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Quando, durante a segunda metade do primeiro século antes de Jesus Cristo, os romanos entram em contacto mais ou menos direto com as tribos germânicas, encontram nos territórios situados além do Reno condições de vida social que lhes parecem, às vezes, absolutamente incompreensíveis, outras organizadas de acordo com os princípios do direito natural. É o que se vê principalmente nos escritos de Júlio César e do historiador romano Tácito.
Eis o que Júlio César escreve sobre as condições de vida das tribos germânicas:
"A nação dos suevos é a mais belicosa de toda a Germânia. Dizem que é formada por cem cantões. Dizem também que de cada cantão, todos os anos, saem mil homens armados que partem para a guerra. Os que ficam no país trabalham para si mesmos e para os ausentes. No ano seguinte, eles tomam as armas e partem para a guerra. E os primeiros ficam no país entregues às fainas pacíficas. Deste modo, todos os habitantes podem dedicar-se tanto à agricultura e à ciência, como à guerra. Mas nenhum deles possui a Terra em separado ou como bem próprio, nem se pode estabelecer ou conservar-se por mais de um ano no mesmo lugar. Os habitantes desse país quase não se alimentam de trigo. Vivem principalmente do leite e da carne dos rebanhos, e dedicam-se à caça. Em virtude deste gênero de vida e deste tipo de alimentação, em virtude dos exercícios diários que praticam e da liberdade que gozam (desde crianças não estão sujeitos a nenhum dever ou disciplina e cada um faz o que quer), os germanos são homens robustos e de estatura gigantesca”.
E mais adiante:
"Os germanos nutrem-se principalmente de leite, queijo e carne. Nenhum deles possui campos limitados nem terras de sua propriedade. Os magistrados e os chefes estabelecem todos os anos as terras, os lugares e as quantidades que julgam convenientes para que um determinado grupo de pessoas ou de famílias aí se instalem e vivam em sociedade com um de bens. No ano seguinte, obrigam as famílias a mudar de localidade”.
Através dessas descrições de uma testemunha ocular, vê-se que as tribos germânicas não vivem mais num estado de comunismo puro. Mas as características da organização primitiva — tais como a igualdade, a liberdade, a simplicidade e a coragem — ainda se manifestam com bastante nitidez.
Um século e meio depois de César, Tácito escreve A Germânia, que é, nos dias presentes, uma das principais fontes para o estudo da História da Alemanha primitiva. Eis o que Tácito diz sobre as condições de vida social dos germanos:
"As terras são divididas periodicamente entre as famílias, de acordo com as categorias e as dignidades de cada uma. Esta divisão é facilitada pela grande extensão das planícies, tão vastas que, apesar das partilhas anuais, sempre algumas porções de terra ficam desocupadas”.
Na época de Tácito, entre os germanos, a primitiva organização comunista já estava num estado de decomposição mais avançado que no tempo de Júlio César. Os germanos já mantinham relações mais frequentes e intensas com os romanos e com os habitantes da margem esquerda do Reno. Quanto mais os germanos entraram em contacto com a cultura romana, mais rapidamente desapareceu o comunismo primitivo, e mais depressa se decompôs a antiga comunidade da tribo e se desenvolveram, entre eles, o comércio e a economia privada. O regime de economia privada foi, em primeiro lugar, adotado para os bens móveis e o gado; a seguir para as casas e os jardins. Por último, o próprio solo se tornou propriedade privada. Mas os bosques e os prados continuaram a ser propriedades coletivas, sendo por isso denominados alemende, isto é, bens comuns. Em inglês, os prados ainda se chamam nos dias presentes commons.
