História do Socialismo e das Lutas Sociais
Primeira Parte: As Lutas Sociais na Antiguidade

Max Beer


Capítulo III - O Comunismo em Esparta


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1. — A Legislação de Licurgo

Os dórios conservaram, com muito mais firmeza e durante muito mais tempo, a lembrança da igualdade primitiva do que os jônios. Isto explica-se pela seguinte razão: as colonias dóricas eram essencialmente agrícolas: não possuíam quase comércio nem navegação. Nelas, portanto, não existiam os fatores decisivos que, em toda a parte, aceleraram o processo de decomposição da sociedade primitiva.

Quase todos afirmam que Licurgo foi o primeiro legislador que a tradição apresenta como autor de uma revolução comunista. Mas Licurgo, do mesmo modo que Moisés, entre os hebreus, foi uma figura lendária.

Plutarco — nascido no ano 50, A. C., e que conhecia todas as fontes da historia grega — declara:

“Nada se pode dizer de certo sobre o legislador Licurgo. As opiniões dos historiadores sobre a sua origem, suas viagens, sua morte e especialmente sobre as leis e a Constituição por ele criadas, são muito contraditórias. A época em que viveu Licurgo é um dos pontos mais discutidos da história da Grécia”.

Os espartanos referiam-se sempre a Licurgo, vendo nele um legislador culto, bondoso e desinteressado, que levara a cabo uma grande reforma política e transformara completamente a ordem econômica, estabelecendo o regime comunista em bases solidas.

“A segunda instituição de Licurgo, possivelmente a mais audaciosa de todas as suas instituições — diz Plutarco — foi a divisão das terras. Esparta estava sujeita a um regime de terríveis desigualdades. Enorme multidão de pobres era mantida pelo Estado. E, ao lado desta miséria, reduzido numero de famílias que viviam nababescamente, entregues à dissolução, ao orgulho, a inveja, à fraude e à dissipação. Afim de suprimir completamente esses males e muitos outros ainda mais graves, que existiam no seio do Estado, em consequência da riqueza e da pobreza, Licurgo conseguiu que os cidadãos pusessem as suas terras à disposição da coletividade. Os homens novamente dividiram as terras entre si, e passaram a viver juntos, num regime de absoluta igualdade e de completa comunidade de bens.

“Deste modo, todos só se preocupavam com a virtude. Todas as desigualdades ou diferenças desapareceram. Só as boas ações continuaram a ser louvadas e os maus atos castigados”.

Tudo mostra, entretanto, que não foram as palavras de Licurgo que fizeram os proprietários dividir as terras.

É preciso não esquecer que os pobres, na época, representavam a imensa maioria da população; que as riquezas estavam concentradas num insignificante número de mãos. É preciso lembrar, também, que os espartanos, como bons espartanos, sabiam manejar as armas.

Os ricos foram obrigados a aceitar a implantação do comunismo. A nova legislação, logo posta em prática, repartiu as terras. As terras da Lacônia foram divididas em trinta mil partes, cabendo a cada habitante uma parte. As terras das proximidades foram divididas em seis mil partes. Cada cidadão de Esparta recebeu o seu quinhão. Contam que, tempos depois, Licurgo, passeando pelos campos, viu grande número de montes de trigo exatamente iguais ao lado uns dos outros.

Rindo para os que o rodeavam, ele disse que a Lacônia parecia um campo repartido entre irmãos.

Licurgo quis, igualmente, suprimir os instrumentos agrícolas para eliminar todas as desigualdades possíveis. Mas a proposta não foi aceita. Então, tentou chegar ao mesmo resultado por meio de medidas políticas destinadas a destruir a ambição e a avareza. Começou abolindo todas as moedas de ouro e de prata, que foram substituídas por outras de ferro. Estas moedas, embora muito grandes e pesadas, possuíam um valor insignificante. Uma quantia de dez minas (três contos de réis, aproximadamente), nessas moedas, ocupava uma sala inteira, e só podia ser transportada em carros puxados por varias atrelagens. Depois que esta moeda foi posta em circulação, não houve mais crimes na Lacônia. De então por diante, ninguém mais quis roubar, enganar ou deixar-se corromper por uma coisa que, além de não ser possível esconder, não podia mais ser exibida.

Licurgo proibiu em Esparta todas as artes e atividades que julgava dispensáveis à vida. O comércio e a navegação desapareceram completamente. As refeições passaram a ser simples, frugais e feitas em comum. Os alimentos eram exclusivamente pão, queijo, vinho, figos, legumes e, às vezes, carne, principalmente carne de caça.

