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Quando terminou a guerra dos Cem Anos (1329-1429) entre a Inglaterra e a França, os reis de França continuaram sua política de centralização e, de certo modo, tomaram a defesa dos camponeses e dos artesãos, porque procuraram limitar os privilégios da nobreza, da Igreja e das corporações. O equilíbrio da situação interna teve como consequência uma política expansionista no exterior. Luís XIII (1498-1515) reivindicou a posse do ducado de Milão e conquistou, graças ao auxílio de Fernando o Católico, o reinado de Nápoles. Mas não conseguiu conservá-lo. Seu sucessor, Francisco I (1515-1547), contemporâneo e rival de Carlos V, declarou guerra aos suíços e ao Império alemão e conseguiu do papa que a nomeação dos bispos e abades ficasse subordinada a aprovação do rei de França. Foi no reinado de Francisco I que viveu o reformador francês João Calvino (1509-1564).
Grande número de elementos burgueses, de sábios e de nobres aliaram-se a Calvino e, por isso, foram perseguidos pelo Partido Católico. Calvino, finalmente, transferiu seu campo de atividade para Genebra. Nos reinados de Henrique II (1547-1559), de Francisco II (1559-1560) e de Carlos IX (1560-1574) os calvinistas franceses sofreram sangrentas perseguições, culminadas na famosa noite de S. Bartolomeu (1572), na qual foram massacrados para mais de 20.000 calvinistas. Henrique III (1574-1589), que favoreceu a religião reformada, foi assassinado pelo monge Jacques Clement. Desapareceu, assim, o último descendente da Casa dos Valois, substituída no trono de França pela dos Bourbons. Henrique IV (1589-1610), o primeiro rei de França da dinastia dos Bourbons, era protestante. Mas abjurou a essa religião e voltou à Igreja Católica. “Paris vale bem uma missa” — dizia ele. Sua política de tolerância religiosa (Edito de Nantes, 1598) e a favor dos camponeses, contribuiu notavelmente para o desenvolvimento econômico do país. Assistido pelo ministro Sully, que compartilhava de suas ideias, Henrique IV favoreceu o desenvolvimento das manufaturas (seda, tapetes, etc.), das profissões artesãs, do comércio externo e fundou colônias no Canadá. Juntos, Sully e Henrique IV elaboraram um grandioso plano para derrubar a hegemonia dos Habsburgos na Europa. Mas Henrique IV foi assassinado por um fanático chamado Ravaillac. Seus sucessores Luís XII (1610-1613) e Luís XIV (1643-1715), auxiliados pelos ministros Richelieu e Mazarino, inauguraram um regime autoritário, destruíram os últimos restos do poderio da nobreza, organizaram uma série de guerras contra a Espanha e a Alemanha, oprimiram os huguenotes na França e favoreceram o protestantismo na Alemanha para nela perpetuarem a guerra civil.
A política francesa agravou e prolongou a guerra religiosa que estalara na Alemanha em 1618. Com efeito, esta teria terminado em 1635, se a França não tivesse, com sua poçítica, prolongado o dissídio até o esgotamento completo da nação alemã. Luís XIV entrou, a seguir, em guerra com a Holanda e a Inglaterra, e, depois, com a Espanha e a Áustria, sendo afinal vencido guerra de Sucessão da Espanha (1701-1714). Com o tratado de Utrecht (1713), a França cedeu a Inglaterra quase todas as suas possessões coloniais.
