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A crítica social na Inglaterra surgiu logo no começo da revolução industrial.
O teólogo Edgard Wallace (1679-1771) foi dos primeiros homens que se preocuparam com os problemas da organização socialista. No seu livro, intitulado Várias perspectivas, publicado em 1761, Wallace indaga: como é possível que o homem, com todos os dons que possui e com todos os tesouros da natureza de que dispõe, se encontre ainda em tão baixo nível cultural? Tanto no domínio da moral como no da filosofia, tanto na esfera das ciências naturais como na da vida social, os resultados pelo homem obtidos não são satisfatórios. O comunismo poderia remediar essa situação? Sim, responde Wallace. O comunismo não é, de forma alguma, contrário a natureza. No estado primitivo da Humanidade, reinava a igualdade absoluta e a comunidade de bens.
Apesar dos ricos e poderosos terem o maior interesse em conservar o regime atual, para eles tão vantajoso, a implantação do comunismo seria também possível nos dias presentes.
O comunismo faria desaparecer a miséria, os trabalhos exaustivos, a ignorância e a imoralidade. Mas a instauração do comunismo é impossível. Numa sociedade comunista, o crescimento da população seria tão grande e tão rápido que, afinal, surgiria inevitavelmente uma luta encarniçada de todos contra todos, porque os meios de subsistência nunca poderão crescer no mesmo ritmo que a população.
Esta conclusão de Wallace mostra-nos quanto é velho um argumento que ainda hoje é utilizado contra o comunismo. Mas esse argumento da superpopulação perdeu todo o valor a partir do último quarto do século XIX. De fato: desde então, em quase todos os países, os governantes procuram combater a crescente diminuição da natalidade, que se vem fazendo sentir em quase todos os países.
Tomaz Spence (1750-1814) foi o primeiro partidário teórico da reforma agrária. No começo da sua vida, Spence foi sapateiro. Teve, depois, outras profissões: professor, guarda-livros, etc. Consagrou-se, finalmente, ao estudo das questões sociais. No ano de 1775, Spence realizou na Sociedade Filosófica de Newcastle uma conferência sobre a ilegitimidade da propriedade privada do solo. Mais tarde, mandou-a imprimir, e ele próprio vendeu essa publicação por alguns centavos o exemplar. Por esse motivo, foi excluído da Sociedade. Depois disso, a brochura foi reeditada sucessivamente, recebendo, de cada vez, um título diferente: Os verdadeiros direitos do homem. (1793); O meridiano da liberdade (1796), A nacionalização do solo (1882), etc. As ideias fundamentais de Spence, como aliás as de quase todos os seus sucessores podem ser assim resumidas: No estado primitivo da Humanidade, o solo era propriedade comum. Desse modo, cada qual, ao nascer, possuía um direito inalienável sobre certa porção do solo. Nessa época, todos os homens eram livres e viviam sem a menor sujeição sem conhecer leis, etc... A igualdade econômica e a liberdade social são, consequentemente, direitos inatos.
Hoje, sabemos que essas ideias se inspiram na velha teoria do direito natural. A partir do século VIII, quando a ciência mostrou que o gênero humano é uma categoria especial de macacos, isto é, uma parte do reino animal, a espécie humana passou a ser considerada uma raça animal, tendo por habitat comum a superfície da terra, do mesmo modo que as florestas, os rios, os lagos e os mares são o habitat das outras espécies animais. Este estado primitivo da Humanidade pouco a pouco desapareceu, talvez em virtude do crescimento da população e das dificuldades de toda sorte daí decorrentes, talvez por causa do espírito de ambição ou da brutalidade de certos indivíduos, que se apossaram, para seu uso exclusivo, de grandes porções do solo. A noção de propriedade privada também poderia ter surgido, a princípio, para as coisas que os homens criaram ou transformaram pelo seu trabalho. Desse modo, a ambição e a violência fizeram desaparecer, pouco a pouco, o primitivo estado de natureza e criaram a propriedade privada do solo. O trabalho pessoal deu origem à propriedade privada dos bens móveis. A velha ordem natural, a partir desse momento começou a desaparecer. Uma nova ordem foi então instaurada mediante um contrato tácito ou expresso, na base do qual se introduziu a propriedade privada e o Estado, a fim de suprimir as dificuldades e as perturbações, e para refrear a violência e a maldade dos indivíduos.
Foi assim que a sociedade civil se constituiu. Indiscutivelmente, essa sociedade multiplicou consideravelmente as riquezas, favoreceu o desenvolvimento da agricultura, do comércio e da indústria, da arte e da ciência, mas também dividiu a Humanidade em ricos e pobres, criou violentos antagonismos de classe e fez surgir o egoismo, o espírito de prepotência, a ambição, a falsidade, a exploração do homem pelo homem, os crimes, e, numa palavra, toda a miséria social atual. É então necessário realizar uma reforma agrária, para unir as vantagens do estado de natureza (igualdade e liberdade) às vantagens do regime atual (multiplicação das riquezas, progresso das ciências, das artes, etc.).