Na época de Tácito, a administração dos germanos era ainda democrática e baseava-se em princípios comunistas. A unidade de então não era o indivíduo mas a família, dirigida por seu chefe. Os membros de cada família estavam estreitamente ligados pelo parentesco de sangue e pelas tradições dos antepassados. O solo pertencia à família e não ao indivíduo. O sistema militar da país baseia-se nessas unidades familiares. Os casamentos eram estabelecidos pelas famílias dos cônjuges. O indivíduo diluía-se no seio da família de que fazia parte. Quando os germanos se fixaram no solo, várias famílias formaram um cantão. Estes cantões já eram, sem dúvida, unidades geográficas semelhantes aos nossos cantões modernos; mas era ainda o parentesco de sangue que constituía o elemento principal e não o território em que estavam localizados. É nisto justamente que reside uma das diferenças essenciais entre a organização em tribos dos tempos antigos e a organização estatal moderna. A sociedade primitiva está organizada na base dos laços de parentesco de sangue e é, além disso, uma comunidade. A sociedade moderna, pelo contrário, está organizada unicamente na base da localização geográfica e a sua organização jurídica é o Estado.
Para não sermos levados ao erro, é preciso saber interpretar as palavras rei, príncipe, funcionário, frequentemente usadas pelos escritores romanos quando descrevem a vida dos germanos, porque estas naquele tempo não tinham o significado que nós lhes damos atualmente. Reis, príncipes e funcionários não eram, naquela época, senão chefes eleitos pelas Assembleias do povo. Eram simples administradores ou simples chefes militares, eleitos em Assembleias que se realizavam periodicamente em certas épocas bem determinadas — na lua nova ou na lua cheia. Eram esses chefes que resolviam todos os assuntos importantes, incluso as questões de guerra e de paz. A base da vida dos germanos da época primitiva era o sistema de self-government e de autodisciplina.
É preciso não esquecer, por outro lado, que a sociedade germânica primitiva se encontrava numa etapa muito inferior do desenvolvimento econômico e social. A agricultura estava atrasadíssima e entravada por numerosas tradições, que impediam qualquer espécie de iniciativa pessoal. Seu rendimento era, por isso, diminuto. A técnica achava-se na primeira infância O próprio ferro era ainda considerado metal precioso. Só havia naquela época duas espécies de artesãos: os ferreiros e os oleiros. Não havia cidades, a não ser nos territórios da margem esquerda do Reno. A cidade dos Ubios (Colônia), que César menciona tantas vezes, fora fundada pelos romanos. Numa palavra, a cultura romana mostrou-se mais forte que a força militar dos germanos.
As tribos germânicas destroçaram o Império romano. Mas não podiam substituí-lo, e continuar-lhe a obra. Por isso, acabaram sendo vencidas pela sua cultura superior. Do alto das posições conquistadas, os germanos contemplaram, admirados e confusos, a vasta organização política, a técnica, o conjunto da vida econômica e cultural do mundo romano, sem saber o que fazer.
O avanço dos germanos para o Ocidente não obedecia a nenhum plano preestabelecido. Os grandes acontecimentos históricos não resultam, em geral, de projetos longamente preparados. São consequências de movimentos de caráter espontâneo e elementar. Só podem triunfar nestas empresas os povos que, após o início do movimento, possuem homens e forças capazes de dirigi-lo e de encaminhá-lo no sentido da defesa de seus próprios interesses.
No estado de desenvolvimento social em que se encontravam, as tribos germânicas poderiam, sem dúvida, formar bons guerreiros. Mas não possuíam a capacidade necessária para ocuparem o lugar dos romanos, herdeiros de toda a cultura da Antiguidade. Noutras palavras: os germanos não podiam transformar o Império romano num Império germânico.
A organização em tribos é essencialmente descentralizada. Não possui nem a visão de conjunto, nem os meios necessários para a administração de grandes territórios.