No reinado de Luís XIV, e, particularmente, no fim do século XVII e no começo do século XVIII, a situação da França parecia brilhante. Mas, apesar dos esforços dos seus ministros — e principalmente do célebre Colbert — tendentes a incentivar o desenvolvimento do comércio e da indústria, as guerras de conquista acabaram por arruinar completamente a vida econômica do país. A nobreza transferiu-se de Paris para Versalhes e confiou seus domínios a intendentes, que se preocuparam unicamente com obter das propriedades a maior quantidade possível de dinheiro. Os camponeses gemiam sob o peso esmagador dos impostos, que os administradores e seus numerosos auxiliares arrecadavam de maneira brutal. Com a revogação do Edito de Nantes, os artesãos huguenotes foram obrigados a sair do país. Enquanto isso, a grande burguesia, os especuladores, os encarregados da arrecadação dos impostos e 03 usurários acumulavam formidáveis fortunas. Seus filhos adquiriam por grandes somas os cargos de juízes e os postos de funcionários. Quando Luís XIV morreu, o campesinato estava reduzido a mais completa miséria, a nobreza da Corte procurava encarniçadamente ganhar dinheiro com facilidade e a burguesia já se achava enriquecida, e, em parte, nobre. As longas guerras em que o país se empenhara tinham abalado profundamente a crença no trabalho e na economia. Todo mundo queria enriquecer rapidamente. A França entrou num período de especulações financeiras. Um certo João Law conseguiu, com as suas emissões de ações e de notas de banco, virar a cabeça de toda a França e precipitar o país em grave crise financeira (1720). Na época do reinado de Luís XV, — de 1750 em diante, mais ou menos – surgiram em França os albores da civilização industrial. A necessidade de liberdade, a partir desse momento fez-se sentir com força cada vez maior. De 1750 em diante, aproximadamente, os economistas começaram a manifestar-se contra a intromissão do Estado na vida econômica contra o peso das tradições já senis e a reclamar a destruição de todos os obstáculos que impediam o curso natural das coisas.
“Abaixo a autoridade da Igreja!” “Abaixo o direito comunal dos camponeses!” “Abaixo as velhas corporações e todas as barreiras que impedem o desenvolvimento da produção!” “Os cidadãos devem poder produzir livremente, sob a proteção do direito positivo e do direito natural!” E, embriagados com a liberdade burguesa, os críticos sociais trabalharam para a decomposição do regime da propriedade privada. Surgiu, assim, uma época de grandes e arrojados pensadores. Pode-se dizer que de 1750 a 1793 o espírito francês iluminou o mundo e proclamou o próximo advento da Revolução.
Os escritores que, nessa época, criticavam a ordem existente, podem ser divididos em três grupos principais. O primeiro abrange os escritores sociais, mais ou menos favoráveis ao comunismo. No segundo, incluem-se os escritores burgueses que, apesar de constatarem os males causados pelo regime da propriedade privada, o aceitavam como uma fatalidade e desejavam apenas atenuar-lhes os males por meio de reformas. Ao terceiro grupo filiam-se os utopistas, que, desprezando a realidade, se refugiavam no domínio da fantasia. Esta classificação não é de forma alguma absoluta, porque há muitos pontos de contacto entre o primeiro e o terceiro grupo. Mas poderá servir para uma orientação geral.
Enquanto Corneille, Racine e Molière elaboravam as suas tragédias e as suas comédias para a Corte e a nobreza, enquanto La Fontaine escrevia suas fábulas e Boussuet pregava, enquanto todos esses escritores — e muitos outros ainda — faziam do século de Luís XIV o período áureo da literatura francesa, um pobre padre da aldeia de Etrepigny, nas Ardenhas, desempenhava, desde 1692, sua função de pastor de almas, apesar dele próprio considerar, no íntimo, o cristianismo completamente absurdo e de condenar energicamente, e de um ponto de vista comunista, a ordem social vigente. Por amor a sua pobre comuna aldeã, por falta de coragem, ou simplesmente porque julgava que ainda não chegara o momento de proclamar a verdade revolucionária, esse pobre pastor não manifestou publicamente suas ideias e limitou-se a escrevê-las.
