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Fonte: Revista Estudos Sociais, nº 3-4, Setembro/Dezembro de 1958, pág: 302-322
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O uso da metáfora para definir certos estados de alma das criaturas que vivem nos contos e romances de Machado de Assis — eis uma constante nos seus processos de composição. Combinando com arte suprema o invisível e o visível, o imaterial e o material, o ficcionista traduz em imagens concretas o jogo escondido do pensamento ou do sentimento que germina e se desenvolve no íntimo dos seus personagens. Por exemplo, quando atribui aos olhos a sutil faculdade de palpar o impalpável ou tocar fisicamente aquilo que a imaginação quer tocar, palpar, afagar ou comer, beber, lamber.
Veja-se, logo no início do primeiro capítulo de Iaiá Garcia, como o romancista descreve o momento em que o escravo Raimundo recebe de Luís Garcia a carta que o alforriava:
“Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um preto de cinquenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre”.(1)
Este contraste de condição social — escravo e livre — é resolvido sentimentalmente pela maneira descrita a seguir:
“Quando Luís Garcia o herdou de seu pai (...) deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade,. não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo”(2).
A trama do episódio é magistralmente armada e conduzida até o momento psicológico em que o “afeto” de Raimundo é “palpado”, concretamente, pelos olhos de Luís Garcia.
No Dom Casmurro há um diálogo entre prima Justina e Bentinho, em que os olhos dela, espreitando e devassando cada palavra do rapaz, não se limitam a apalpá-lo mas exercem simultaneamente todos os sentidos. Ele não percebeu nada enquanto conversavam. Horas mais tarde, ao reconstituir o diálogo, é que sentiu as forças secretas que havia no olhar da interlocutora:
“Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos”(3).
E só muitos anos depois é que o memorialista pôde formular a suposição de que prima Justina buscava — “no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias”.(4) Buscava com os olhos e nessa busca os olhos apalpavam, ouviam, cheiravam, gostavam.
Mas é sobretudo à vista de dinheiro, moedas de ouro, carteira recheada de notas, uma simples nota, quando os olhos das criaturas machadianas exercem plenamente o seu ofício introspectivo. No conto “O Empréstimo”, a alma do pedinte Custódio é assim desnudada pelo contista no momento em que vê a carteira do tabelião Vaz Nunes:
"Ó! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo”(5).
Mais característico ainda é o que se passa em duas passagens do conto “Anedota Pecuniária”. O avarento Falcão pega uma nota de cinco mil réis, que não era dele, queda-se a admirá-la, embevecido, e depois dobra-a vagarosamente, — “sem tirar-lhe os olhos de cima”, — devolve-a e ex-dama, “com a maior candura do mundo: — Dinheiro, mesmo quando não é da gente, faz gosto ver”(6).
O contista continua a dissecar as entranhas do avarento:
“Era assim que ele amava o dinheiro, até à contemplação desinteressada. Que outro motivo podia levá-lo a parar, diante das vitrinas dos cambistas, cinco, dez, quinze minutos, lambendo com os olhos os montes de libras e francos, tão arrumadinhos e amarelas?”(7)
Mais adiante, esta cena entre Falcão e Reginaldo, que acabava de chegar dos Estados Unidos:
“Reginaldo tirou do bolso do colete um dólar e mostrou-lho. Falcão, antes de lhe pôr a mão, agarrou-o com os olhos”(8).
Em outro conto, “O Escrivão Coimbra”, o velho oficial de justiça, viciado na loteria, compra um bilhete de quinhentos contos. O contista vira pelo avesso a alma do pobre homem, torturado de esperanças, a sonhar acordado com a dinheirama prometida pelo bilhete:
“Quinhentos contos! Tais coisas viu neste algarismo que fechou os olhos deslumbrados. O ar, como um eco, repetiu: Quinhentos contos! E as mãos apalparam a mesma quantia” (9)
Aqui são as mãos que apalpam a quantia vislumbrada pela imaginação, mas eram mãos que operavam em função dos olhos fechados. O movimento psicológico é semelhante.
