Quem domina o Estado no Brasil?

Vania Bambirra


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilografado. Sem data

HTML: Fernando Araújo.


Não é possível compreender uma sociedade e menos ainda tentar atuar nela com o objetivo de transformá-la, sem que se consiga equacionar corretamente o caráter do Estado, vale dizer, qual é a classe social dominante que possui a hegemonia do poder estatal, quais são os seus aliados, em suma, qual é o projeto que estas oferecem ou impõem ao conjunto da Nação.

Este é o requisito preliminar de qualquer atuação política, a base para a elaboração de toda e qualquer concepção estratégico-tática de transformação social.

Quando a caracterização do Estado é feita de forma incorreta as propostas políticas que dela decorrem só podem resultar em profundos equívocos que não poderão abrir novos caminhos de intervenção e transformação da realidade viva, mas, ao contrário, tenderão ou a consolidar a situação existente, ou a produzir alternativas inviáveis.

Lamentavelmente, no Brasil grande parte do pensamento científico-social não se demonstrou capaz, neste últimos vinte anos, de analisar corretamente o caráter do Estado. Podemos constatar que quase todas as análises empreendidas por economistas, sociólogos, cientistas políticos e historiadores resvalaram, durante as duas últimas décadas, para uma interpretação absolutamente errada do caráter do Estado no Brasil. E isso ocorreu, e vale a pena ressaltar, quase unanimemente, produzindo um estranho “consenso” entre analistas de posição teórica de direita, de centro e de esquerda.

Da parte dos primeiros a falta de rigor científico se explica não pela incapacidade, mas pela simples razão de que são porta-vozes ideológicos do sistema e, portanto, a eles compete muitas vezes a tarefa de ocultar e mistificar as relações sociais concretas que existem entre as classes sociais.

Por parte dos de esquerda, a incorreção da análise se explica pelo abandono do instrumento teórico-metodológico que orienta a análise da estrutura das classes sociais.

Assim, os nossos cientistas sociais vêm dizendo há vinte anos que o poder é exercido pelos tecnocratas civis e militares ou, de acordo com a expressão mais “moderna”, pela “tecnoburocracia”.

Como exemplo de tal coincidência analítica podemos citar Mario Henrique Simonsen e Roberto de O. Campos (A Nova Economia Brasileira, 1974), Fernando Henrique Cardoso (Autoritarismo e Democratização, 1977), Luiz Carlos Bresser Pereira (Estado e subdesenvolvimento industrializado, 1977), Sebastião C. Velasco Cruz e Carlos Estevam Martins (ainda que estes limitem o controle e a direção do Estado aos militares no seu artigo na revista Sociedade e Política no Brasil Pós-64) e muitos outros, como Hélio Silva e uma série de analistas cujos trabalhos ou sínteses de seus pensamentos aparecem muitas vezes na imprensa cotidiana.

Editados no Brasil foram muito poucos os autores que utilizaram o instrumental teórico-explicativo da análise das classes sociais e que, portanto, puderam atingir um maior rigor na compreensão do caráter do Estado brasileiro. Entre esses poucos podemos destacar o livro de S. S. Míchim (Processo de Concentração de Capital no Brasil, 1973) e o de René Armand Dreifuss (1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe, 1981). Naturalmente, em vários outros países latino-americanos desde a década dos sessenta e, particularmente, na dos setenta circularam amplamente obras de cientistas sociais brasileiros que resgatavam a análise de classes do Estado mas que, por razões óbvias, jamais tiveram qualquer repercussão no Brasil…

O que estas exceções analíticas tratavam de demonstrar era que, com o golpe de 1964, a grande burguesia brasileira associada – na condição de sócia-menor – ao capital estrangeiro assumiu o poder e passou a exercê-lo plenamente, dominando portanto, em função dos seus interesses particulares e específicos, a economia, a política, a cultura e a sociedade, enfim.

Essa grande burguesia-associada não delegou jamais o poder a nenhuma tecnoburocracia civil ou militar. Ela exerceu a exerce pessoalmente o poder, assumindo a responsabilidade direta pela execução do seu projeto econômico, político e social. A grande maioria dos ministros (ou todos?) de governo, de 64 a nossos dias, são expressões diretas deste domínio de classe pois são, ademais de ministros, diretores ou importantes acionistas de empresas nacionais ou multinacionais que atuam no país. Os militares que exerceram e exercem cargos de alta responsabilidade do poder executivo do Estado e de empresas estatais são, muitas vezes, empresários uniformizados. Tal fenômeno expressa bem simbiose militar-empresarial.

Quanto à “tecnoburocracia” que se implementou, se fortaleceu e sobretudo se enriqueceu também à custa do sofrimento, da miséria e da marginalização de mais de 50% de nossa população, é um subproduto deste sistema desumano, mas jamais exerceu o poder, a não ser naqueles escalões intermediários, subjugados e secundários.

A economia e a política concretas sempre são conduzidas em função de interesses de classes sociais concretas. Nenhum segmento burocrático, civil ou militar, por mais relevante que seja a sua presença num aparato de Estado, poderá jamais ocultar os interesses de classes que caracterizam a essência de um sistema de dominação. E no Brasil esses interesses não estão para nada ocultos: basta levantar a biografia econômica e política daqueles personagens que há vinte anos traçam os projetos e implementam as políticas cujos resultados são por todos conhecidos e sofridos.


Inclusão: 16/11/2021