Essa reforma será a municipalização do solo. A nação, reunida em assembleia pública, deve denunciar o contrato social, expropriar os proprietários rurais e entregar as terras às comunas, para que elas, em seguida, aluguem por preços módicos as terras aos camponeses. Os gastos com a administração e a instrução pública serão pagos com importâncias obtidas pela locação das terras. Os demais impostos serão abolidos. O comércio e a indústria, pelo contrário, continuarão livres.
Eis as ideias fundamentais que, ainda hoje, se manifestam em todos os movimentos que reivindicam uma reforma agrária. Essas ideias tiveram, mais tarde, um complemento na teoria da renda de Ricardo. As diferentes tendências deste movimento são bem semelhantes entre si. Não vamos, por isso, estudá-las, nem examinar pormenorizadamente as teorias dos seus principais representantes: Ogilvie, Paine, Dove, Henry George e seus sucessores belgas, franceses e alemães. Todos eles ocupam posição intermediária entre o socialismo e o liberalismo. São, por assim dizer, socialistas-liberais. Mas, na verdade, são mais liberais que socialistas. Spence, entretanto, é uma exceção. Natureza vigorosa e sincera, ele, até o fim da vida, participou de todos os movimentos operários revolucionários do seu tempo.
Seu contemporâneo William Godwin (1756-1836), o fundador do comunismo anarquista, era superior a Spence sob o ponto de vista intelectual, mas bem inferior a ele sob o ponto de vista do caráter. Godwin começou como teólogo. No seminário, leu as obras dos enciclopedistas franceses. Esta leitura exerceu-lhe tal influência sobre o espírito, que afinal Godwin resolveu abandonar o lugar de pregador. Em 1793, escreveu a Justiça social, obra em dois volumes, na qual procurou mostrar toda a imoralidade da ordem social existente. Na sua opinião, o bem-estar geral só poderia ser obtido por meio de uma transformação da organização social, que se inspirasse nos preceitos da justiça. Esta obra causou sensação. As ideias fundamentais de Godwin são as seguintes: A principal faculdade do espírito humano é a razão. É ela que dirige toda a nossa atividade. É dela, pois, que depende a moral. A política, no sentido etimológico do termo, isto é, a atividade social, é formada pelas ações humanas. A política não é mais que uma atividade moral ou imoral de um homem, de grupos de homens, dos governos etc... Consequentemente, a política, como doutrina, identifica-se com a ética. Toda atividade humana é orienta no sentido da conquista da felicidade. Mas a felicidade só poderá ser obtida por meio da virtude, da justiça, da atividade moral. O homem é um ser progressivo e, no mais alto grau, capaz de aperfeiçoar-se. Para que a justiça se torne o móvel principal da atividade humana é necessário unicamente suprimir tudo o que impede a razão de adquirir a consciência nítida da verdadeira justiça. Mas a razão adquire seus conhecimentos no meio exterior. Por isso, ela só poderá receber boas impressões e transformá-las em conhecimentos e em motivos justos e morais se o mundo exterior, a vida social, forem, também, justos e morais. O problema reduz-se, assim, em transformar a vida social de acordo com os preceitos da justiça.
Os principais obstáculos que se opõem a organização de uma vida social baseada nos princípios da justiça são a propriedade privada e o Estado, sobretudo a primeira. É da exatidão ou da falsidade de nosso ponto de vista sobre essa questão que depende o problema de saber até que grau compreendemos as consequências de uma sociedade simples (isto é, sem governo e sem propriedade privada), e o problema de saber se poderemos combater os preconceitos que nos prendem à sociedade complicada (onde reinam a propriedade privada, a opressão do Estado, a polícia, o comércio, a especulação, etc.). O sistema atual de divisão da riqueza é mau; a forma de pagamento do trabalho injusto. O luxo e a miséria, a arbitrariedade e a opressão, a arrogância e a servilidade, são as características mais nítidas da grave moléstia que invadiu a nossa organização social atual. O reinado da propriedade privada fez do egoismo a força motriz principal da atividade humana. Disso resultam os vícios, a imoralidade, a ignorância, os assassínios e guerras, o ódio entre os homens e entre os povos. O homem acha-se atualmente numa situação em que não pode alcançar o seu objetivo: a felicidade.