No diálogo “Entre Santos”, S. Francisco de Sales conta o caso do usurário Sales, seu devoto homônimo. A mulher de cama, com erisipela na perna esquerda, piorando dia a dia, Sales apela para o santo da sua particular devoção. Reza, implora, bate no peito, promete-lhe uma perna de cera. Que lhe salvasse a pobre doente! S. Francisco de Sales ouvia-lhe as preces e via-lhe a alma por dentro, alma de usurário, roída de pena e medo de perder a companheira, e ao mesmo tempo roída de outras penas e outros medos. A certa altura da narrativa do santo lê-se esta passagem:
“No ar, diante dos olhos, recortava-se-lhe a perna de cera, e logo a moeda que ela havia de custar. A perna desapareceu, mas ficou a moeda, redonda, luzidia, amarela, ouro puro, completamente ouro, melhor que o dos castiçais do meu altar, apenas dourados. Para onde quer que virasse os olhos, via a moeda, girando, girando, girando. E os olhos a apalpavam, de longe, e transmitiam-lhe a sensação fria do metal e até a do relevo do cunho”(10).
Pode-se dizer que os olhos são o instrumento predileto, que Machado de Assis utiliza largamente no seu ofício de psicólogo, ocupado acima de tudo em devassar as intimidades secretas da alma alheia. E aí a sua virtuosidade de expressão atinge o mais alto grande potência persuasiva como realização artística. Aos exemplos mencionados podemos acrescentar algumas variantes, em que os olhos funcionam de fora para dentro.
Em certo momento de um diálogo dramático entre Estela e Iaiá Garcia, enquanto esta última fala e fala, a justificar-se do seu comportamento inamistoso, aquela ouve tudo em silêncio, um silêncio carregado de dúvidas.
“Luzia-lhe nos olhos” — esclarece o narrador — “alguma coisa que espreitava a alma da outra por baixo das pálpebras caídas”(11).
Mais adiante, em meio a outro diálogo, os papéis se invertem — Iaiá Garcia, aproveitando um instante de pausa, acende os olhos sobre Estela:
“Iaiá não tirou os olhos da madrasta. Essas duas lâmpadas buscavam examinar-lhe, no momento supremo, todos os recantos da consciência e todos os atalhos do passado”(12).
Ora, Machado de Assis não fazia outra coisa senão isso, precisamente — os olhos, abertos ou dissimulados, a espreitarem a alma de quem lhe caía debaixo da mira. Era o prévio trabalho de análise e seleção dos personagens que viria a transpor para os seus contos e romances, Depois, com requintes de criador todo-poderoso, incumbia as suas próprias criaturas de se espreitarem umas às outras,
Ainda em Iaiá Garcia encontramos outra aplicação magistral do processo, numa cena em que Iaiá, interpretando palavras do pai, “adivinha” certo desvão escondido no passado da madrasta: com os olhos cravados em Estela —
“Iaiá olhou a princípio com curiosidade, depois com espanto, até que os olhos luziram de sagacidade e. penetração. O estilete que eles escondiam desdobrou a ponta agudá e fina, e estendeu-a até ir ao fundo dá consciência de Estela. Era um olhar intenso, aquilino, profundo, que palpava o coração da outra, ouvia o sangue correr-lhe nas veias e penetrava no cérebro salteado de pensamentos vagos, turvos, sem ligação” (13).
É uma cena conduzida com certa lentidão, graduada meticulosamente, até alcançar o seu objetivo psicológico fundamental, que era muito menos o de suscitar o pressentimento de um possível amor pecaminoso de Estela do que o de produzir na jovem Iaiá o desabrochamento do espírito suspicaz, malicioso, agressivo, próprio de mulher adulta. Iaiá, diz-nos o narrador, não conhecia as vicissitudes do coração, nem tinha ideia do mal:
“Jardim fechado, como a esposa do Cântico, viu subitamente rasgar-se-lhe uma porta, e esses dez minutos foram a sua puberdade moral. A criança acabara; principiava a mulher”(14).