A verdadeira força do progresso manifesta-se nas migrações, que surgem em consequência de grandes modificações climatéricas verificadas na Ásia central, ou em consequência da expansão chinesa no século I D. C., expansão que obrigou os povos asiáticos a sair dos territórios que até então haviam ocupado. As tribos nômades e sedentárias da Ásia central, por influência desses fatos, deslocaram-se para o Ocidente. As diferentes vagas migratórias exerceram pressão recíproca, recalcaram-se mutuamente, repeliram-se, até que se chocaram com os godos da bacia do Dnieper e do Baixo Danúbio. Os godos eram a tribo germânica que mais se aventurara para o lado do Oriente. Estes, por sua vez, começaram a avançar para o Ocidente e para Sudoeste, fazendo pressão sobre os seus vizinhos eslavos sobre as fronteiras do Império romano. Atrás deles vieram os hunos, e depois os vândalos, os suevos, os burgondos, os francos, os alemães. Essas grandes massas em movimento marcharam sobre Roma que, no ano 410, caiu sob o poder dos godos. Mas nenhum desses povos estava em condições de substituir o Império romano. Sua descentralização e sua divisão permitiram apenas que eles arrancassem vários territórios do Império romano. Nesses territórios, criaram reinos de efêmera duração, tais como o dos godos ocidentais no sul Galia e na Espanha (de 415 a 711); o dos vândalos, no norte da África (de 429 a 534), e, na Itália, o dos ostrogodos (de 493 a 553) e o dos lombardos (de 568 a 774).. De todos, o que durou mais tempo foi o reino dos francos. Mas não possuía igualmente a capacidade de organização do Império romano. Foi fundado no fim do século V, e desapareceu em 843, em virtude do tratado de Verdun.
Mas, em toda a parte, as tribos germânicas vitoriosas perderam a antiga organização e abandonaram costumes e tradições; afinal, foram assimiladas pela cultura romana.
Os vencedores pouco a pouco foram adotando a divisão em classes, a estrutura econômica, o modo de vida, em geral, da sociedade romana.
De outra parte, a cultura romana sofreu muitas influências perturbadoras com essas migrações e invasões dos germanos e dos hunos e com as tentativas germânicas de reorganização. A população das cidades decresceu consideravelmente. A consequência natural deste despovoamento das cidades foi a decadência do comércio e da indústria. A Europa ocidental retorna à economia natural. Mas, desta vez, a economia natural não está mais baseada no trabalho em comum e na administração democrática. Baseia-se agora no feudalismo e na economia camponesa, dentro dos quadros de um Estado autoritário.
A reorganização da Europa, na Idade Média, faz-se à custa de um compromisso entre o direito comunal germânico e o direito privado romano.
No começo da Idade Média, o caráter democrático e coletivo da economia não desaparece ainda completamente. A economia natural opunha-se ao desenvolvimento dos instintos egoístas que surgem, necessariamente, com a propriedade privada.
No período que se estende do século V ao século X, a estrutura da sociedade romano-germânica era, em linhas gerais, a seguinte:
Tinha por base a constituição camponesa e o regime de servidão. A agricultura — o principal meio de subsistência naquela época — era praticada por camponeses que lavravam extensões de terra, capazes de alimentar de 5 a 18 pessoas. Cada domínio de terra compreendia uma fazenda e um jardim, que eram propriedade pessoal do fazendeiro. Este possuía o direito hereditário, inalienável, de utilizar-se de uma parte das terras comunais, cultivadas de acordo com os princípios tradicionais, e de servir-se dos bosques, das florestas, ou de caçar e pescar. Cada domínio estendia-se por uma superfície de 15 a 18 hectares, aproximadamente, e era, em parte, propriedade privada, em parte, propriedade comunal. Mas os camponeses já haviam perdido a primitiva liberdade, porque pagavam certas prestações ao senhor. Além disso, não se sabia ao certo quem era o verdadeiro proprietário das terras comunais. Os camponeses diziam que essas terras lhes pertenciam, pois eram os membros da comunidade. Mas os senhores, apoiados no direito feudal, afirmavam que as terras abrangidas pelos seus domínios lhes pertenciam. Esta questão foi finalmente resolvida pela força. Ora, a força estava nas mãos dos senhores feudais. Foi esta a principal causa do grande número de revoltas camponesas que, daí por diante, iriam surgir.
Os escoceses, os irlandeses e os eslavos conservaram durante muito mais tempo as antigas tradições do comunismo primitivo do que os povos germano-romanos.
O artesanato, nesta época, estava incorporado à propriedade feudal. Só lentamente os artesãos conseguem libertar-se dela. À medida que se libertam, estabelecem-se com os mercadores, nas cidades nascentes, onde se organizam em ghildes e corporações.
