sobre o mercado mundial. Enfim, há todo um campo de trabalho sobre esse tema. Há uma questão, por exemplo, apenas enunciada, sobretudo nos textos de juventude de Marx, que é a relação entre o Estado e a burocracia, a burocracia de Estado em particular. É possível reconhecer elementos dessa leitura na Crítica da filosofia do direito de Hegel. Essa questão reaparece no momento em que o fenômeno burocrático torna-se um tema maior das sociedades contemporâneas.
H.A.: Os Grundrisse de Marx foram revisitados por vários autores, como Jean-Marie Vincent, André Gorz e Antonio Negri. Como o senhor pensa a apropriação contemporânea dessa obra?
D.B.: Há uma riqueza de elementos críticos que são expressos com vigor, talvez por conta do contexto da redação dos Grundrisse que, como Marx exprime na correspondência que redigiu em um momento de exaltação e fragilidade diante da crise econômica de 1875-58 nos Estados Unidos, talvez tenham dado a esse texto uma força subversiva em sua escrita e, sobre certas questões, superior àquela encontrada de forma mais rigorosa e mais “científica” n’O capital. Por exemplo, a passagem que indica que a lei do valor pode se tornar uma lei cada vez mais miserável para dar conta da produção, da troca e da organização social. Há momentos nos Grundrisse que não se encontram de maneira tão percuciente e subversiva em O capital. Em segundo lugar, a descoberta dos Grundrisse - você evocou André Gorz, Antonio Negri e Jean-Marie Vincent e podemos somar a esses autores Ernest Mandel - traz abordagens diferentes. Em Gorz, Vincent e Mandel, a utilização dos Grundrisse é feita de maneira polêmica no momento em que o livro é traduzido, tardiamente (1967-68). Nesse momento, os Grundrisse foram retomados para demonstrar, contrariamente à posição de Althusser, que haveria uma continuidade, ou seja, que o tema da alienação não havia sido abandonado. Não haveria, assim, uma oposição entre o jovem Marx, teórico da alienação, e o Marx de O capital, teórico crítico da reificação. Haveria, sim, uma transformação, mas com um fio condutor que evitaria dividir em dois: o jovem Marx humanista contra o velho Marx positivista. Eu penso que essa questão foi muito útil para melhor compreender finalmente a lógica íntima do pensamento de Marx. Já em Negri, trata-se de opor um Marx revolucionário e subversivo, como um teórico da subjetividade operária, ao Marx cientificista e positivista que teorizou, através do esquema de reprodução do livro II de O capital, uma espécie de eternidade lógica do capital, já que nos encontraríamos em um sistema que cientificamente tenderia ao equilíbrio. Para Negri, o único fator dinâmico seria o proletariado por ele mesmo e o capital não seria senão uma resposta reativa à criatividade do proletariado. Isso leva a uma posição muito subjetivista que, em certa medida, tem consequências hoje. Se a mundialização não é senão uma resposta reativa do capital à inventividade e à criatividade do proletariado, tudo que vai no sentido de uma abertura é positivo, seja o tratado constitucional europeu ou a política liberal, que têm um papel progressista comparável ao que Marx dizia do capitalismo no Manifesto comunista. Desenvolvo mais profundamente essa questão em um artigo sobre Negri no livro La discordance des temps.
H.A.: Como avaliar o debate sobre a centralidade do trabalho?