Todos os cidadãos foram obrigados a comer em comum. As crianças, mais tarde, participaram também das refeições coletivas, para instruírem-se ouvindo as conversas dos adultos.

A educação da infância e da juventude era objeto de serias preocupações.

“Procurava-se também proteger a infância — diz Plutarco. — Regulamentou-se o casamento e a procriação... Licurgo, antes de tudo, quis fortalecer fisicamente a mulher, habituando-a à corrida, à luta, ao lançamento do disco e do dardo. Para destruir o pudor e todos os sentimentos que enfraquecem a mulher, obrigou-a a aparecer inteiramente nua nos cortejos, ao lado dos homens. A nudez das donzelas não era evidentemente imoral nem indecente. Pelo contrário: tornou-as mais simples, mais cuidadosas consigo mesmas. Inspirou-lhes sentimentos nobres e elevados e mostrou-lhes que podiam equiparar-se aos homens em gloria e virtude”...

Depois de purificar as uniões conjugais, Licurgo procurou combater o ciume das mulheres. Pensava também em expurgar os casamentos de toda licenciosidade e corrupção, mas julgava útil ao Estado permitir que os homens honrados se multiplicassem livremente e tivessem numerosa prole.

“Só as crianças sadias sobreviviam. As demais eram mortas. A educação visava fornecer ao Estado combatentes vigorosos, hábeis, corajosos. Procurava, ao mesmo tempo, criar nos homens um espirito de solidariedade indestrutível. Numa palavra: a finalidade da educação espartana era formar homens de ação e não contemplativos ou fracos... Licurgo, por outro lado, introduziu em Esparta hábitos de tal natureza, que todos os membros da sociedade viviam fortemente unidos aos interesses coletivos, agrupando-se em torno do seu rei, como as abelhas de uma colmeia, e esquecendo-se de si próprios para só viver para a pátria”.

Graças a essa Constituição comunista-militar, os espartanos conseguiram manter a supremacia no Peloponeso, vencendo afinal os atenienses (no ano 404, A. C.) e obrigando-os a capitular. Justamente em virtude dessa organização interna, o Estado espartano aparece, aos olhos dos mais esclarecidos espíritos da Grécia antiga, como o único Estado bem constituído e firme, em meio da confusão em que se debatiam todos os Estados da Grécia.

A fama da Constituição de Licurgo estendeu-se por toda a Antiguidade. Sua influência faz-se sentir em toda a civilização grega. Foi, posteriormente, o ideal de grande número de pensadores e, possivelmente, o fim visado pelas sublevações de escravos que muito mais tarde irromperam no seio do Império romano.

Na realidade, o Estado de Licurgo inspirava-se num modelo de Estado aristocrático e guerreiro. Apoiava-se unicamente no trabalho dos ilotas, que constituíam grande parte da população de homens livres.

Os ilotas pertenciam ao Estado, como propriedade comum, e representavam os verdadeiros meios de produção.

Em Esparta existia, portanto, um dos principais fatores do progresso humano: o trabalho produtivo. O comunismo de Licurgo foi apenas uma comunidade de posse e usufruto, mas não de produção.

A educação espartana também não era uma verdadeira educação. Apenas amestrava homens para o predomínio e a guerra.

A inexistência total da democracia, que teria podido até certo ponto refreá-los, assim como o desprezo que manifestavam pelas artes e a filosofia, que lhes poderia ter nobilitado a vida intelectual e, sobretudo, a importância que davam aos exercícios físicos e bélicos, tornaram os espartanos um povo agressivo, temido pelos vizinhos e implacável como senhor.

Para combater as novas sublevações de ilotas, como a que estalou no ano 464, A. C., em Esparta realizavam-se, de quando em quando, matanças de ilotas, cujo fim principal era a supressão dos seus mais combativos e influentes chefes.

A moral que Licurgo inculcou nos concidadãos era uma moral visando exclusivamente fins de ordem política local. Não era, pois, uma moral humanitária.

Entre os espartanos poderiam ter surgido homens notáveis, do ponto de vista intelectual, se eles, em lugar de se deixarem absorver apenas pelo desenvolvimento físico, tivessem também cuidado da própria formação intelectual e moral. De fato: quando, no século III, A. C., Esparta caiu sob a influência da filosofia jônica e da ética estoica, alguns dos seus nobres portaram-se como verdadeiros heróis.

Fala bem alto neste sentido o fato de ter sido um espartano o primeiro mártir do comunismo.