O Cristianismo realizou extraordinários progressos no decorrer dos primeiros séculos após Jesus Cristo. As concepções religiosas e morais da mais baixa camada de um povo fraco e desprezado — os pequenos pescadores e artesãos da Judeia — exerceram irresistível atração sobre quantos entraram em contacto com elas. O Cristianismo era, não só a exigência formulada pela ética social da época, como também a linguagem de uma alma que reconhece o caráter transitório da violência e a despreza, para cuidar apenas de valores eternos. Todos aqueles que tinham sofrido o jugo romano compreenderam essa linguagem. Os atos dos generais republicanos e dos imperadores, como dos pro-cônsules e arrecadadores de impostos, foram, na época o ponto culminante da violência política. Entre os Vergílios, os Sênecas e os Tácitos, desejavam a vida simples e virtuosa dos tempos primitivos.
Os adeptos do Cristianismo visitavam as pequenas comunidades, divulgando a nova religião. Todos, pobres e ricos, fortes e fracos, livres e escravos, gruparam-se em torno do novo movimento. Mas, à medida que essas comunidades cresciam, sua constituição, suas concepções e sua atitude em face do mundo exterior se modificavam consideravelmente.
A diferenciação que afinal se verifica em meio de tais movimentos nasce da oposição das necessidades, tanto intelectuais como materiais, dos elementos que nele tomam parte. Alguns ligam-se ao movimento porque aspiram principalmente uma ordem econômica mais justa e desejam libertar-se de todas as formas de opressão exteriores. Outros, pelo contrário, vêm no movimento apenas um remédio para a sua perturbação moral. Estes já tinham perdido toda a fé nas antigas crenças. Nos seus espíritos, havia um vácuo que era preciso preencher.
Na primeira categoria estão os homens do povo, judeus, gregos e romanos, na maior parte artesãos incultos e escravos, aspirando ardentemente à justiça social. Na segunda, encontram-se as pessoas cultas que procuram uma nova religião, uma nova moral e uma nova concepção do mundo. Nestes, as considerações de ordem econômica ou social não exercem a menor influência. Graças à cultura e à posição social mais elevada, eles logo conquistaram os postos de direção do movimento e tornaram-se os intérpretes da nova doutrina. Seu nível intelectual e seu estado de espírito fizeram com que desenvolvessem mais o lado filosófico e religioso que o lado econômico-social. Para primeiros, o que importava, sobretudo, era o ideal comunista do Cristianismo. Os segundos, preocupavam se apenas com os artigos de fé e as verdades metafísicas. Aqueles pensavam, acima do mais, na luta contra o poder e contra os ricos; estes apenas em criar uma nova religião em face do judaísmo e do paganismo, baseada numa justificação filosófica da nova doutrina. S. Paulo e Santo Agostinho, ambos de espírito estreitamente legalista, cheios de respeito pela lei e pela ordem estabelecidas, são os principais representantes dessa tendência, ao passo que os doutores da Igreja gregos, embora tenham sido os verdadeiros fundadores da teologia cristã, continuaram fiéis às tradições comunistas do Cristianismo primitivo.
É fácil compreender a natureza dos conflitos que já se manifestam nesta época, no seio das comunidades cristãs. Estes conflitos fazem-se cada vez mais graves, à medida que as comunidades crescem. As grandes organizações exigem um aparelho mais complicado que as pequenas. Além disso, os partidos numericamente fortes são sempre obrigados, cedo ou tarde, a entrar em contacto com as potências exteriores. E então, ou são por elas influenciados, ou as influenciam, quando estas forças agem nos dois sentidos, modificando-se reciprocamente.