O drama em Iaiá Garcia está ainda impregnado de vestígios românticos, mas o romancista luta por libertar-se deles, e nesta luta o “olho inexorável” do psicólogo, a que se refere Olívio Montenegro(15), desempenha um papel decisivo. Era um olho realista de nascença. No Brás Cubas, o romancista, já definitivamente liberto, amplia e aprofunda os seus métodos, e chega a divertir-se com a aplicação dos olhos em ousadas metáforas. Veja-se o trecho seguinte, colhido no capítulo CXVI:
“A partida de Virgília deu-me uma amostra de viuvez. Nos primeiros dias meti-me em casa, a fisgar moscas, como Domiciano, se não mente o Suetônio, mas a fisgá-las de um modo particular: com os olhos. Fisgava-as uma a uma, no fundo de uma sala grande, estirado numa rede, com um livro aberto entre as mãos”(16).
No Esaú e Jacó há uma página de extraordinária beleza e não menos extraordinária finura psicológica, na qual os olhos insones de Flora entressonham uma incursão apaixonada pelos olhos a dentro de Paulo, e aí descobrem perturbadoras delícias:
“Inclinou-se, para vê-lo de mais perto, e não perdeu o tempo nem a intenção. Visto assim, era mais belo que simplesmente conversando das coisas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e achou-se dentro da alma do rapaz. O que lá viu não soube dizê-lo bem; foi tudo tão novo e radiante que a pobre retina da moça não podia fitar nada com segurança nem continuidade. As ideias faiscavam como saindo de um fogareiro à força de abano, as sensações batiam-se em duelo, as reminiscências subiam frescas, algumas saudades, e ambições principalmente, umas ambições de asas largas, que faziam vento só com agitá-las. Sobre toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita ternura... ”(17).
Também o conselheiro Aires teve um delírio semelhante quando, em preguiçosos restos de sono, uma bela manha, sonhou que Fidélia o fora visitar:
“Peguei-lhe nas mãos, e enfiamos os olhos um no outro, os meus a tal ponto que lhe rasgaram a testa, a nuca, o dorso do canapé, a parede e foram pousar no rosto do meu criado, única pessoa existente no quarto, onde eu estava na cama”(18).
Os olhos sexagenários de Aires não podiam render mais, mesmo em sonho; mas ainda assim exerceram cabalmente o ofício que a metáfora lhe inculcava, convertendo-se num par de puas endoidecidas por imprevista vertigem amorosa, e que só pararam de encontro à banalíssima realidade acordada que era o rosto do criado.
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A perspicácia popular empresta aos olhos a faculdade de refletir a alma: os olhos são o espelho da alma. Espelho material refletindo o imaterial — porque o imaterial só por si, sem algum amparo de natureza material, ainda que por via reflexa, é coisa inimaginável que escapa ao entendimento, comum, formado ao toque de sensações tangíveis, de base materialista. Machado de Assis, genial caçador e dissecador de almas, não se contenta porém com o contemplá-las no espelho — ele faz desse espelho precisamente o seu agudo aparelho de prospecção e descobrimentos psicológicos. Mais ainda: para revelar o resultado do seu trabalho, ou seja, para revelar os movimentos, que se desenvolvem no íntimo das criaturas captadas da realidade e recondicionadas na ficção, o romancista lança mão outrossim de processo igualmente material, fazendo da metáfora o meio de tornar concreto, visível, palpável, o que é abstrato, invisível, impalpável. Processo que em verdade não é apenas material, simplesmente material, porém, mais que isso, essencialmente materialista.(19)
Nem se pense que Machado de Assis fazia uma aplicação meramente intuitiva, “inconsciente”, desse processo. Nada disso. Ele chegou mesmo a examinar teoricamente o problema, como se pode ver no seguinte passo do Quincas Borba:
“Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos de ideias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra”(20)
Eis aí uma concepção puramente materialista — e dialética — do processo de sincronização e interpenetração que se opera no jogo dialogal entre homens e coisas. Lembremos, por outro lado, que em numerosas páginas de Machado de Assis é repetida a expressão “ruminar” como equivalente de “pensar”, emprestando-se assim à função de pensar um sentido material que redunda em sentido materialista.