Eis porque é impossível remediar o estado de coisas atual sem instaurar a igualdade econômica. Isto, por sua vez, só será possível depois da abolição da propriedade privada. Chegar-se-á a esse resultado, não por meio da violência, mas pela educação e pelo progresso das “luzes”. As massas populares devem e podem ser levadas, gracas a uma propaganda metódica, à convicção de que é possível existir uma sociedade sem propriedade privada e sem governo.
Depois da vitória dessa convicção, a razão terá amplos horizontes diante de si, e poderá elevar a Humanidade a um alto grau de civilização e de virtude. A sociedade do futuro não será uma organização estreitamente limitada. Dará a mais ampla liberdade a todos os homens. E a cada qual caberá determinada tarefa no sentido da justiça social.
Em 1796, Godwin casou-se com Mary Wollstonskraft líder do movimento em prol da emancipação das mulheres e autora do livro Defesa dos direitos femininos. Desse enlace, nasceu Mary Godwin, que mais tarde se casou com Shelley, um dos maiores poetas revolucionários de todos os tempos.
O mais notável crítico social da Inglaterra, na primeira fase da revolução industrial, foi, incontestavelmente, o médico Charles Hall (1740-1820). No seu livro Os Efeitos da Civilização (1805). Hall procura formular e explicar cientificamente o antagonismo irredutível que existe entre o capital e o trabalho. Para isso, ele também toma como ponto de partida a ideia de que a propriedade e o Estado não existiam na sociedade primitiva. Essas duas instituições desenvolveram-se em virtude da civilização e o seu desenvolvimento dividiu a sociedade em pobres e ricos, em exploradores e explorados, em senhores e servos. Riqueza significa poderio. A riqueza dá àqueles que a possuem o poder no Estado. A riqueza obriga os pobres a trabalhar nas minas e nas fábricas. A riqueza condena-os aos mais repugnantes e aos mais perigosos trabalhos. Os operários criam os valores, mas só recebem um salário. O lucro nasce justamente da diferença entre o valor e o salário. Esse lucro é repartido entre os grandes senhores de terras, os patrões e os comerciantes. Os ricos retiram dos operários uma parte do produto do trabalho porque possuem capital, isto é, uma certa porção de bens que colocam a disposição dos operários, sob a forma de meios de produção, matérias primas e salários, para que eles produzam uma quantidade de bens superior. Mas os próprios bens que constituem o capital são, igualmente, produto do trabalho dos pobres. Por que motivo os operários se sujeitam a tal situação? Porque não podem deixar de sujeitar-se. O contrato que os prende não foi livremente aceito. Eles não podem escolher: ou aceitam as condições dos capitalistas ou morrem de fome, juntamente com suas famílias. Tal é o dilema diante do qual estão colocados. Há, asism, opressão por parte dos capitalistas, e necessidade absoluta do lado dos operários. Possuidores e não possuidores, capitalistas e operários, estão separados por um antagonismo evidente.
O salário médio do operário inglês é de 25 libras esterlinas anuais. A população operária representa aproximadamente oito décimos da população total do país. Desse modo, numa nação de 10 milhões de indivíduos, 8 milhões pertencem a classe trabalhadora. Admitindo-se que uma família operária tem em média cinco membros, em 8 milhões de indivíduos haverá: 1.600.000 famílias operárias. A renda total dessas famílias é então, igual a 1.600.000 multiplicado por 25 libras esterlinas, isto é, a 40 milhões de libras esterlinas. Ora, qual é a renda anual da nação? Em 1770, a renda rural da Inglaterra era avaliada em 20 milhões de libras esterlinas. Depois de 1770 essa renda aumentou perto de 10 milhões.
Atualmente (1804) ela ascende a 30 milhões de libras esterlinas.
A renda rural, de acordo com os cálculos de Adam Smith, corresponde a um terço do valor do arrendamento do solo, que é de 90 milhões de libras esterlinas. Segundo outros cálculos, essa renda ultrapassa 112 milhões. Passemos à indústria. De conformidade com as afirmações do primeiro-ministro Pitt, o valor da exportação de produtos industriais subia, em 1804, a 50 milhões de libras esterlinas. O mercado indígena absorve o dobro ou mesmo o triplo desse valor. A soma desses valores representa o produto anual do trabalho, ou seja, ao todo, 312 milhões de libras esterlinas. Desta soma os produtores, ou — o que é o mesmo — os pobres, recebem apenas 40 milhões de libras esterlinas, isto é, um oitavo do produto do seu trabalho. Vê-se, assim, que oito décimos da população recebem somente um oitavo da renda nacional anual, enquanto apenas dois décimos da população recebem sete oitavos dessa renda. E os primeiros são os produtores da riqueza!