D.B.: O problema é o que se entende por trabalho. É comum em Marx encontrar uma dupla acepção, uma dupla utilização do termo. Isso é verdade para o trabalho, como também para a classe ou para o trabalho produtivo. O que Marx entende por trabalho é a troca, portanto, o metabolismo entre os organismos vivos dos quais fazem parte a espécie humana e suas condições naturais de reprodução. Nesse sentido, o trabalho é um conversor de energia, e a ideia de uma sociedade sem trabalho é um absurdo. Seria dizer que não haveria mais troca, transformação de energia natural em energia cerebral, muscular etc. Desse ponto de vista, enquanto pudermos imaginar a existência da espécie humana haverá uma forma de trabalho e, portanto, uma forma de organização social do trabalho. Outra coisa é o trabalho assalariado capitalista, que é uma forma historicamente determinada de trabalho que não existiu sempre. Agora, em relação ao debate dos últimos anos, veem-se sociólogos que indicam o fim do trabalho. Hoje certos indivíduos trabalham a mais, e para outros, afetados pelo desemprego, falta trabalho. Dessa forma, é preciso distinguir os dois tipos de trabalho. O trabalho no sentido antropológico é um elemento constitutivo da humanidade que faz com que ela pense e se desenvolva como ela se desenvolve. Por outro lado, o definhamento do trabalho como trabalho assalariado, ou seja, como trabalho forçado, poderíamos dizer, está evidentemente ligado ao socialismo e à crítica socialista do trabalho. É preciso, então, retomar a tradição de crítica ao trabalho alienado que foi recoberta ou esquecida por uma espécie de culto stakanovista durante a época stalinista, ou mesmo do culto protestante do trabalho, que Walter Benjamim critica em uma das teses sobre o conceito de história.
H.A.: O que é uma classe? Ela é um conjunto de indivíduos ou um conjunto de relações sociais? Falta ao marxismo uma definição satisfatória de frações de classe?
D.B.: Bom, o que é uma classe? Não é por acaso que não se encontra uma definição descritiva ou aproximativa de classe social em Marx e Engels. Não há definição pois, de início, Marx não trabalha com esse tipo de procedimento de “definição”. Definição é um gênero lógico muito presente na tradição positivista francesa que não está presente na grande lógica alemã de Hegel e de Marx, que é uma lógica da determinação - Bestimmung. Portanto, não é por acaso que não se encontra uma definição satisfatória de classe que seja normativa ou então um tipo de classificação sociológica que tenda a situar, de fato, uma série de indivíduos em categorias socioprofissionais como fazem os estatísticos acadêmicos hoje. Nesse sentido, há uma relação conflituosa, as classes se determinam mutuamente umas em ^ relação às outras com base em uma relação de conflito. No entanto, se eu procuro uma definição a qualquer preço, é possível encontrá-la de maneira pedagógica sobretudo em Lênin, em um texto que se chama La grande initiative. Ele definiu, mas através de critérios muito complexos, pois há o lugar da divisão do trabalho, o lugar da relação de propriedade, há a forma e o montante da renda... Bom, isso permite uma aproximação para se fazer uma ligação com uma concepção estratégica de classe, que para mim seria a questão fundamental, pois, em Marx, não há uma concepção sociológica classificatória de classe. Há, sim, uma concepção estratégica de classe realizada a partir da sua luta. Os elementos fornecidos por Lênin podem ajudar a esclarecer ou enriquecer de maneira pedagógica essa forma de aproximação. Se falta ao marxismo uma teoria de fração de classes? Pode-se sempre fazer melhor, mas ela não está de modo algum ausente. Sobretudo nos textos políticos de Marx, como, por exemplo, o Dezoito Brumário de Luís Bona- parte, há uma análise brilhante das frações de classe e de sua expressão política.
Não penso que seja necessário desenvolver uma teoria especificamente marxista da estratificação de classes. Podemos utilizar, para isso, fontes estatísticas para tentar colocar à prova uma concepção do mundo, uma visão de mundo nos termos da luta de classe.
H.A.: Nesse sentido, como interpretar a teoria de Jacques Bidet e Gérard Duménil que indica a existência de uma classe de cadres?