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Calcídio, filósofo do século IV, atribuía a Heráclito de Éfeso uma descrição teórica do mecanismo dá percepção ocular, segundo a qual o movimento íntimo, que reflete a tensão ou a atenção da alma, se prolonga pelos olhos e assim alcança e apalpa os objetos visíveis.(21) Não há, entre os fragmentos conhecidos de Heráclito, nenhuma indicação autêntica sobre a matéria, o que leva a por-se em dúvida a autoria que lhe foi atribuída. Entretanto, fosse ou não fosse formulada pelo próprio Heráclito, o que me parece é que semelhante teoria se ajusta perfeitamente à linha dialética e materialista do pensamento heraclitiano. Ela se ajusta igualmente ao emprego da metáfora, tão frequente em Machado de Assis, em que os olhos, obedecendo a certos movimentos psicológicos dos seus personagens, se prolongam no espaço e tocam “fisicamente” o objeto visível ou mesmo imaginado, como vimos nos vários exemplos citados anteriormente.
Ao ler pela primeira vez o comentário de Calcídio, logo me acudiram à memória algumas das cenas descritas pelo nosso romancista, com olhos tocando, apalpando, pegando coisas que viam, desejavam ou imaginavam. Nem era difícil estabelecer concordância entre a teoria atribuída a Heráclito e as metáforas usadas por Machado de Assis.
Os franceses empregam a expressão “léche-vitrine”, lambe-vitrina, justamente para definir o indivíduo que pára embevecido em frente a uma vitrina cheia de moedas, ou joias, ou coisas parecidas — tal o caso, sem tirar nem pôr, do avarento Falcão, do conto “Anedota Pecuniária”. Nada de mais que essa expressão francesa fosse conhecida pelo autor brasileiro. Pode ser também que expressão idêntica exista noutras línguas e até mesmo em português de Portugal — coisa que não posso averiguar por agora. Seja como for, permanece de pé ã concordância entre a teoria grega e a prática brasileira.
Não direi propriamente que se trata de uma “aplicação” deliberada da teoria à prática literária, mas não há dúvida que a maneira machadiana de exprimir certos momentos e movimentos psicológicos, como nos casos aqui citados, constitui admirável exemplo de realização artística da teoria em questão.
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Machado de Assis, homem de muitas leituras, manuseava com frequência os mestres do pensamento antigo e moderno, neles buscando ensinamentos ou respostas às suas dúvidas. Compreende-se então por que podemos perceber certo parentesco ideológico entre a filosofia da vida, de que a sua obra se acha impregnada, e o pensamento dos materialistas e dialéticos gregos, entre os quais se destaca precisamente Heráclito de Éfeso. Muito pensamento, muito aforismo, muito conceito é possível assinalar nas páginas machadianas — tanto na prosa como na poesia, tanto na ficção como na crítica e na crônica — com semelhante raiz filosófica. Citarei alguns exemplos, que me parecem característicos, tomados do Esaú e Jacó.