A miséria dos pobres faz a fortuna dos ricos. Quanto mais a civilização se estende, mais a riqueza se acumula nas mãos dos possuidores. O crescimento da riqueza manifesta-se no aumento da renda agrária, no crescimento das dívidas do Estado — que o colocam na dependência cada vez maior dos financistas — no aumento do número das empresas industriais e comerciais. E o crescimento da riqueza dá-se paralelamente ao da miséria. As camadas médias, que ainda conseguiam manter-se numa situação de relativo desafogo, pauperizam-se cada vez mais. A situação dos pobres piora incessantemente. O crescimento da riqueza aumenta as necessidades dos ricos. Isto determina, necessariamente, maior duração e maior intensificação do trabalho. O antagonismo entre pobres e ricos a tal ponto se agrava que é de recear que 0s pobres acabem fazendo tentativas desesperadas no sentido de libertar-se do jugo intolerável que os esmaga. A semelhantes tentativas, os ricos responderão com medidas de repressão. Essa guerra civil determinará a militarização do Estado e conduzirá provavelmente a uma ditadura pretoriana.
Os ricos já não estão muito dispostos a provocar o incêndio da guerra. O fim de todas as guerras e, ou a extensão do comércio e da indústria, ou a anexação de novos territórios. A luta em que se empenham os ricos de todas as nações comerciais ou industriais para a conquista de mercados, leva, necessariamente, a guerras que, de maneira alguma, são uteis aos pobres, embora os ricos tenham a coragem de afirmar que fazem a guerra para o bem do povo.
É também o desejo de ampliar seus domínios que os leva a submeter os povos de outros países, o que sempre ocasiona sangrentos conflitos. A suscetibilidade dos ricos é tão grande que, pelo menor motivo, eles tomam as armas sob o pretexto de defender a honra nacional. Mas sempre são os pobres que sofrem todas as consequências das guerras. E é justamente por isso que os ricos estão sempre dispostos a declará-la, quando se trata de agredir outros povos.
Há, entretanto, outras causas que levam os ricos à guerra. Quando percebem que os pobres estão decididos a reclamar seus direitos ou a tentar melhorar sua situação, surge, inesperadamente, no horizonte, um conflito internacional qualquer, e os pobres são obrigados a chacinar-se mutuamente. A guerra em que, há vários anos, nos empenhamos contra a França teve por causa, provavelmente, um desses motivos.
Quando o povo francês se ergueu para restaurar a igualdade política e realizar certo número de reformas econômicas, os dirigentes e os ricos de todos os países tremeram de medo e bradaram que a Revolução era uma gota de azeite que, como num tecido, poderia alastrar-se por toda a Europa, se os esforços dos franceses fossem bem sucedidos.
Para evitar que isso acontecesse, declararam guerra à França e obrigaram os pobres a renunciar à luta em prol do melhoramento de sua situação. É bem amarga a lembrança desse fato. Os pobres devem, não só renunciar a todas as esperanças de melhorar de sorte, como ainda suportar o peso das consequências dessa terrível empreitada. Os ricos conhecem maravilhosamente a utilidade da guerra. É por isso que inculcam sentimentos militaristas nas crianças desde a mais tenra idade. Os compêndios da História adotados nas escolas estão cheios de narrativas guerreiras. Neles a guerra é apresentada sob um aspecto admirável e heróico. Esses compêndios enaltecem os heróis e os lances e atos “valorosos”, isto é, as guerras, as carnificinas, mas evitam cuidadosamente dizer uma só palavra a respeito dos horrores da guerra: os corpos despedaçados pela metralha, os gemidos pungentes dos moribundos, os montões de cadáveres em decomposição e os hospitais abarrotados de doentes e feridos.
Quanto deve ser impiedosa essa terrível potência que, a despeito da razão e de todos os sentimentos humanos, é capaz de desencadear sobre os povos as fúrias da guerra! Essa potência terrível é a riqueza, o capital.
Não se pode negar que os povos chamados “selvagens” também se guerreiam, mas, nesse caso, a guerra é o resultado da carência de meios de subsistência necessários à vida, ou do fato de não existirem atividades agrícolas, que permitam produzir os meios para a satisfação das necessidades de todos.
Entre os povos chamados civilizados, pelo contrário, a guerra tem por finalidade a conquista do luxo, de coisas absolutamente supérfluas e inúteis, que não podem servir senão para agravar mais ainda a exploração e a opressão dos pobres. Se fossem os próprios povos que decidissem por si mesmos as questões fundamentais de sua existência, as guerras certamente seriam impossíveis!
E dizer que isso foi escrito há 125 anos!
Hall critica as instituições sociais com bastante violência. Entretanto, limita-se a apresentar proposições de reformas moderadas: nacionalização do solo, volta ao artesanato, simplicidade de costumes, supressão do luxo, etc...