2. — Agis, o Protomártir do Comunismo

As guerras, e os saques que sempre as acompanham, determinaram acumulações de riquezas que, lentamente, através dos séculos, foram minando as bases comunistas da organização do Estado espartano. A participação vitoriosa de Esparta nas guerras em que os jônios lutaram contra os persas pela independência (492-479), assim como as lutas pela hegemonia na Grécia, que estalaram quatro décadas depois e provocaram a guerra do Peloponeso (431-404), além das guerras que daí por diante se prolongaram até o ano 371, cobriram os espartanos de muitas glorias, de muito ouro e de muita prata. Afinal, as derrotas catastróficas e um profundo aniquilamento interno, fizeram desaparecer todas as instituições criadas com a legislação de Licurgo.

Plutarco diz:

“A decadência de Esparta começa no momento da vitoria sobre Atenas, quando a cidade foi invadida por uma onda de ouro e de prata...”

O Estado espartano perdeu a maior parte das suas qualidades. Surgiu a sede do ouro e da prata. A posse da riqueza provocou a ambição e a avareza. Os prazeres materiais efeminaram os homens, corrompendo-os, levando-os à devassidão no amor e ao luxo. Através das guerras, a antiga igualdade entre os cidadãos desaparece.

“Os ricos e os aristocratas — escreve Plutarco — tornaram-se proprietários de uma quantidade considerável de bens e privaram os seus próprios parentes de tudo o que possuíam. As riquezas concentraram-se rapidamente nas mãos de um reduzido número de famílias. E a miséria invadiu a cidade... O número dos verdadeiros espartanos começou a diminuir vertiginosamente, reduzindo-se a setecentos. Dentre estes possivelmente só cem ainda possuíam terras. O resto do povo foi atirado à miséria e ao desprestigio. O resultado lógico da ruína da maior parte da população foi o desinteresse completo pelas guerras externas. O povo esperava apenas o momento oportuno para, com violenta revolução, transformar toda a ordem existente”.

Agis era membro da casa real, e pertencia a uma das mais ricas famílias de Esparta. Tudo demonstra que conhecia a filosofia estóica. Além disso, era dotado de excepcionais faculdades intelectuais e de grande nobreza de sentimentos. Apesar da educação esmerada que sua mãe Agistrata e sua avó Aquidamia lhe deram, apesar de viver cercado de riquezas, Agis, com a idade de vinte e seis anos incompletos, renunciou a todos os prazeres materiais, e resolveu retornar à antiga vida espartana, à simplicidade e à pureza, ou, como diziam os estóicos, à natureza. Chegou a afirmar que “a dignidade real, para ele, não tinha o menor valor porque não serviria para restaurar as antigas leis e instituições”. Suas ideias foram aceitas, com entusiasmo, pela juventude. Mas os anciãos e as mulheres as repeliram energicamente.

De acordo com a Constituição espartana, o país era dirigido por dois reis e por um conselho de cinco éforos.

A função dos éforos era resolver as divergências entre os reis, solucionando os casos, quando os dois reis não pensassem da mesma forma. Os projetos de lei eram submetidos à aprovação do Senado, e, depois, à aprovação da Assembleia popular, que tudo resolvia em última instância.

Agis apresentou ao Senado o projeto de lei que havia elaborado. Nele estabeleceu o perdão de todas as dívidas e uma nova divisão do país em dezenove mil e quinhentas partes iguais: quatro mil e quinhentas para os verdadeiros espartanos, e quinze mil para periecos (descendentes da população que habitava o país antes da invasão dórica e a parte pobre da população de Esparta) e os estrangeiros que, pelas suas qualidades físicas e intelectuais, merecessem ser incorporados ao Estado. Os cidadãos deviam novamente organizar-se, formando grupos e voltando à vida das comunidades da antiga Esparta.

Mas o projeto não foi aprovado pelo Senado. Um dos éforos, partidário das suas ideias, apresentou a questão à Assembleia popular, e atacou os senadores contrários à reforma. O próprio Agis interveio nos debates, e declarou aos representantes do povo que se dispunha a fazer pessoalmente os maiores sacrifícios em favor da Constituição que pretendia implantar.

“Em primeiro lugar, estou disposto a abrir mão de toda a minha fortuna, representada por um número considerável de campos e de prados e por uma soma superior a seiscentos talentos de prata de lei. Minha mãe e minha avó farão o mesmo, assim como todos os meus amigos e parentes. E ninguém aqui ignora, que eles fazem parte das mais ricas famílias de Esparta”.