H.A.: Eles (Bidet e Duménil) fazem uma sistematização de uma classe de cadres(2) como consequência de sua análise estrutural, em especial Bidet, da sociedade capitalista como uma combinação de relações de exploração e de organização. Coloca-se no mesmo pé de equivalência dois tipos de relações, sendo que as de exploração determinam as classes tradicionais, enquanto as de organização podem determinar as outras formas de classes: os cadres, a burocracia etc. Entretanto, depende do que queremos fazer. Depende da utilização que fazemos da categoria, do conceito de classe. Se fazemos o uso sociológico, estamos na ordem da convenção do vocabulário, da convenção terminológica. Poderíamos dizer que existe uma classe de cadres. Agora, ela é também muito heterogênea, isto é, onde ela começa, onde termina? Haveria uma diferenciação muito acentuada entre os cadres superiores e entre um estágio de enquadramento que está mais do lado do trabalho explorado. Não é um conceito que resulta em grande coisa. Na realidade, essa categoria de cadres está fragmentada entre as classes fundamentais. Contrariamente, se tomamos a utilização de classe no sentido estratégico, o interessante é a polarização fundamental de classe. Isso não elimina que existam estratos, categorias chamadas intermediárias, mas que são puxadas e polarizadas pelas classes fundamentais que formam as relações de classe estrutural. Essa teoria pode trazer inconvenientes, fazendo da classe de cadres uma nova classe histórica em ascensão, portadora de um novo modo de produção etc. Cairíamos, com isso, novamente nas teorias da classe gerencial, que não são tão novas assim. Há efetivamente aportes da sociologia de Max Weber que poderia ser interessante colocar em diálogo ou em tensão com a conceituação marxista. Porém, o problema interessante é como se articulam ou, mais exatamente, a meu ver, como se imbricam as relações de exploração e de organização e, finalmente, verificar como tudo isso é um conjunto de relações coerentes e não dois tipos de relações que determinariam dois tipos de relação de classe mais ou menos paralelos e equivalentes.
H.A.: E a noção de multidão, quais os elementos positivos e negativos dela em relação à teoria das classes de Marx?
D.B.: Eu penso que a noção de multidão é inútil e nociva. Ela tem um valor descritivo, mas descritivo em relação a uma imagem estereotipada que se pode ter da classe operária, o tipo operário da indústria. Talvez o termo “proletariado” seja mais conveniente. Ele é mais abrangente e mais antigo. Porém, finalmente, ele descreve uma realidade mais vasta e mais complexa. Um certo tipo de proletariado não desapareceu, estamos longe disso; nós o vemos através da crise hoje. Os sociólogos Beaud e Pialoux, em um livro de investigação sobre a região industrial francesa de Montbéliard, onde estão as fábricas da Peugeot, dizem que a classe operária não desapareceu. Na verdade, ela ter-se-ia tornado invisível, porque talvez haja menos luta, porque interesse menos aos sociólogos, preocupados mais com a exclusão durante os anos 1980 etc. Com a crise, quando se vê o fechamento de indústrias lembra-se, mesmo assim, que a classe operária diminuiu, mas não desapareceu. Em relação a essa desestruturação de relações sociais sob o choque da crise e da transformação técnica, eu compreendo que o conceito de multidão pode ser um pouco sedutor, pois ele parece descrever uma realidade de maneira cômoda. Pessoas que são pequenos vendedores ambulantes etc., que não vivem como os operários, tudo isso é claro. Agora, como conceito estratégico, há um ponto que não está totalmente claro para mim. Negri opõe o conceito de multidão não ao de classe, mas sim ao de povo, sendo o povo a homogeneidade e a multidão a diversidade. Isso já seria discutível. Bom, qual seria a relação entre multidão e classe? Seria preciso reler os textos, mas parece ser relativamente obscuro. Em Negri, as novas tecnologias e as novas formas de organização do trabalho desenvolvem a multidão e, finalmente, a lógica da história se resume a uma confrontação quase direta e clara entre o império e a multidão sem diferenciação. Finalmente, a multidão torna-se o grande sujeito de transformação. Em vez de se trabalhar a questão complexa de saber quais são os componentes atuais do bloco hegemônico em torno das relações de classe, essa complexidade é reduzida pelo conceito de multidão como um tipo de magma que é um novo sujeito, muito hipotético, da história. Portanto, eu vejo muitos inconvenientes e poucas vantagens.
H.A.: Seria possível compreender as novas clivagens entre os trabalhadores com base na tese da revolução informacional?
