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Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. S/d. (In: Emancipação da mulher: luta de ontem, hoje e amanhã)
HTML: Fernando Araújo.
Este livro está composto de três artigos, uma entrevista e um conjunto de propostas programáticas realizados nesta ordem: o primeiro, na cidade de Santiago, Chile, em junho de 1971, para a revista Punto Final; o segundo, publicado pela mesma revista, é a transcrição sintética de uma conferência realizada na cidade de Concepción, Chile, em outubro do mesmo ano, por solicitação da Federação de Estudantes da Universidade de Concepción e que adquiriu em seguida forma de artigo. O terceiro foi escrito no México, na época das comemorações do “Ano Internacional da Mulher”, mas que se manteve na gaveta, inédito até agora. A entrevista, concedida para a revista Two Thirds, Toronto, Canadá, foi realizada muito posteriormente, também na Cidade do México, no fim do ano de 1978, durante os meses de junho e julho de 1982. Foram incorporadas a elas sugestões de companheiros e pareceres de advogados e de empregos da Associação de Empregadas Domésticas da mesma cidade.
Nestes trabalhos estão reunidas as teses que julgamos serem fundamentais sobre a situação da mulher na sociedade capitalista e a forma sobre a qual deve ser conduzida a luta pela sua emancipação. Além desses aspectos, nos dois primeiros artigos, apresentamos algumas considerações sobre a problemática da mulher durante o processo de transformações sociais ocorridas no Chile, no governo de Salvador Allende.
Por essas razões acreditamos que os trabalhos mencionados tem ainda, além de um valor teórico, um certo valor histórico e que, portanto, se justifica divulgá-los no Brasil, para que sejam submetidos à crítica dos leitores brasileiros.
Sem que estivéssemos filiados a algum partido ou movimento político chileno, nos empolgamos, primeiro, com a vitória da Unidade Popular e, em seguida, com as grandes medidas de corte econômico e social que foram por ela implementadas. Participamos ativa e entusiasticamente das suas marchas, desfiles e comícios, fizemos coro junto ao povo chileno de suas palavras de ordem, dirigimos em nossa instituição universitária um Comitê da Unidade Popular, tentamos resistir durantes três dias, também na Universidade, ao golpe fascista: estávamos dispostos a lutar e a dar nossa vida pela resistência chilena, mas fomos derrotados.
Nós, como brasileiros, nos identificamos plenamente com o povo chileno, jamais nos sentimos como estranhos, nem mesmo quando o ódio fardado desencadeou no país uma caça aos estrangeiros, fazendo lembrar a Alemanha de Hitler.
Por tudo isso não tivemos jamais reservas ao formular nossas impressões críticas com relação ao processo de mudanças sociais no Chile; muito pelo contrário, nos sentíamos na obrigação de colaborar, na medida das nossas forças, com uma análise crítica-construtiva, que foi muito bem recebida no ambiente intelectual e político do país e nas diversas partes do mundo onde estes trabalhos foram publicados.
Na verdade, os fortes partidos da esquerda chilena, com suas significativas alas femininas – compostas por operárias, camponesas, estudantes, profissionais e intelectuais – subestimaram sistematicamente as reivindicações específicas das mulheres e, no entanto, estas correspondiam ao percentual mais alto da população… Tal política, ou ausência de política, em relação a essa maioria do povo foi, sem dúvida alguma, um equívoco profundo. A direita soube utilizar as mulheres das classes dominantes e inclusive manipular setores das classes médias nas tristes e ameaçadoras “marchas das caçarolas”. Os que não presenciaram aqueles desfiles, podem imaginar como era grotesco ver as granfinas dos bairros altos, vestidas na última moda das boutiques da rua Providência, com suas jóias e penteados – protegidas por grupos de jovens ricos fascistas, munidos de capacetes, correias e cassetetes, os então auto-denominados “Patria y Libertad” – com aquelas panelas vazias nas mãos. As mulheres da Unidade Popular desfilaram também incontáveis vezes, espalhadas no meio do povo. Isso era correto politicamente, porém, nesses desfiles jamais foram levantadas, de maneira significativa pelo menos, as palavras de ordem a respeito da dupla exploração do trabalho da mulher. Como comentamos no nosso primeiro artigo, suas reivindicações eram as de todo o povo, mas elas não conseguiam que todo o povo se levantasse por suas reivindicações como categoria mulher. O único aspecto que, de repente, se enfatizava era a necessidade da criação dos “Centros de Mães”, reivindicação importante, porém insuficiente.
O leitor ou a leitora brasileiros poderão se perguntar: Mas que importância tem para nós conhecermos essa experiência chilena? Por que não discutir a problemática da luta pela emancipação da mulher brasileira?
Nós responderíamos: É com a reflexão sobre a experiência acumulada das lutas de outros povos, em seus fracassos e vitórias, que humildemente podemos refletir sobre a nossa história e nossa própria experiência buscando nossos próprios caminhos e formas específicas de luta. Quem tem a prepotência ou a ignorância com relação às lutas travadas em outras nações jamais conseguirá compreender e orientar corretamente a sua própria luta.
Nestes trabalhos tratamos de mostrar que a base objetiva para a exploração ou a dupla-exploração do trabalho da mulher nas nossas sociedades, reside no caráter pré-capitalista do labor doméstico, da função feminina de ser reprodutora de valores de uso, mas não de valores de troca enquanto “dona de casa”. Enquanto tal, ela não é independente economicamente ou é duplamente explorada (pois enquanto trabalha fora de casa sua jornada de trabalho em média ascende a 80 horas por semana). A dependência econômica gera a dependência emocional e política em relação ao esposo, a timidez, a esterilização da sua capacidade criadora, em suma, a sua alienação como ser humano.
Procuramos mostrar também que o responsável pela situação de opressão da mulher não é o considerado “primeiro sexo”, quer dizer, o homem, mas sim o sistema de exploração. Por isso, enfocar a luta da mulher contra o homem – posição típica do feminismo – é uma postura equivocada e, consciente ou inconscientemente reacionária, na medida em que tende a desviá-la de seu principal objetivo que é a superação do sistema capitalista. Só o socialismo tem condições de começar a promover a efetiva libertação da mulher, através da planificação centralizada da economia; da promoção da participação popular na gestão da vida econômica e social; da incorporação no processo produtivo; da elevação do nível cultural de todo o povo, condição elementar para o desaparecimento dos preconceitos machistas.
É claro que isso não se consegue de um dia para o outro. É o resultado de todo um processo histórico de lutas, de desenvolvimento da consciência social, das forças produtivas e de toda uma revolução científica e técnica que cada vez mais capacitará o ser humano para dominar a natureza e a si próprio.
Estamos sonhando? Sim, somos sonhadores. Sonhamos com um mundo melhor, confiamos no homem e na mulher, no seu imenso potencial criador. Sabemos que só a ignorância e o atraso os mantém subjugados a essa sujeição que provém do domínio que uns poucos exercem sobre a imensa maioria. Por isso, o nosso sonho só pode ser realizado através da luta. É necessário, pois, sonhar e lutar ao mesmo tempo. O sonho sem a luta só conduz à utopia.
Hoje a nossa luta no Brasil é pela democracia, mas pela democracia plena, política e econômica. Já dizia José Martí, o grande prócer da independência latino-americana: “Não existe liberdade sem pão e nem pão sem liberdade”.
Por isso, lutar pela democracia plena conduz à luta pelo socialismo. É nesta direção que devem ser encaminhados os esforços do povo-mulher brasileiros.