Os representantes do povo presentes à reunião aceitaram com alegria a proposta de Agis. Mas seu colega Leônidas combateu-o, principalmente na parte referente ao cancelamento das dívidas e à incorporação dos estrangeiros à cidade. Agis tornou a falar. Em seguida, passou-se à votação. O povo pronunciou-se a favor do projeto.

Mas os éforos e o Senado, chefiados por Leônidas, prepararam-se para lutar contra a aplicação do projeto. Agis, receando um atentado por parte dos adversários, refugiou-se no templo de Netuno, de onde só saía para o banho. Leônidas, acompanhado por um destacamento de soldados, organizou um ataque armado contra Agis. Um dia, quando este saia do templo, foi atacado por três soldados, preso e atirado no fundo de um cárcere. Logo depois chegaram Leônidas, os seus soldados, os éforos, alguns senadores, que compuseram um tribunal e procuraram conseguir por todos os meios que Agis renunciasse ao seu projeto de reformas. Como o preso declarasse com firmeza que continuaria sempre lutando pela reforma e que nunca poderia renunciar às suas ideias, pois julgava que a Constituição de Licurgo era a única que convinha a Esparta, foi condenado à morte por estrangulamento.

Depois de pronunciada a sentença, Agis foi levado ao local do suplício. Aí, notou que um dos seus servidores chorava e se lamentava:

“Não chore — disse-lhe Agis — porque morro por uma causa justa. Sou superior aos meus carrascos.”

Após estas palavras, estendeu o pescoço ao verdugo. Sua avó e sua mãe Agistrata foram também executadas. Isto aconteceu no ano 200, A. C.

3. — As Tentativas de Reforma de Cleômenes

Cinco anos depois da execução de Agis, o trono foi ocupado por Cleômenes, filho de Leônidas, que se havia casado com a viúva de Agis. O novo rei, depois da estudar minuciosamente os projetos de reforma de Agis, resolvera pô-los em prática. Mas Cleômenes era de temperamento mais belicoso que Agis. Este rei de Esparta viu na força das armas e nas vitorias militares o melhor meio de levar avante seus planos. Acreditava que só depois de conquistar o título de capitão vitorioso poderia adquirir o prestigio suficiente para desembaraçar-se dos adversários da reforma. Cleômenes teve logo oportunidade para atirar-se contra os Estados vizinhos, infligindo-lhes derrotas. Viu-se também arrastado a uma serie de guerras, das quais, talvez, não desejasse participar.

Logo após as suas primeiras vitorias, modificou a Constituição de Esparta e suprimiu as funções dos éforos. Desterrou da cidade oitenta cidadãos contrários à reforma constitucional e convocou uma Assembleia popular, perante a qual expôs as razões de seus atos. Acusou os éforos, dizendo que haviam usurpado poderes cada vez maiores, violando assim o espírito da Constituição. Disse ainda que haviam criado tribunais de justiça que lhes obedeciam servilmente à vontade, para desterrar ou executar os reis que quisessem restabelecer as notáveis instituições de Licurgo. Por último, Cleômenes pôs todos os seus haveres à disposição do povo, sendo acompanhado neste gesto pelos amigos e parentes, bem como pelos demais cidadãos. Os desterrados foram contemplados na partilha geral dos bens. Cleômenes prometeu repatriá-los logo que a situação interna se acalmasse.

E, começando por si mesmo, restaurou a antiga simplicidade espartana.

Se a política exterior fosse uma política de paz, Esparta se teria tornado novamente um Estado modelo entre os demais da Grécia. Mas aconteceu justamente o contrário. A política belicosa de Cleômenes tornou-a adversária terrível de todos os Estados vizinhos. Em vez de inspirar amor e confiança, Esparta, depois da reforma, só infundia desconfiança e temor. Os Estados vizinhos foram obrigados a apelar para os macedônios para, ao seu lado, se defenderem dos incessantes ataques dos espartanos. Cleômenes, durante vários anos, conseguiu, à frente do seu exército, vencer e destroçar as forças coligadas dos inimigos. Mas, afinal, foi vencido.

Depois de derrotado definitivamente(1), aconselhou aos cidadãos de Esparta que abrissem as portas da cidade a Antigono, rei da Macedônia. Este a ocupou, mas tratou com brandura os habitantes. E, sem ofender a dignidade de Esparta, nem insultá-la com medidas violentas, restaurou as antigas leis e a antiga Constituição em vigor antes de Agis e Cleômenes.


Notas de rodapé:

(1) No ano 222, em Selosia. (retornar ao texto)

Inclusão 04/05/2015