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Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Chasqui Latino-Americano, Rio de Janeiro, out. 1992, p. 8-10
HTML: Fernando Araújo.
O Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) é muito mais do que a criação de um mercado comum entre México, Estados Unidos e Canadá, é a inauguração de uma etapa mais profunda da dependência estrutural do capitalismo latino-americano aos Estados Unidos.
A partir do fim da segunda guerra mundial – quando os EUA se afirmaram como centro hegemônico do sistema capitalista – existiam na economia norte-americana fatores que impeliam a saída de capitais para promover a industrialização dependente nos países da América Latina.
O início do processamento da revolução científico-tecnológica começou a gerar um excedente econômico crescente, fazendo imperiosa a busca de novos mercados que absorvessem, sobretudo, a maquinaria e equipamentos obsoletos. Por outro lado, as tarifas protecionistas, através de barreiras cambiais, que visavam a proteger as indústrias nacionais, transformaram-se em um grande estímulo para a instalação de indústrias estrangeiras nos países latino-americanos. Isso se deve ao fato de que se as tarifas eram altas para os bens de consumo, as maquinarias dispunham de isenções. Isso permitia a renovação tecnológica nas matrizes. Ademais, os produtos das sucursais estrangeiras passavam, também, a ser protegidos de outros concorrentes externos e, a sua produção no interior das economias nacionais possibilitava a fixação de preços mais altos, gerando taxas elevadas de lucro.
A existência de mão de obra abundante e barata permitia a obtenção de altos níveis de taxas de mais-valia e as divisas disponíveis, obtidas por esses países através do setor primário-exportador, podiam ser adquiridas pelas empresas estrangeiras para repatriar seus lucros.
Existia um mercado interno já conformado e com possibilidades de expansão, articulado por meio de um relativo desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte (estradas, ferrovias, portos, aeroportos, telefones, etc.). Dispunham-se, ainda, da produção de insumos fundamentais, tais como centrais hidro e termoelétricas, siderurgia, petróleo, além de uma mão de obra com uma certa preparação técnica e de quadros profissionais técnicos e científicos. E ainda o que é de importância superlativa: uma grande abundância de recursos naturais e de matérias-primas para a produção industrial.
Por último, haviam sido criadas uma série de condições bem mais políticas – a partir da metade da década de cinquenta – quando começam a ser rompidas as utópicas propostas de desenvolvimento nacional autônomo. Tal ruptura se expressa através da criação de estímulos aos investimentos estrangeiros, pela supressão de barreiras fiscais, incentivos tributários, aduaneiros, cambiais, etc.
Também a criação de facilidades para remessa de lucros que são regulamentadas “liberalmente” a fim de agilizar o seu envio por meio de benefícios, depreciações, royalties, sobrepreço de insumos importados, etc.
Importante também foi a adoção de políticas econômicas estabilizadoras, tal qual preconizava o FMI (Fundo Monetário Internacional), com o objetivo de criar condições para estabilidade monetária e assegurar um nível mais alto de acumulação, estimulando a concentração e a centralização de capitais. A política do FMI sempre se baseou no “arrocho” salarial, na restrição de créditos à pequena e média burguesia e na contenção do gasto fiscal, gerando um grande descontentamento social. Consequentemente, a implementação de uma política repressiva, orientada especialmente contra o movimento operário, pôde assegurar um alto nível da taxa de mais-valia e conter o descontentamento com a política econômica.
Além desses fatores que criavam as condições, nos países dependentes, para uma ampla e desenfreada penetração do capital estrangeiro, outros geraram essa nova feição da dependência, tais como: o caráter essencialmente internacional do sistema capitalista; o modelo de reprodução dependente que passa pelo exterior (a industrialização depende do setor 1, de bens de produção, das economias onde este setor foi desenvolvido); o controle monopólico das novas tecnologias, através da propriedade das patentes; as melhores condições de competição das empresas multinacionais e o que chamamos mecanismos acumulativos da dependência. Este fator diz respeito ao fato de que essas empresas reinvestem uma fração irrelevante do seu capital e remetem para o exterior a maior parte sobre o conceito de lucro que se incrementa indiretamente, através do pagamento de royalties, pagamento de serviços técnicos e de depreciações, cujo resultado é a descapitalização da economia. Isso se reflete nos déficits da balança de pagamentos. Ora, para se suprir esses déficits são necessárias “ajudas” externas por meio de empréstimos que fazem crescer o serviço da dívida, aumentam ainda mais o déficit e incrementam a necessidade progressiva de capital estrangeiro. Este se converte pois em um uma necessidade intrínseca do funcionamento do capitalismo dependente, componente descapitalizador e capitalizador.