João Meslier — assim se chamava esse padre — nasceu em Champanhe, em 1664. Seu livro foi publicado em edição completa, em três tomos, no ano de 1864, na cidade de Amsterdam, com o título: O Testamento de João Meslier. Esse livro, há mais de um século, era já conhecido na edição incompleta que Voltaire havia divulgado. O Testamento de João Meslier é a obra de um homem que nutria ódio de morte contra o cristianismo; de um homem que considerava a religião instrumento destinado a subjugar e a embrutecer o povo. Com violência inaudita, Meslier ataca a nobreza, o clero, o militarismo, os funcionários, os arrecadadores de impostos e os usurários. Nenhum livre-pensador, nenhum democrata foi mais violento do que ele nos seus ataques contra as instituições da época. Meslier atacava, de modo geral, a monarquia, a religião e o absolutismo. O que mais nos interessa é o lado social da sua crítica. Eis o que ele nos diz, a esse respeito:
“Um outro abuso, que existe e que pode ser encontrado quase por toda parte, é o que consiste na apropriação individual dos bens da terra, em lugar da sua posse e usufruto em comum. Os habitantes de cada localidade deveriam viver como membros de uma mesma família, fazendo com que todos trabalhassem e produzissem coisas úteis, a fim de assegurar desta maneira a subsistência da comunidade. A direção das comunidades não deveria ser entregue aos homens que possuem tendências para dominar, mas aos melhores e aos mais sábios. Os homens deveriam unir-se entre si, para manter a paz, para se auxiliarem mutuamente... É a divisão dos bens da terra, é a propriedade privada que faz nascer antagonismos entre ricos e pobres, entre saciados e famintos, entre grandes e pequenos... Quando se considera todas essas injustiças — o luxo de um lado, a miséria de outro — quando se verifica que esta divisão não tem por causa a virtude, de uma parte, e o vício, de outra, chega-se à conclusão de que é absolutamente impossível a existência de um Deus, porque é impossível acreditar que tolerasse tal inversão da justiça... Os primeiros cristãos viviam em comum. Mas os padres sofistas substituíram a comunidade de bens terrestres pela comunhão, isto é, pela comunidade de bens imaginários. Mas, no que lhes diz respeito, os monges sabem muito bem apreciar a comunidade dos bens terrestres. /tanto assim que estão ao abrigo da miséria. Pascal também manifesta essa mesma opinião quando, nos seus Pensamentos, afirma que a apropriação individual do solo e os males que disso decorrem se explicam pelo fato de cada qual procurar apoderar-se das coisas que deveriam pertencer a todos. E o divino Platão queria criar uma República na qual a propriedade privada seria fatalmente abolida.
A desigualdade é uma violação do direito natural. Todos os homens nascem iguais. Todos os homens têm o mesmo direito de viver, de gozar de sua liberdade natural e de tomar a parte que lhe cabe dos bens da terra, trabalhando para produzir os meios de subsistência necessários. Mas, dado que eles vivam em sociedade, e que esta pressupõe certas relações de subordinação, os homens devem aceitá-las. Mas é preciso que esta subordinação necessária não degenere em desigualdade.
A salvação da Humanidade está na união dos povos contra os tiranos e na compreensão das leis da natureza, que reclamam a comunidade de bens e o trabalho de todos”.