Até meados do século II, a constituição das comunidades cristãs era puramente democrática e baseava-se na igualdade absoluta de seus membros. A coesão interior era bem forte. A comunidade de bens impedia o aparecimento de qualquer violento conflito interior. Os postos criados nas comunidades cristãs foram os de diáconos, homens encarregados de socorrer os pobres e os doentes. Este fato é característico. Todos os membros da comunidade, desde que tivessem a capacidade necessária, podiam ser eleitos para as funções de padres. Eram chamados os "antigos” (em grego presbyteroy, de onde vem a palavra "presbítero" — padre). O mais velho de todos os "antigos” foi chamado "vigilante” (em grego, episcopos, de onde vem a palavra "bispo"). Nas comunidades de então nenhuma diferença havia entre leigos e eclesiásticos. Mas, à medida que a Igreja se consolida e que as suas tarefas aumentam (educação e direção das massas de novos aderentes, assim como o desenvolvimento da doutrina cristã em verdadeiro sistema teológico), o clero se vai tornando uma casta especial, uma burocracia intelectual, cuja força adquire proporções cada vez mais consideráveis, enquanto o prestigio e a influência do Cristianismo aumentam no Estado. O clero torna-se, assim, uma verdadeira potência. Conseguiu isentar-se do imposto e do serviço militar. Conseguiu subtrair-se à jurisdição dos tribunais ordinários. Adquiriu o controle da vida privada dos leigos, bem como o direito de receber donativos e heranças. Os "antigos” das primeiras comunidades cristãs transformaram-se numa casta sagrada, com privilégios e poderes especiais. As pequenas comunidades, oprimidas, de pequenos pescadores e artesãos transformaram-se numa poderosa Igreja do Estado, com riquezas imensas, com um número infinito de padres em todas as cidades e aldeias, com bispos nas grandes cidades, com metropolitanos e arcebispos nas capitais, e, acima de toda esta formidável organização, está o bispo de Roma com o título de Papa da cristandade. De simples comunidade religiosa e moral, que era a princípio, a Igreja se transformou numa vasta organização política e econômica, que se arrogou o direito de decretar a pena de morte contra todos os cristãos que não quisessem aceitar os dogmas eclesiásticos, e que conseguiu acumular riquezas fabulosas, por meio dos dízimos pagos pelos fiéis, ou pelos donativos e heranças que recebia. Os bens da Igreja, a princípio destinados exclusivamente à assistência aos pobres, foram daí por diante absorvidos na quase totalidade (3/4) pelos gastos da hierarquia eclesiástica e pelas cerimônias do culto. Pouco a pouco, a Igreja torna-se também proprietária de uma grande parte das terras. No fim do século VII ela já se havia apoderado da terça parte do território da Galia.
No século VIII, os domínios eclesiásticos no reinado dos francos já eram tão consideráveis que os carlovíngios confiscaram parte dessas propriedades.
Paralelamente a esta adaptação material, verifica-se uma adaptação intelectual da Igreja ao mundo exterior. O entusiasmo inicial desaparece. O devotamento é cada vez mais raro. A renúncia foi substituída pela caridade. O espírito de solidariedade cedeu lugar aos dons obrigatórios estritamente determinados. Os padres, que antigamente evitavam qualquer contacto com as autoridades civis, entraram em constante relações com elas, admirando em silêncio a cultura dos pagãos.
De outra parte, o afluxo de novos aderentes saídos das diferentes camadas da população exerceu uma influência desmoralizadora no modo de vida dos cristãos. No século III, já se encontram os cristãos nas mais diferentes profissões, nas legiões, na corte dos césares, nos negócios, no mundo dos funcionários, no campo da ciência, etc... O Cristianismo infiltra-se por todos os poros da sociedade romana e absorve, trazendo para o interior da Igreja, as ideias e as tradições da sociedade de que se apodera. Nestas trocas recíprocas entre a Igreja e o mundo exterior, nesses compromissos contínuos, o Cristianismo perde grande parte de seu antigo espírito e de sua antiga força. O comunismo do começo é substituído pela legitimação da propriedade privada. As perseguições dos primeiros séculos sanearam um pouco e por algum tempo a Igreja, porque os elementos arrivistas e cristãos traficantes a abandonaram nesse momento. Mas a tempestade foi de curta duração. O Cristianismo, ante a revolta impotente dos cristãos fiéis às tradições do Cristianismo primitivo, adapta-se progressivamente e definitivamente ao mundo exterior. Os adeptos das tradições cristãs entusiasmam-se quando leem o Sermão da Montanha e lembram-se da vida dos homens nas comunidades primitivas. Revoltam-se contra a situação presente e dizem:
"Voltemos a Jesus Cristo! Voltemos à renúncia, à comunidade de bens e à pobreza evangelista. Apartemo-nos de todas as influências do mundo exterior, que maculam a pureza da doutrina e falseiam o Cristianismo!”