D.B.: Francamente, eu duvido. Seria correr o risco de um determinismo tecnológico, de dizer que, de fato, as clivagens sociais resultam diretamente, mecanicamente da organização técnica do trabalho. Isso me parece uma pressuposição teórica discutível. Evidentemente, nas formas e, sobretudo, na capacidade de organização social, seja sindical ou política, essas diferenças têm um papel. Na medida em que as novas tecnologias podem desempenhar uma forma de autonomização crescente do trabalho, uma desconcentração no local de trabalho, tudo isso traz consequências em sua capacidade de organização. Isso introduz clivagens fundamentais? Vemos com a crise que uma parte das novas profissões sofre os efeitos da pauperização, assim como as outras, e talvez pior em certos casos, em que há demissões ou pressões sobre o salário. É sempre interessante estar atento a essas diferenciações para pensar a questão das reivindicações sindicais e políticas. Agora, em fazer um inventário teórico fundamental ou clivagens fundamentais eu não acredito. Não concordo em dar à tecnologia um papel predominante nos fenômenos de formação social, os quais compreendem, sobretudo, lutas e fenômenos culturais.
H.A.: Qual é a relação entre trabalho material/imaterial e trabalho concreto e abstrato? Como a produtividade pode ser analisada em face das formas do trabalho cognitivo?
D.B.: Eu creio que não há relação alguma entre a noção de trabalho material e imaterial e a noção de trabalho abstrato e concreto. Trabalho material e imaterial nos remete ao conteúdo de uma atividade; o trabalho concreto é todo aquele que produz bens úteis; já o abstrato é reduzido à sua medida pelo tempo, portanto, à sua medida abstrata. Nesse sentido, não vejo relação. Há, sim, uma confusão que tenta sobrepor a noção de trabalho material e imaterial à noção de trabalho concreto e abstrato. Em relação à produtividade do trabalho, o trabalho imaterial pode ser tão produtivo quanto o material. Se a produção do trabalho é a produção de mais-valia, um trabalho imaterial explorado produz mais-valia como um trabalho material. Alguém que produz programas de computador é uma fonte de lucro para a Microsoft. Se você tem um grupo de pesquisadores assalariados que produzem programas para a Microsoft, você tem produção de mais-valia. Portanto, desse ponto de vista, essa história do trabalho imaterial, desde o momento em que começou a ser utilizada, trouxe muitas confusões. Na realidade, o debate sobre o trabalho produtivo e improdutivo frequentemente é muito mal compreendido. Não é apenas produtivo aquele trabalho que produz bens materiais. O exemplo mais chocante, mais surpreendente e mais conhecido está no Capítulo inédito de O capital, em que Marx utiliza o exemplo da cantora assalariada e, se ela é assalariada, seu trabalho é produtivo. Seu trabalho é totalmente imaterial. Seu canto desaparece assim que ela canta. Exceto hoje, depois de Marx, em que se desenvolveu a indústria do disco e agora a de telecarregamento. A ideia é que mesmo o emprego da voz pode ser considerado um trabalho produtivo se existe uma relação salarial entre empregado e empregador. Portanto, em primeiro lugar, não, isto não tem nada a ver com a materialidade do trabalho. Em segundo, a noção de trabalho produtivo em Marx é delicada, pois é considerada por ele de forma contraditória. O transporte das mercadorias é considerado um trabalho produtivo, pois se não se leva o produto ao seu ponto de venda, a mais-valia não pode se realizar. Nesse sentido, a divisão entre produtivo e improdutivo é um tanto quanto arbitrária. Deveríamos parar no momento em que o trabalhador leva mercadoria ao ponto de venda ou considerar que se não há o trabalhador que coloca as mercadorias nas prateleiras elas também não poderão ser vendidas? Trata-se, assim, de um ponto delicado de se lidar, que não remete à materialidade ou imaterialidade do trabalho e que não permite determinar as classes sociais. Já houve tentativas de se fazer uma teoria das classes sociais a partir do livro II de O capital, baseando-se exclusivamente na relação entre trabalho produtivo e improdutivo. Isso me parece um absurdo. Não é por acaso que o capítulo sobre as classes, se Engels soube interpretar o plano de Marx, vem muito tarde, no livro III de O capital, integrando as diferenças de renda e o conjunto do circuito de reprodução social. Não compreendo, então, como poderíamos parar no livro II e nos conceitos de trabalho produtivo e improdutivo para determinar quem faz parte da classe operária ou não. A consequência é que com frequência essas noções de trabalho produtivo e improdutivo foram utilizadas política e ideologicamente para compor uma definição restritiva de classe operária, que o Partido Comunista utilizava claramente na França para designar somente os operários da indústria, excluindo os employés,(3) os empregados do comércio, as enfermeiras, os empregados dos correios etc. Eu tinha primos que eram operários da indústria, mas que não trabalhavam diretamente na produção, eles faziam manutenção das máquinas, que, inclusive, estavam no Partido Comunista e na CGT. Diziam que não eram verdadeiros operários, verdadeiros proletários porque cuidavam da manutenção para a produção. Aqui temos uma definição do movimento operário tipicamente obreirista e restritiva que tem o papel de autolegitimar, sobretudo, o Partido Comunista como representante da classe operária, sendo todo o resto pequena burguesia etc.