Morelly, autor da célebre obra O Código da Natureza, exerceu no pensamento comunista influência mais profunda que Meslier. Quase nada se sabe sobre a sua vida. Morelly nasceu em Vitry-le-François. Em 1753, publicou um livro, O Naufrágio das Ilhas Flutuantes, poema épico em quatorze cantos, no qual descreve uma sociedade baseada no comunismo e no amor livre. Dois anos depois, apareceu seu Código da Natureza, cuja autoria, durante muito tempo, foi erradamente atribuída a Diderot. Nas suas obras, Morelly expõe as seguintes ideias:
“A miséria social é a consequência da incompreensão, pelos filósofos e pelos homens de Estado, das leis da natureza. A incompreensão dessas leis fez com delas fossem tiradas conclusões falsas. A natureza uma máquina admiravelmente bem-feita. Ela deu aos homens necessidades e forças e colocou-os em um meio no qual, se compreendessem as leis naturais e em harmonia com elas, todos poderiam ser felizes e virtuosos. O homem não nasce nem bom nem mau. O homem não tem ideias nem disposições inatas. Quando vem ao mundo, é um ser completamente indiferente. São suas necessidades materiais, sempre mais poderosas que as suas forças individuais, que o fazem sair dessa indiferença. Este antagonismo entre as necessidades e as forças produz os mais salutares efeitos, porque obriga o homem a trabalhar, a pensar e a unir-se a seus semelhantes, numa palavra, a “socializar-se”. A diferença de necessidades e de capacidade torna ainda mais necessária essa “socialização”. Para que os homens pudessem satisfazer as suas necessidades, a natureza deu-lhes a terra, com todas as suas riquezas. Eis porque a terra pertence, de maneira comum, a todos os homens. A terra é a base da existência humana. Nessa base, edifica-se a sociedade, que, na variedade e na diversidade de suas ocupações, de suas capacidades, de suas obrigações, seria uma máquina admiravelmente equilibrada, perfeitamente em harmonia com os interesses de todos, se os filósofos, os legisladores e os homens de Estado tivessem estudado e obedecido às leis naturais. Desgraçadamente, não foi o que fizeram. Eles, em vez disso, transformarem a terra em propriedade privada, provocaram partilhas, divisões e antagonismos, determinando, assim, o fracasso das intensões da natureza e a degenerescência das necessidades e das forças por ela criadas. É daí que provém todos os males que afligem a sociedade atual, males que não poderão ser suprimidos nem remediados por meio de leis humanas e de formas de Estado, sejam elas de pureza democrática, aristocrática ou monárquica. Esses males só poderão desaparecer no dia em que os homens voltarem às leis da natureza, que podem ser assim formuladas:
Ninguém pode possuir coisa alguma como bem exclusivamente seu, com exceção apenas das coisas indispensáveis ao uso quotidiano de cada indivíduo.
Cada cidadão é um funcionário da sociedade e deve ser mantido por meio de fundos públicos.
Cada cidadão deve contribuir com a sua parte, na medida de suas forças e de suas capacidades, para o bem-estar geral. Seus deveres, na sociedade em que vive, devem ficar subordinados a esse princípio geral, em harmonia com as seguintes leis social-econômicas;
Cada povo deve ser dividido em famílias, em tribos, em comunidades e, se possível, em províncias. Todas as tribos serão constituídas pelo mesmo número de famílias. A totalidade dos produtos fabricados em cada uma das tribos será depositada em armazéns públicos, para ser, em determinadas épocas, distribuídas entre os cidadãos. Na falta de um armazém, os produtos serão levados a uma praça pública e aí repartidos. As sobras de produtos verificadas serão postas de lado e guardadas para os períodos de crise ou de calamidade. O comércio com os povos vizinhos só poderá ser feito por trocas, e ficará sujeito ao controle público.
Cada cidadão capaz para o trabalho deve ser ocupado na agricultura da idade de 20 anos até os 25.
A administração do Estado será confiada a um Senado, cujos membros serão eleitos anualmente pelos chefes de família cuja idade seja maior de 50 anos.
Os casamentos terão a duração de 10 anos e, para serem válidos, deverão ser aprovados pelo Senado Municipal.
A vida de Gabriel B. Mably é mais conhecida. Sabe-se que nasceu em Grenoble em 1709 e morreu em 1785. Mably recebeu educação esmerada. Estudou teologia, mas voltou-se logo para a política e tornou-se redator no ministério do Exterior. Publicou estudos sobre a História da Antiguidade, sobre a História de França e sobre questões diplomáticas. A princípio, defendeu a ordem existente. Mas, em seguida, adotou uma atitude crítica e publicou, em 1768, uma polêmica intitulada Dúvidas submetidas aos filósofos economistas. Esta obra era dirigida principalmente contra Mercier de la Revière e contra todos os economistas que consideravam a propriedade privada como a mais natural e a melhor das instituições, a qual deveria ser protegida por um governo despótico. A essas teorias, Mably opôs o direito natural comunista, a legislação de Licurgo, o Estado de Platão e fez um confronto entre as suas vantagens e os males causados pela propriedade privada e a desigualdade social. Em Mably observava-se forte influência de Morelly. Numa de suas obras, Mably escreve o seguinte: “Quando ouço falar numa ilha deserta, de clima agradável e salubre, sinto vontade de partir para nela fundar uma República, em que todos seriam iguais, igualmente ricos e igualmente pobres, onde todos viveriam livres e fraternalmente. Nossa primeira lei seria: ninguém poderá ter propriedade privada. Depositaremos os frutos de nosso trabalho em armazéns públicos. Todos os anos, os pais de família elegerão os administradores encarregados de fornecer a cada um os meios de subsistência necessários, e de distribuir as tarefas que a coletividade exigir de cada um”.