Este mal-estar cresceu em vários pontos até se tornar verdadeira oposição, que fez surgir o monasterismo (comunismo monástico), e, mais tarde, o movimento herético. O monasterismo e a heresia aparecem em virtude das mesmas causas. O primeiro contenta-se em isolar-se da Igreja, sem a combater. O segundo, pelo contrário, quer reformá-la e transformá-la. Entram, assim, em luta aberta contra os dirigentes.
Descontentes com a corrupção da Igreja, desgostosos porque ela se transformava numa vasta organização econômica e política com tendências anticomunistas, certo número de cristãos, durante a segunda metade do século III, resolveram afastar-se do mundo, renunciar a todos os bens terrestres e viver na solidão, na meditação e no ascetismo. O movimento monástico intensifica-se principalmente depois que a Igreja se alia ao imperador Constantino e o Cristianismo se torna a crença oficial, a religião do Estado. O principal dirigente deste movimento foi Santo Antonio. Descendente de uma família muito rica do Alto-Egito, Santo Antonio, no ano 270, aproximadamente, resolveu distribuir todos os seus bens e refugiar-se no deserto para viver como anacoreta. Meio século mais tarde, seu discípulo Pacômio reuniu os anacoretas e com eles fundou, na ilha Tabena, no Nilo, a primeira "cenóbia” (das palavras gregas coinos — comum e bios — vida). Esta cenóbia era governada por leis rigorosas: seus membros comprometiam-se a renunciar a todas as formas de propriedade privada; obrigavam-se a fazei um trabalho manual qualquer, a comer em comum, a obedecer incondicionalmente a um diretor (o abade) e a praticar o ascetismo.
No decorrer dos primeiros séculos da História do monasterismo, os monges e as freiras não faziam parte do clero propriamente dito. Eram leigos. Grande número deles haviam até contraído matrimônio. Nesta época, os conventos eram colônias comunistas de homens piedosos. No fim do século IV, o casamento foi considerado como um estado inferior da vida cristã. Mas, assim mesmo, no século IV, grande número de cenobitas ainda se casaram. Só mais tarde se começou a exigir o celibato como condição indispensável para a vida monástica. Por amor ao ascetismo e pelo receio de que as instituições comunistas desaparecessem em virtude do aumento das famílias, o celibato tornou-se geral. A partir daí, nenhum monge pôde mais casar-se.
O móvel fundamental daqueles que se dedicavam no Monasterismo era o desejo de separar-se completamente de todas as instituições sociais e de todas as tendências intelectuais, que uniam os homens ao século e ao Mal. Os adeptos do monasterismo fugiam, portanto, tios costumes e das ideias relacionados com a propriedade privada, a família, o Estado, as relações entre senhores e servos, etc., etc.
O sistema de cenóbias desenvolveu-se principalmente no norte da África e, em geral, em todos os lugares onde as tradições comunistas ainda exerciam forte influência na vida social. Da África, ele se estendeu pelo Oriente. Invadiu a Palestina, a Síria, a Armênia e a Capadócia. O número de cenóbias cresceu de tal maneira que o imperador Valêncio resolveu deter o progresso do movimento. Mas nada conseguiu. Alguns escritores cristãos protestaram contra a extensão do novo movimento, no qual viam, não sem motivo, uma ameaça de oposição à Igreja oficial. Mas os cenobitas não atacavam a Igreja oficial. As autoridades eclesiásticas verificaram que eles procuravam apenas realizar pacificamente o ideal do comunismo primitivo. Por isso, afinal, lhe aprovaram os esforços. As mais eminentes figuras da Igreja, com Santo Anastácio à frente, manifestaram-se a favor do movimento. Disseram até que o monasterismo tomava como modelo as escolas dos profetas do Antigo Testamento e dos terapeutas egípcios (comunidade análoga à dos eseus). Afirmaram que a origem do monasterismo se encontrava nas primeiras comunidades cristãs. Grande número de cristãos, de todas as camadas sociais e, particularmente, das classes laboriosas, ingressaram nos mosteiros. Na época de Santo Agostinho, os monges eram principalmente antigos escravos ou escravos libertos, camponeses, artesãos, etc... Apesar de opor-se a qualquer movimento popular, Santo Agostinho estimulava o movimento monástico para enfraquecer o movimento revolucionário exterior. De fato, os comunistas que viviam nos mosteiros eram, na sua opinião, menos perigosos que os que viviam fora deles...