Assim, o capital estrangeiro adquire o controle e domínio dos novos setores e ramos produtivos industriais que começam a desenvolver-se desde então. Intensifica-se desse modo a monopolização, concentração e centralização da economia, que se expressa através da instalação de grandes empresas multinacionais e da absorção, por parte dessas, de empresas nacionais, por meio de compras, fusões, associações, etc. Verifica-se, também, a desnacionalização progressiva da propriedade privada dos meios de produção nos setores até então controlados por produtores nacionais.
Um dos efeitos mais perversos desses processo é a perda da soberania nacional, pois as classes dominantes transformam-se em classes dominantes-dominadas, em sócias-menores do capital estrangeiro. As políticas nacionalistas são abandonadas por essas, cabendo apenas a governos diretamente comprometidos com os movimentos sociais populares resgatá-los, como foi o caso do de Salvador Allende, no Chile.
A dependência do imperialismo – utilizando-se o conceito em sua estrita acepção científica – não é meramente uma dominação externa, pois a mesma tende a conformar a estrutura interna das sociedades latino-americanas, condicionando-as a seus interesses econômicos, políticos e sociais. O capital estrangeiro, através de seus sócios-menores, passa a participar da confraria de poder das classes dominantes, chegando, muitas vezes, a adquirir a sua hegemonia. É por isso que Ministros de Economia são, em geral, “delegados” do sistema financeiro internacional, embora poucos tenham a desfaçatez de reconhecê-lo, como o fez o Ministro da Economia do Brasil, Sr. Marcílio Marques Moreira” (Revista Veja, 26 de agosto de 1992, p. 19).
Pelo que se conhece do NAFTA – uma síntese de 20 páginas divulgadas, das 2000 originais – é possível perceber claramente que, além da integração comercial, ele visa o controle total, pelo capital , especialmente o norte-americano e, muito secundariamente, do canadense primeiro da economia mexicana. A penetração desse capital será tão sem limites que deverá atingir as grandes empresas estatais, como PEMEX (Petroleos Mexicanos), patrimônio histórico do povo mexicano, até o sistema financeiro. É a mesma dependência estrutural que começou a configurar-se a partir do pós-guerra mundial, mas que, nessa nova etapa, transforma-se num gigantesco polvo, cujos tentáculos envolverão a economia mexicana, até os seus recônditos então inexpugnáveis, anexando-os aos EUA. Esse é o primeiro passo. Em seguida, esse polvo atingirá o Chile, país com o qual o México já subscreveu, no ano passado, um tratado semelhante, assim como o grupo dos Três (que engloba a Colômbia e a Venezuela). Ademais, os centro-americanos com os quais o México assinou, em agosto, o TLC, Tratado de Livro Comércio, transformando-se, assim, em potência hegemônica regional, porém administrada pelos interesses das empresas norte-americanas. Será fácil estender-se ao Caribe. Contudo o que os EUA almejam são os dois países mais desenvolvidos do cone sul, Brasil e Argentina e, de sobra, o Uruguai e Paraguai, vale dizer, os signatários do MERCOSUL – Mercado Comum do Sul. Isso poderá ser concretizado através do acordo “4 mais 1”, que incluiria os EUA neste tratado, ou um acordo entre acordos NAFTA e MERCOSUL. Argentina e Brasil, através de acordos regionais, serviriam de pontas-de-lança para que a produção das transnacionais americanas penetrassem, de forma mais intensa e livre de quaisquer obstáculos, no mercado dos demais países, tais como Peru, Equador, Bolívia, etc., nos quais não existe maior interesse em instalar indústrias. O continente será assim anexado à economia norte-americana.