Mably reconhece que os homens educados na sociedade atual são muito egoístas e, por isso, incapazes de fazer do interesse geral o movel principal da sua atividade. O egoismo é, atualmente, mais forte que o sentimento de solidariedade social. Mably julga, por isso, que, só depois de se restringirem os direitos de propriedade, por meio de reformas progressivas destinuadas a fazer desaparecer o egoismo — reformas que só favorecerão a propriedade adquirida pelo trabalho pessoal — será possível modificar a ordem social. Nesse sentido, na opinião de Mably, seria necessário restringir o direito de herança, fazer pesar a maior parte dos impostos sobre os proprietários do solo e do capital mobiliário, reduzir ao mesmo tempo os impostos pagos pelos trabalhadores e, além disso, suprimir progressivamente todas as diferenças hierárquicas entre os funcionários, estabelecendo a igualdade de salários, a fim de que a natural desigualdade de capacidades desaparecesse, praticamente, no trabalho coletivo.
No decorrer da segunda metade do século XVIII, a teoria do direito natural estava tão difundida em França, que até escritores hostis ao comunismo adotavam atitude crítica em relação a propriedade privada.
O mais célebre, se não o mais consequente desses escritores, foi Jean Jacques Rousseau (1712-1778). No livro que publicou em 1753 sob o título Da desigualdade entre os homens, Rousseau, declara o seguinte: “O primeiro homem que levantou barreiras em torno de um campo e declarou: “Este campo é meu!”, — e encontrou pessoas bastante ingênuas para nisso acreditar – esse homem foi o verdadeiro fundador da sociedade. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quanta miséria e horror e quantos prejuízos pouparia à nossa raça um homem que após derrubar todas as barreiras e encher todos os fossos, gritasse aos seus semelhantes: “Não acreditemos nesse imposto! Estaremos perdidos se esquecermos que os frutos são de todos e que a terra não é de ninguém”
Numa outra obra de Rousseau, Emílio (1762), poderemos encontrar várias passagens desse mesmo gênero; “Qs prazeres, na sociedade, devem ser adquiridos pelo trabalho. Todos devem trabalhar. Um cidadão inativo, rico ou pobre, poderoso ou fraco, não passa de um bandido”.
O jurista conservador Simon N. H. Linguet (1736-1794), na sua Teoria das leis civis (1767), lamenta-se porque a sociedade burguesa destrói a liberdade natural do homem... Desde que nasce, o homem já está manietado por esta monstruosa cadeia que se chama sociedade... Ao primeiro olhar, que deita em torno de si, vê no mundo seres, seus semelhantes, carregados de cadeias. E esses seres alegram-se quando percebem que mais um companheiro virá compartilhar a sua escravidão. A ambição e a violência apoderaram-se da terra. E ninguém pode atingir a propriedade, a não ser colocando-se sob a sua bandeira. “A justiça é a vontade eterna e voluntária de dar a cada um o que por direito lhe cabe”. Assim falam os juristas. Mas, na verdade, aquele que é pobre nada tem senão a pobreza. E as leis nada lhe poderão dar, porque elas têm por finalidade única defender os que vivem na abundância contra os ataques dos que não têm sequer o necessário para viver. As leis são ditadas pelos ricos. São eles, evidentemente, que delas se aproveitam. Podem ser comparados a fortalezas, pelos ricos construídas em território inimigo. As guerras são causadas pelas leis, porque as guerras têm por causa o amor à propriedade. E em que se baseia a propriedade, a não ser nas leis? A finalidade da sociedade burguesa é libertar os ricos de todo e qualquer trabalho. A situação do operário livre é pior que a do escravo. Porque o escravo sabe que comerá, mesmo quando não tiver trabalho. E que acontece com o com o operário livre, quando não encontra trabalho? Quem dele cuida, quando se vê condenado a morrer de fome e de miséria?”