O sistema de cenóbias desenvolveu-se igualmente no Ocidente. Aí, a princípio, encontrou certa hostilidade. Mas foi ardentemente defendido pelos doutores da Igreja, entre os quais se encontravam Santo Ambrósio e S. Jeronimo, que se haviam conservado fiéis ao espírito do direito natural e às tradições comunistas do Cristianismo primitivo.
Nas ilhas da costa da Itália ocidental e na costa dalmata, assim como no sul da Galia, foram criados vários mosteiros. Tais mosteiros, porém, não estavam sujeitos a uma regulamentação geral. Seus aderentes eram menos obedientes à disciplina e menos devotos que os membros dos mosteiros do Oriente. O grande pioneiro Benedito de Wursia, o fundador da ordem dos Beneditinos, resolveu pôr termo a tal estado de coisas. Fundou um convento no monte Cassino, na província de Campania, na Itália, que no ano 529 promulgou seus estatutos. Estes estatutos, que depois foram adotados pelos demais mosteiros, continham três regras fundamentais: 1.°, obrigavam a todos os membros dos mosteiros a ocupar-se de um determinado trabalho manual. Os mosteiros deviam, por si mesmos, na medida do possível, produzir os meios de subsistência necessários ao próprio sustento. 2.° agravavam as obrigações de castidade, proibindo que os monges contraíssem matrimônio. 3.°, interditavam a saída dos monges dos conventos, desde que fossem aceitos definitivamente na confraria.
A disciplina e o trabalho em comum operaram maravilhas e contribuíram imensamente para a restauração interna dos países da Europa Ocidental e Central, que haviam sido devastados pelas migrações e as guerras. Regiões inteiras, arruinadas, foram cultivadas e assim se tornaram novamente territórios de florescente civilização. Daí por diante, os mosteiros passaram a desempenhar o papel de centros de cultura e de ciência, o papel de arquivos da literatura antiga e medieval. Os monges dedicavam grande parte do tempo a cópias e a reproduções de manuscritos dos escritores latinos e dos velhos cronistas.
As comunidades de produção monásticas mostraram a sua superioridade, tanto no domínio agrícola, como nas colônias do Império romano decadente e na economia feudal do reino franco.
"É de estranhar — escreve Kautsky — que os mosteiros se tenham multiplicado no mundo cristão, tornando-se os herdeiros da técnica e da cultura romana em geral? É de estranhar que, depois da época das migrações, tenham sido considerados pelos príncipes e senhores feudais como as mais adequadas instituições para a introdução de formas de produção superiores nos seus territórios, se os mosteiros favoreciam, ou mesmo, em muitos casos, determinavam o aparecimento destas novas formas de produção? No sul dos Alpes, os mosteiros serviam, sobretudo, de refúgio para os artesãos e camponeses maltratados. Mas, no norte dos Alpes, visavam sobretudo desenvolver a agricultura, a indústria e os transportes”.