H.A.: As novas formas de produção colocam em xeque a teoria do valor de Marx. Trata-se de uma teoria analiticamente válida?
D.B.: Eu creio que sim. Toda a crise atual ilustra isso, tanto quanto a teoria do valor. Com relação à medida de toda a riqueza e de toda troca pelo tempo de trabalho socialmente necessário, pode-se verificar uma obsessão da medida pelo tempo, quer se trate de fixar o horário semanal de trabalho, a idade para a aposentadoria, a caça ao tempo morto dentro da empresa, a organização dos horários, a flexibilidade etc., que tende a reduzir a diferença entre o tempo de trabalho real e o tempo de trabalho legal. Tudo isso já estava em O capital. Finalmente, a rentabilidade capitalista tem por critério a lei do valor. Agora, esta lei torna-se cada vez mais contraditória, isto que Marx trabalhou nos Grundrisse com, por um lado, a incorporação no processo de produção de formas de trabalho intelectual favorecidas por uma nova tecnologia, mas, por outro, socializadas. Isto é, qual trabalho seria preciso para produzir um programa de computador em um laboratório de pesquisa? É um trabalho altamente cooperativo e socializado. Portanto, quanto mais o trabalho é cooperativo, tanto mais ele incorpora o saber acumulado, mais dificilmente quantificável e mensurável pela medida do tempo de trabalho abstrato ele é. Isso me parece ser um dos fatores-chave da crise social atual, que faz com que os ganhos de produtividade não sejam convertidos em tempo livre, traduzindo-se, pelo contrário, em exclusão social. Para mim, as formas da crise financeira, por exemplo, são muito mais a confirmação do estrago que faz a aplicação instantânea da lei do valor pela medida instantânea de flutuações da bolsa. Eu sei que se trata de um ponto muito discutível, mas ao mesmo tempo em que há a confirmação da validade da lei do valor, há uma confirmação do agravamento das contradições sociais.
H.A.: Como pensar a redução do tempo de trabalho? No capitalismo há tempo livre ou tempo liberado?