Em Linguet, também se encontram muitos pensamentos desse gênero. Entretanto, Linguet foi conservador até morrer. De fato, ele afirmava que. a sociedade engendra necessariamente a desigualdade e todas as suas consequências.
Jacques Nacker, ministro das Finanças de Luís XVI (1732-1804), terminou sua obra sobre o comércio dos cereais com as seguintes palavras:
“Contemplando-se a sociedade, é impossível deixar de verificar que todas as leis, todas as instituições sociais têm por finalidade única a garantia do bem estará dos ricos. Se abrirmos um código de leis, ficaremos horrorizados porque iremos encontrar, em cada página, a confirmação dessa verdade. Compulsando as leis, tem-se a impressão de que uma ínfima minoria, um punhado de homens, dividiram a terra e fizeram as leis, para se defender contra a massa de indivíduos que nada possuem... As leis, para esses homens, têm a mesma utilidade que as cercas que se levantam para proteger as florestas das incursões de animais ferozes”.
Citemos, finalmente, uma interessante passagem de Brissot (1736-1794) tomada em seu livro Pesquisas filosóficas sobre a propriedade e o roubo: “Quando se baniu a comunidade da terra, manifestou-se o antagonismo entre ricos e pobres de maneira cada vez mais clara. A partir desse instante, a sociedade cindiu-se em duas partes. Na primeira, estão os proprietários; na segunda, as grandes mansas populares. E para reforçar o cruel direito de propriedade, foram criadas leis severas e castigos cruéis. Aquilo que se chama roubo não é mais que a violação desse direito dos ricos, embora, na realidade, à luz do estado de natureza, o verdadeiro ladrão seja aquele que possui muito, aquele que é rico. Mas, na sociedade, dá-se justamente o contrário: ladrão é aquele, que rouba a propriedade dos ricos. Como uma mesma coisa apresenta matizes tão diversos, quando encarada sob dois pontos de vista antagônicos!”
Entretanto, é preciso notar que Brissot não era um revolucionário, nem tão pouco um jacobino moderado, mas simplesmente um girondino, isto é, um republicano moderado. E foi justamente como republicano moderado que os jacobinos enviaram Brissot à guilhotina.
Foi Dionísio Vairasse d’Allais o primeiro escritor francês que descreveu uma sociedade comunista. Sua obra História dos sevarambos apareceu, primeiro em inglês, em Londres, no ano de 1765, depois em francês, em Paris, em 1777-1778.
Vairasse teve uma juventude movimentada. Primeiramente serviu no exército francês, depois na esquadra inglesa. Depois, viveu algum tempo em Londres. Finalmente, estabeleceu-se em Paris como professor de línguas. Sua História dos sevarambos, logo depois de aparecer, foi traduzida em alemão e em holandês. Nela, Vairasse descreve, fantasticamente, a vida dos sevarambos, habitantes de uma ilha da Austrália, que tinham sido organizados em sociedade por um sábio chamado Sevaris — do qual deriva o nome de sevarambos. Os princípios em cujas bases Sevaris realizou a organização social de seu povo eram os seguintes:
Os males existentes na sociedade humana têm três fontes principais: o orgulho, a ambição e a ociosidade.
