Ruy Mauro Marini: meu melhor amigo!

Vania Bambirra

15 de maio de 2005


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Fonte: João Pedro Stedile e Roberta Traspadini (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo, Expressão Popular, 2005. (o texto aqui se publica graças à gentil autorização da Editora Expressão Popular)

HTML: Fernando Araújo.


Conheci, no começo dos anos 1960, Ruy Mauro Marini, que viria a ser o meu mais querido amigo. Não foi à primeira vista. Ocorria uma reunião, relativamente restrita, para a fundação da Polop – Organização Revolucionária Marxista-Leninista. Era inverno, fazia muito frio, Ruy tomou assento à mesa agasalhado de forma extravagante para os costumes brasileiros da época: trajava jaqueta com grandes botões, gorro de lã, cachecol e luvas, transmitindo um certo ar parisiense da cidade-luz de onde provinha. Discorreu sobre a situação nacional, inserida em seu contexto internacional, sem disfarçar um acentuado ar esnobe. Despertou-me, à primeira vista, uma certa antipatia. Afinal, eu era uma guerrilheira em potencial e possuía uma predisposição contrária – que felizmente desapareceu com os anos – a qualquer tipo de sofisticação. E Ruy, em sua simplicidade, era, ao mesmo tempo, sofisticado, no melhor sentido da expressão.

Apesar disso, quanto mais desenvolvia o seu raciocínio brilhante e dialético, mais me foi envolvendo e conquistando e, quando os debates se desdobraram, eu já tinha a certeza de que aquele era um companheiro definitivo, confiável.

Persistimos na luta, lado a lado, quando logo chegou a hora da resistência à ditadura, que se implantou em 1964. Lembro-me de que depois de sua prisão, uma vez solto, abrigou-se em nosso refúgio clandestino, mantido pela Polop sob a minha guarda e de Theotonio dos Santos, quando então, como cabeleireira improvisada, tingi de preto seus poucos cabelos prateados e o seu bigode, sem deixar de soltar boas gargalhadas.

Logo em seguida, Ruy procurou asilo na Embaixada do México, que oferecia então a maior segurança “do exílio contra a opressão”. Foi-se para o México por comodidade e lá permaneceu por vários anos não propriamente por conveniência, mas por paixão. Aprendeu a amar a sociedade mexicana, aquele país maravilhoso, cheio de mistérios e belezas. Contudo, sua situação ali era precária, pois não dispunha de documentação brasileira. As embaixadas do Brasil se recusavam até mesmo a registrar os filhos nascidos no exílio.

Em 1970 a Unidade Popular ganhou as eleições para a presidência da República no Chile. Imediatamente, Ruy se dispôs a ir para lá. Eu e Theotonio fomos esperá-lo no aeroporto, pois vinha sem nenhum documento, mas conseguimos arranjar para ele um visto provisório. Ruy foi logo contratado no Ceso – Centro de Estudios Socioeconómicos da Universidade do Chile, onde também trabalhávamos. Então, já havia sido publicada sua principal obra, Subdesarrollo y revolución, pela maior editora latino-americana, a Siglo XXI. Foi esse livro que o afirmou como um dos maiores sociólogos latino-americanos. Posteriormente, elaborou outros, tais como Dialéctica de la dependencia, América Latina – dependência e integração, colaborou em várias antologias, uma organizada por mim, que se intitulou Diez años de insurrección en América Latina, e escreveu inúmeros artigos publicados em periódicos.

Sua obra acadêmica não foi muito extensa, porém a qualidade da mesma solidificou o respeito que adquiriu em todo o Continente.

No Chile, vinculou-se ao MIR – Movimiento de Izquierda Revolucionaria -, além de manter vínculos, no Brasil, com a VAR-Palmares, organização revolucionária que tinha por objetivo o socialismo e a via militar contra a ditadura. Porém, nem ele nem eu (ou o Theotonio) acreditávamos que tal empreitada fosse possível e nos esforçávamos para convencer os companheiros da complexidade do processo de lutas no continente e no Brasil, em particular, e de que seria necessária uma ampla mobilização de massas contra a ditadura e a formação de um partido político revolucionário, com quadros bem formados e inseridos no seio da sociedade brasileira. Eu, particularmente, escrevi um artigo que circulou o mundo sobre “Los errores de la teoría del foco”, que foi publicado em Monthly Review, ediciones en castellano, e logo republicado em vários países. Nele, tratava de desmascarar o “foquismo” sistematizado por Regis Debray e que influenciava praticamente toda a esquerda latino-americana. Mas não parou por aí o meu esforço contra essa deturpação ideológica e resolvi estudar a fundo a revolução cubana, cuja explicação errônea havia sido a motivação de tal deformação. Escrevi então o livro La Revolución Cubana: una reinterpretación, cujo prefácio foi escrito por Ruy Mauro. Tal prefácio representa uma síntese de sua concepção da revolução socialista no continente. É uma lástima não poder citá-lo em extenso, pois são várias páginas, mas cito um pequeno parágrafo: “O socialismo é, acima de tudo, a economia que exprime os interesses de uma classe – o proletariado – e se opõe, portantos, aos interesses da classe afrontada pelo proletariado: a burguesia. A luta pelo socialismo expressa-se, pois, através da revolução proletária, que opõe a classe operária e seus aliados à burguesia enquanto classe. Entende-se, assim, que esta não tenha lugar no bloco histórico de forças a quem incumbe realizar a revolução latino-americana”.(1)

Com tal abordagem, Ruy tratava, mais de uma vez, de desmascarar a tese, defendida pelos PCs latino-americanos, de que as burguesias nacionais deveriam participar das alianças de classe contra o imperialismo, considerado pelos mesmos como inimigo principal.