D.B.: Há toda uma luta histórica pela redução do tempo de trabalho. Mesmo que o tempo liberado permaneça alienado é, ainda assim, um limite à exploração da força de trabalho; é uma liberdade inconformada. Há outros mecanismos de alienação, que podem ser a mídia, a difusão da cultura, a organização da cidade e do espaço urbano etc. Mas, ao menos formalmente, para recorrermos à fórmula de Marx, durante esse tempo livre o trabalhador tem a possibilidade de consumir programas de televisão, de ajudar no sindicato, ou ler O capital. Portanto, não é uma questão secundária que a luta pela redução do tempo de trabalho seja permanente, inclusive no âmbito do capitalismo. Agora, no âmbito do capitalismo, creio que há uma relação estreita entre um trabalho alienado e um lazer alienado, ou seja, não se pode ser realmente livre fora do trabalho se se permanece dominado no trabalho. Portanto, não é suficiente reduzir o tempo de trabalho forçado, é necessário também transformar o conteúdo e a organização do próprio trabalho, construir a emancipação do trabalho e fora do trabalho. Há uma grande diferença aí. O desemprego promove um tempo liberado, mas um tempo sem liberdade. E há também a conquista de um tempo livre pela redução do tempo de trabalho, mas que pode continuar sendo utilizado de forma completamente alienada. Isso coloca um problema também para o socialismo. É a ideia que encontramos em Gorz, em “Adeus ao proletariado” e em seus livros posteriores, de que haverá sempre trabalhos duros e alienantes, nunca será muito criativo varrer as calçadas ou recolher o lixo e, portanto, será sempre necessário que a sociedade dedique um tempo de trabalho que nunca será criativo e a vida estará além desse tempo de trabalho. Já que não temos robôs para tudo, isso é de fato um problema. Por outro lado, creio que se pode fazer um trabalho alienado e, ao mesmo tempo, desenvolver-se, desabrochar fora dele. O problema para uma sociedade socialista é como distribuir esses tipos de trabalho, como modificar sua organização. Claro que há tarefas que não são agradáveis ou estimulantes, mas isso aponta para uma necessidade de transformação radical da divisão do trabalho como condição mesma de uma sociedade socialista tal como podemos imaginar.
H.A.: Para encerrar, gostaria de saber como seria possível rompermos com a visão de um proletariado como um sujeito mítico da emancipação humana?
D.B.: Não creio que seja o caso de se romper com a ideia de proletariado como sujeito revolucionário. Devemos romper com uma visão que está estreitamente ligada e que reproduz, através dos fenômenos sociais, um tipo de psicologia do sujeito, do indivíduo sujeito, da consciência do sujeito que tem a ver com a psicologia clássica do final do século XIX, começo do XX. De início, imagina-se um proletariado como um grande indivíduo que, como tal, deve passar pela infância, por um aprendizado, chegar à idade adulta com uma espécie de metafísica da consciência do “em si” e do “para si” etc. que encontramos pouco em Marx, talvez apenas uma fórmula na Miséria da filosofia, mas muito mais claramente em Lukács. Tudo isso se nutre de uma má fonte psicanalítica sobre o consciente e o inconsciente. Tudo isso projeta sobre os fenômenos sociais mecanismos que assumem o lugar da psicologia individual e que parecem ser muito discutíveis. Eu creio que seria melhor pensar a constituição de uma força de transformação social. Dizer força não pressupõe a ideia de consciência. Trata-se de uma força de transformação que é de construção permanente, uma combinação de formas organizadas plurais. Todo o problema é justamente o que permite pensar ou ajudar a pensar o conceito de hegemonia, como construir e combinar essas diferentes formas de confrontação com o sistema. O proletariado é ainda um sujeito? Se nós aceitamos a categoria de sujeito, sim. Ou, seria a partir do proletariado que se poderiam combinar diferentes formas de contestação ao sistema capitalista, respeitando a autonomia dos diferentes movimentos? Por exemplo, nada garante que a opressão das mulheres vai acabar com o fim da propriedade privada. Isso justifica a autonomia do movimento de mulheres por um tempo indeterminado, e para além da superação do capitalismo. Hoje, aqui e agora, a luta contra a opressão das mulheres está estreitamente ligada à luta do movimento operário, às reivindicações sobre o tempo de trabalho, ao serviço público etc. E, portanto, trata-se de alguma coisa que é organicamente articulada. O que permite unificar essa luta não é um apriorismo moral, mas o fato de que o capital cria condições, embora não mecanicamente, que permitem pensar como isso é possível.
Notas de rodapé:
(1) Professor de sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e autor do livro: Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo (São Paulo: Annablume, 2009) (e-mail: henriqueamorim @ hotmail.com). Doutorando em Ciência Política pela Unicamp, respectivamente. (retornar ao texto)
(2) Em francês, "cadres", assalariados superiores, responsáveis pela administração das empresas e aparelhos do Estado. (retornar ao texto)
(3) Em francês, "employés": trabalhadores assalariados excluindo-se quadros e operários, como empregados comerciais ou pequenos funcionários de escritórios. Os quadros concentram a iniciativa e a autoridade; os operários produzem no sentido estrito. (retornar ao texto)