O primeiro desenvolveu a desigualdade entre nobres e homens do povo, entre senhores e servos. A segunda dividiu a sociedade em ricos e pobres. Finalmente, é a terceira que determina os excessos, as conspirações e faz com que os homens se esqueçam dos tesouros da natureza e do espírito humano. Eis porque Sevaris resolveu abolir completamente todas as diferenças de castas, conservando unicamente aquelas que decorrem das qualidades morais dos indivíduos. A seguir, suprimiu a propriedade privada. Todos os bens, todas as terras, foram declaradas propriedades do Estado. Por esse meio, aniquilou a ambição, os processos civis, os impostos, os direitos alfandegários, a carestia da vida e a pobreza, que haviam causado tantas desgraças. Após a aplicação dessas leis, todos os sevarambos ficaram ricos, embora nada possuíssem individualmente, porque todos os bens do Estado lhes pertenciam. Desse modo, cada um deles podia considerar-se tão feliz como o mais rico monarca da terra. Como a comunidade de bens exige o trabalho obrigatório de todos os cidadãos, Sevaris decidiu que todos deveriam trabalhar e dividiu o dia em três partes: oito horas de trabalho, oito horas de repouso e oito horas de sono. Só os velhos, as mulheres grávidas, os doentes e as crianças ficaram isentos de trabalho. Mas, como a ociosidade era considerada a maior vergonha, mesmo aqueles que ficaram isentos de trabalho social obrigatório, voluntariamente procuraram dedicar-se a uma ocupação útil qualquer.
Os sevarambos tiveram particular atenção com a educação e instrução das crianças. Dos sete aos onze anos, todas as crianças recebiam uma instrução elementar destinada ao desenvolvimento simultâneo do corpo e do espírito. Depois, frequentavam escolas profissionais de agronomia, onde trabalhavam apenas quatro horas por dia. Todos os jovens aprendiam a ser ponderados, a respeitar a lei, os velhos e a religião. Os sevarambos eram geralmente monógamos, com exceção dos funcionários, que podiam casar-se com várias mulheres. A forma de governo adotada era “heliocrática”; isto é, o sol era adorado como a suprema divindade. Elegia-se o seu representante na terra entre os mais altos funcionários do Estado. Mas era o povo quem indicava todos os demais funcionários.
Os sevarambos viviam em comum nos grandes edifícios. Em cada edificio havia um armazém, onde os cidadãos, mediante a apresentação de bônus, retiravam todos os produtos de que necessitavam.
Vê-se que as ideias expostas por Vairasse, no seu livro, foram, na quase totalidade, tiradas das obras de Tomaz More e de Campanela. As demais Utopias que em seguida apareceram — e apareceram muitas Utopias em França e na Inglaterra, no período compreendido entre o século XVIII e o século XIX — foram, na sua maioria, simples imitações grosseiras. O que as distingue entre si é, em primeiro lugar, a questão do casamento (uns defendem a monogamia, outros o casamento por prazo determinado ou o amor livre) e, em segundo lugar, a questão da forma de governo (uns preconizam a monarquia, outros a democracia, outros finalmente a anarquia).
Para não ir mais longe neste assunto, vamos apenas citar as principais Utopias do gênero: A terra austral desvendada. (1676), de Gabriel de Foiny (anarco-comunista); Viagens e aventuras (1710), de Jacques Massé (comunista-deista); Memórias de Gaudêncio de Lucques (1746), de Bernington, imitação de Campanela e de Vairasse; A República dos Filósofos (1768), de Fontenelle, descrição de uma sociedade comunista ateia, baseada na escravidão; História Natural e Civil dos Galigenos (1770), descrição de uma sociedade comunista, baseada no amor livre; Descoberta austral (1781), de Restif de la Bretonne, comunista-ético.
O Telêmaco de Fenelon (1698), no qual a antiguidade grega é idealizada, originou também várias imitações de caráter utópico.
Enquanto os autores de Utopias descreviam as sociedades mais ou menos ideais, os meios cristãos, principalmente na Alemanha e em França, conservavam bem vivas muitas tradições herético-comunistas. Os adeptos dessas tradições eram perseguidos de todos os modos pelas autoridades. Mas a época da Inquisição já havia passado. Não podendo mas viver na sua pátria em virtude do ideal que professavam, os fiéis de tendências herético-comunistas resolveram emigrar. Eis porque partiram para a América, a fim de fundar colônias onde livremente pudessem pôr em prática suas ideias. Os Estados Unidos tomaram-se, assim, um refúgio dos últimos sobreviventes do movimento herético, que desejavam viver segundo o seu ideal. Além dessas colônias, surgiram, mais tarde, as que foram fundadas pelos partidários de Owen, de Fourier e de Cabet. Mas nós vamos deixá-las de lado, provisoriamente, porque serão estudadas quando tratarmos de um período histórico ulterior.