Mas o NAFTA não é um acordo de integração como o da Comunidade Econômica Européia que busca romper fronteiras (livre circulação de indivíduos e, portanto, mão de obra), unificação monetária, política, militar, etc. É apenas econômica. A atual lei de imigração continuará vigente, os “chicanos” continuarão “chicanos”, vale dizer, “cucarachas”. Apenas os executivos de empresas mexicanas (sic!) poderão trabalhar, como já trabalham, nos EUA.
Tal fato significa que as duas grandes potências se resguardaram ao manter bem fechadas as portas aos indesejáveis desempregados mexicanos ao acentuar, neste aspecto, o caráter meramente comercial do tratado que, na verdade, em outros aspectos, não é nada meramente comercial. Ao contrário, ele exige que mais da metade dos componentes dos produtos exportáveis sejam “made in méxico”, criando assim condições para as associações entre empresas americanas e canadenses com os sócios-menores mexicanos. Logo em seguida da ratificação do acordo, pelo congresso americano, 70% dos produtos mexicanos exportados deixarão de pagar impostos. Porém, esses produtos serão cada vez mais produzidos por empresas canadenses e americanas no território mexicano.
Não foi aleatório que, desde o primeiro momento, centrais sindicais mexicanas, norte-americanas e canadenses manifestaram suas francas restrições ao NAFTA, devido ao fantasma – já bem corpóreo – do desemprego. Os operários canadenses e americanos temem a transferência massiva de empresas – sobretudo as de baixa tecnologia que empregam muita mão de obra – para o território mexicano, devido aos baixos salários. Os mexicanos temem a quebradeira em alta escala das pequenas e médias empresas que ocupam trabalhadores com baixa qualificação. Fidel Velásquez, líder da CTM (Confederação dos Trabalhadores Mexicanos), fiel escudeiro e respeitado pelo PRI (Partido Revolucionário Institucional) que se mantém há décadas no poder, pronunciou-se, num primeiro momento, contra o NAFTA.
Os ecologistas americanos, canadenses e sobretudo mexicanos se preocupam com a degradação mais intensa ainda do meio ambiente no México, pois ali as normas de controle não são rigorosas, o que é uma atração adicional para as empresas mais poluidoras. A pequena e média burguesia teme a falência e os ejidatários, seguramente, terão de alienar suas terras a preço vil diante da competição de poderosos complexos agro-industriais.
O México foi o país eleito para inaugurar essa nova era da dependência não só pelo seu nível já dado de desenvolvimento e pela enorme fronteira com os Estados Unidos (como dizem os mexicanos: “pobre México, tão longe de Deus, tão perto dos EUA”). Foi eleito porque, a partir de 1983, começou a cumprir o que viria a ser um pressuposto fundamental ao tratado: a aplicação ortodoxa da política de estabilização monetária do FMI, a desestatização e abertura da economia, vale dizer, a implementação do chamado neoliberalismo. São esses pré-requisitos que condicionarão os novos ingressos no NAFTA.
Quais serão as consequências do futuro imediato do NAFTA? Para o Canadá e EUA um novo impulso ao seu desenvolvimento e, especialmente para o último, uma excelente perspectiva de contornar suas gravíssimas crises econômicas que têm sido periódicas e intensas, além de aprofundar sua dominação e exploração sobre a América Latina, fazendo-a mais dependente ainda, aumentando assim o seu poderio absoluto em nível mundial.
Para o México, apesar de que poderá se afirmar como uma subpotência (já não seria hora de se resgatar o conceito de subimperialismo?), as condições da maioria do povo não seriam melhores, muito pelo contrário. Afinal, todo esforço pelos dois últimos governos no sentido de estabilizar a economia mexicana foi em vão para o povo, só serviu para empobrecer os assalariados.
No capitalismo, desenvolvimento não é sinônimo de justiça social. Assim, o resultado mais possível do NAFTA será o acirramento do nacionalismo, sentimento muito profundo no mexicano desde a conquista dos espanhóis, passando pela perda de uma enorme porção territorial para os EUA, a Revolução Mexicana, a estatização do petróleo e a manutenção das relações diplomáticas com Cuba. Quanto ao resto da América Latina, basta esperar ver.