A partir de então os monges, ao mesmo tempo que enriquecem, tornam-se senhores da cultura do passado e do seu tempo, conquistam os benefícios da amizade dos soberanos, eclesiásticos e leigos. Além disso, pouco a pouco, abandonam a organização comunal para explorar a mão de obra de outros homens. O convívio com o clero e com os senhores feudais faz progressivamente desaparecerem-lhes as virtudes. Os monges abandonam a pobreza e a simplicidade primitivas, e começam a frequentar os castelos e palácios da nobreza. Os costumes do século invadem os claustros e extinguem todas as diferenças entre os monges e o clero. As fisionomias ascéticas dos primeiros monges são cada vez mais raras. Surgiram em seu lugar semblantes irradiantes de saúde e bem-estar. Vestidos com os hábitos de monges, vem-se agora homens robustos, gordos, bem nutridos, que desfrutam todos os prazeres da vida.
As classes laboriosas e oprimidas não são mais aceitas nos mosteiros. Só os nobres e as classes privilegiadas em geral podem ingressar nas ordens monásticas.
Durante o século VIII, as abadias passaram pouco a pouco para as mãos da nobreza. O espírito dos conventos modifica-se e em nada se assemelha ao das primitivas cenóbias. Descontentes com esta transformação, grande número de monges reforçam as práticas ascéticas e lutam em prol de uma vasta reforma monástica. Benedito de Aniana fez uma tentativa nesse sentido. Mas os seus esforços não foram coroados de êxito durável. O mesmo aconteceu com a maior das tentativas de reformas dessa época. Os princípi0s estabelecidos por Benedito caíram logo no esquecimento. Em todos os lugares onde os mosteiros passaram para as mãos dos abades leigos, frequentemente com eles vieram homens de guerra. Esses homens instalavam-se nos mosteiros com as famílias, e profanavam os sítios consagrados ao recolhimento e à meditação com toda a espécie de jogos profanos, orgias e prazeres da caça.
O século IX foi, aliás, um século de completa decadência moral. O reino dos francos já se encontrava em plena decomposição. Os eslavos, os normandos, os magiares e os árabes invadiram as diferentes partes do reino, cindindo-o, depois da morte de Carlos Magno, em territórios independentes. A nobreza lutava com a realeza. Os bispos recrutavam-se principalmente entre a nobreza e tornavam-se os agentes políticos de suas famílias. No começo do século X, a corôa, o Papado, o clero e o monasterismo já se encontram em completa decomposição...
O fundador do mosteiro de Cluny, na Borgonha, tentou, em 910, novamente, reformar o monasterismo.
Seus estatutos inspiravam-se nos princípios estabelecidos por Benedito. Eram, mesmo, ainda mais severos. Exigiam a renúncia total à posse de quaisquer bens privados, obediência absoluta e vida ascética. Esta tentativa de reforma exerceu certa influência nos demais mosteiros, durante um ou dois séculos. Mas arrastou o monasterismo para o turbilhão da política europeia, colocando-o sob a proteção do papa. A aliança do monasterismo com o Papado adquire uma enorme importância política, a partir do momento em que os papas começaram a lutar com o Império pela hegemonia mundial. Esta importância aumenta quando Gregório VII foi colocado à frente da Igreja.
Vimos, assim, que os germanos e os cristãos foram as principais forças por meio das quais a Europa consegue erguer-se sobre as ruínas do Império romano. Ambas estas forças têm a origem no direito comunal e na democracia. Mas sofrem de tal modo a influência das tradições romanas e da situação econômica da época, que esse reerguimento foi, na realidade, o resultado de um compromisso entre o direito comunal e o direito privado. O direito privado elimina progressivamente o primeiro. A herança de Roma teve ainda uma outra consequência importante. Tanto o Império germânico como o Papado romano consideram-se potências Mundiais e lutam pela hegemonia do século IX ao século XVI. Estes dois fatos principais: de um lado, a substituição do direito comunal pelo direito privado; e, de outro, a luta entre o Império germânico e o Papado, constituem o emaranhado sobre o qual se desenvolve toda a História da Idade Média. Finalmente, a oposição suscitada pelo desaparecimento do direito e passagem ao direito privado, assim como as tentativas no sentido de fazer ressurgir o Cristianismo primitivo e as condições de vida dos antigos germanos, constituem a base do movimento monástico e do movimento herético e social da Idade Média.
Inclusão | 12/07/2015 |