Uma das primeiras comunidades religiosas comunistas da América foi a dos shakers, fundada em 1776, em Watervlier, no Estado de Nova York, sob a direção de uma inglesa chamada Ana Lee. Com o correr do tempo, o número de adeptos cresceu de tal modo, que foi possível criar várias outras comunidades, filhas da primeira. Mas o número de aderentes não foi nunca além de 5.000. Os membros dessas comunidades entregavam-se a uma vida perfeitamente monacal: castidade absoluta, moralidade estrita, exercícios religiosos, alimentação frugal, etc. — eis as condições da sua vida. As comunidades dividiam-se em “famílias”. E, em cada “família”, a gestão dos bens era feita em comum.
A mais importante comunidade dos shakers foi a de Harmony, na Pensilvânia, fundada pelos camponeses suavos, que emigraram em 1803, sob a direção de Jorge Rapp, e vieram fundar uma colônia comunista na América. Entre eles reinava a igualdade e a concórdia. Em 1814, venderam a colônia pela soma de 100.000 dólares e foram fundar, no Estado do Indiana, uma nova colônia, que também prosperou e se tornou muito rica. Mas, como o clima da nova pátria não convinha, os membros da comunidade venderam novamente esta segunda colônia a Roberto Owen, por 150.000 dólares. Depois, instalaram uma, terceira colônia que denominaram Economy, a qual também prosperou consideravelmente, apesar da atividade desmoralizadora de um certo número de aventureiros, que nela se insinuaram e que conseguiram provocar várias cisões. Até o ano de 1807, os membros da comunidade admitiam o casamento. Mas, a partir desse ano, resolveram estabelecer o celibato obrigatório. O rápido desenvolvimento do Estado de Pensilvânia, de 1870 em diante, em consequência do incremento da indústria petrolífera, desvaneceu o sonho comunista. Atualmente, os rapistas estão organizados numa sociedade por ações, e possuem grandes extensões de terras, minas de petróleo, usinas, etc...
É preciso lambem lembrar a comunidade de Zoar formada por um certo número de camponeses suavos que, em virtude de suas convicções religiosas, estavam na sua pátria constantemente expostos a perseguições. Graças a uma subvenção, que receberam dos quaquers ingleses, esses camponeses emigraram para a América, chefiados por José Baumler, e fundaram uma colônia comunista no Estado de Ohio. Esta colônia, que a princípio prosperou, subsistiu até 1898. As colônias comunistas de Bethel, no Estado de Missouri, e de Aurora, no Oregon, fundadas por um tal doutor Keil e constituídas quase exclusivamente por indivíduos de origem alemã, também prosperaram imensamente até a morte de seu chefe.
Mencionemos, finalmente, para terminar, a colônia de Amana, fundada por membros de uma seita comunista alemã. Em 1842, cerca de mil membros de tal seita emigraram para a América. Em 1901 sua colônia já contava, repartidos entre 7 aldeais, 1767 membros, que se dedicavam especialmente à agricultura e à indústria artesã. Seus bens, nessa data, elevavam-se a 1.647.000 dólares. Possuíam moinhos, forjas, fábricas de sabão e de produtos têxteis. Utilizavam-se, também, do trabalho de operários assalariados. Mas, entre eles, as oficinas eram limpas; não se trabalhava em ritmo acelerado, mas com muitos intervalos para repouso. Os membros da comunidade viviam segundo regras comunistas, com simplicidade, à maneira dos primeiros cristãos.
De um modo geral, o êxito dessas colônias dependia da fidelidade de seus membros ao ideal religioso que norteava a vida da comunidade, assim como das qualidades pessoais dos chefes.