A eclosão do golpe militar-burguês no Chile (setembro de 1973) não nos surpreendeu, mas nos equivocamos ao esperar uma resistência de massas, o que não aconteceu. Fomos todos para o Ceso e, capitaneados por Ruy e Theotonio, esperamos, em vão, pela resistência. Ficamos quase três dias na instituição até que, pelo rádio, vimos esvair-se a possibilidade de uma oposição.

O destino seria novamente o exílio. Entramos na embaixada mais viável de se penetrar, que era a do Panamá, e para lá fomos. Ao final, fomos parar no México, onde permanecemos por quase sete anos, até a anistia. Com a abertura, voltamos ao Brasil.

Por alguns anos, mantivemo-nos afastados; Ruy permaneceu no México ainda algum tempo, pois as instituições acadêmicas brasileiras estavam fechadas para nós, mas proibidas para Ruy depois dos ataques de Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Ambos haviam escrito uma pretensa crítica a Ruy Mauro que, aos olhos da revista mexicana em que seria impressa, tamanha agressão apenas poderia ser publicada com a merecida resposta, tanto que os mexicanos esperavam – atrasando pela primeira vez um número na história da revista – até a resposta de Marini. Fernando Henrique e Serra – mesmo antes de obterem qualquer mandato – mostraram-se fascistas ao proporem, naquele artigo, a censura de um intelectual latino-americano. O que poderíamos esperar deles ocupando mandatos como os de senador, presidente ou prefeito de alguma cidade brasileira?

Somente transcorridos alguns anos da década de 1980, Ruy pôde retornar ao Brasil. Voltamos a nos encontrar no Rio de Janeiro e trabalhamos juntos em vários projetos de capacitação de quadros dentro do Estado por intermédio da Fundação Escola de Serviço Público – Fesp. Academicamente, desenvolvemos alguns projetos de pesquia por intermédio de um instituto que criamos para captar recursos internacionais, já que os recursos brasileiros não estavam ao nosso alcance.

Nós dois tivemos a ideia de criar uma revista acadêmica, política e cultural e a apresentamos a Neiva Moreira, pois ele tinha uma estrutura já montada que editava a revista Cadernos do Terceiro Mundo. Os diretores seríamos Ruy e eu, mas Neiva argumentou que ele teria de ser o diretor-responsável porque nós não éramos jornalistas. Aceitamos de malgrado. O primeiro número da revista, que se chamou Terra Firme, saiu lindo, com ilustrações belíssimas, que solicitamos a Wilma Martins, em outubro-dezembro de 1985, pois seria trimestral. Além dos nossos, encomendamos artigos para Emir Sader, Theotonio dos Santos, Miroslav Pecujlic, Andre Gunder Frank, entrevistamos expoentes do cinema brasileiro como Leon Hirszman, Eduardo Coutinho e Sílvio Tendler, além da participação de Flávio Pinto Vieira. Eu, a cineasta Tetê Morais e os psicanalistas Joel Birman e Cháin Samuel Katz discutimos sobre a psicologia da crise brasileira.

Na preparação do segundo número, Neiva tomou as rédeas em suas mãos. Retirou Wilma e nos apresentou novas ilustrações, feias. Lembro-me de que vetei determinadamente uma que representava um camponês carregando encurvado uma enxada com a foice e o martelo… E a revista se acabou e foi uma pena. Simplesmente não tínhamos recursos próprios para mantê-la.

Ruy, então, tomou a iniciativa de deslanchar a reintegração dos ex-professores e instrutores à Universidade de Brasília, de onde haviam partido, entre 1964 e 1966, por perseguições políticas. Reencontramo-nos então, na UnB, no Departamento de Ciências Políticas e Relações Internacionais. Ruy, logo que completou o prazo legal para se aposentar, retornou ao Rio de Janeiro. Não gostava de Brasília, da sua secura, e costumava dizer: “é a única cidade onde a gente torce para chover”. Não ocorria o mesmo comigo, pois lá permaneci por onze anos, primeiro na Universidade e, em seguida, na Câmara dos Deputados. Falávamo-nos sempre por telefone ou quando eu vinha ao Rio.

Darcy Ribeiro estava, nessa época, pensando em criar a universidade que chamava de “Terceiro Milênio”, que seria uma universidade eletrônica. Encarregou-me de elaborar o curso de Ciências Políticas e eu propus uma parceria com Ruy Mauro. Darcy gostou da ideia, e elaboramos juntos uma proposta para o mesmo. Devo tê-la ainda, mesclada a mil papéis que nunca encontro tempo de buscar. Com a morte de Darcy o projeto frustrou-se.

Foi o último projeto que realizei com Ruy Mauro. Algum tempo depois, Ruy ficou doente. Continuamos a nos falar muito por telefone (eu sentia quando ele estava mal por sua voz) e pessoalmente quando eu vinha ao Rio. Um dia recebi a notícia de que ele estava hospitalizado. Tomei um avião e vim, junto com meu filho, para vê-lo, por uns breves minutos, em uma UTI. Logo depois, Ruy morreu. Não tive coragem de vir ao seu enterro. Chorei sozinha em Brasília. Preferi guardar sua recordação bem viva, irônica, brilhante. Sinceramente? Foi o maior amigo que tive.

Rio de Janeiro, 15 de maio de 2005.


Notas de rodapé:

(1) O livro foi escrito em espanhol e publicado em vários países. Esta versão para o português é da Ed. Centelha, Portugal, 1975 [nota de Vania Bambirra]. (retornar ao texto)

Inclusão: 16/11/2021