Veja-se o capítulo XXXVI deste romance, cujo título — “A discórdia não é tão feia como se pinta” — se repete na frase inicial do texto, sem o “tão”:
“A discórdia não é feia como se pinta, meu amigo. Nem feia nem estéril. Conta só os livros que tem produzido desde Homero... ”(22)
Já a referência a Homero leva-nos à Grécia antiga. Mas a palavra “discórdia” leva-nos diretamente aos filósofos pré-socráticos, principalmente Heráclito e Empédocles. Empédocles faz da Discórdia (ou Ódio) e da Amizade (ou Amor) os dois princípios, um externo e outro interno, da sua teoria do Uno e do Múltiplo. Heráclito, por sua vez, coloca a “discórdia” e a “necessidade” na base de todos os acontecimentos. E é ainda Heráclito que critica o verso de Homero — “Possa a discórdia extinguir-se entre os deuses e os homens” — dizendo que sem a discórdia, isto é, sem o conflito, sem a luta dos contrários, a própria vida é que se extinguiria. O filósofo de Éfeso exprime esse mesmo pensamento em mais de uma formulação, por exemplo:
"Os contrários entram em acordo, de sons diversos resulta a mais bela harmonia, e tudo é engendrado pela luta.(23)
Noutra passagem do Esaú e Jacó há a seguinte fala do conselheiro Aires:
“— Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que a “guerra é a mãe de todas as coisas”. Na minha opinião, Empédocles, referindo-se à guerra, não o faz só no sentido técnico... ”(24)
Esta observação final é inteiramente justa e conforme o espírito do conceito filosófico citado entre aspas. Trata-se, com efeito, de “guerra” no sentido mais lato e universal de “luta”, “conflito”, “contradição”. Creio porém que Machado de Assis equivocou-se ao atribuir a frase a Empédocles; ela pertence antes a Heráclito, que deixou dito, segundo a versão de Maurice Solovine (fragmento 52,) : “O combate é o pai de todas as coisas, o rei de tudo”(25). A diferença de “mãe”, na versão de Machado (e de outros), para “pai”, na versão de Solovine (e de outros), liga-se evidentemente ao termo inicial — “guerra” no primeiro caso, “conflito” no segundo.
Apontarei ainda um conceito de Dom Casmurro, referindo-se a Escobar, seu condiscípulo no Seminário: “... o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes”.(26) Conceito rigorosamente heraclitiano — e dialético.
Eis um veio a ser melhor explorado em Machado de Assis, o do seu parentesco espiritual com Heráclito (e os materialistas e dialéticos gregos em geral) —talvez parentesco por afinidade e não de sangue, mas, em todo caso, parentesco. E não é só parentesco no domínio das ideias, mas também de temperamento e de certos modos e métodos de expressão, sobretudo em relação a Heráclito.
Teofrasto dizia que Heráclito possuía um temperamento de homem inspirado, isolado e melancólico. Não é esse também um traço marcante no temperamento de Machado de Assis? E Léon Robin, moderno historiador do pensamento grego, via na obra de Heráclito “uma coleção de aforismos em prosa, cuja língua imaginosa e rica em antíteses, não raro ambígua...”(27). Muito do melhor Machado de Assis pode ser também definido assim.
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Não estou pensando em puxar a brasa para a minha sardinha, arbitrariamente, ao demorar a atenção sobre as influências materialistas e dialéticas na formação espiritual de Machado de Assis. Ele não era um filósofo profissional, um pensador propriamente dito mas um escritor, um artista, que abeberou o seu espírito em fontes variadas do pensamento antigo e moderno, assimilando de umas e outras aquilo que melhor condizia com a sua própria maneira de ser, de viver e de conviver. Eis porque me parece importante — se queremos penetrar a fundo na sua obra — mostrar que o pensamento materialista e dialético que data da aurora da filosofia grega, constitui certamente uma dessas fontes — e não a menos fecunda.
Não foi Machado de Assis — nem podia ser, nas condições brasileiras do seu tempo — o que se chama hoje um materialista consequente, e muito menos um materialista dialético, de filiação ou parentesco marxista. Há boas razões para supor que não conhecia Marx e Engels, nem sequer de simples leitura. Mas o fio essencial do seu pensamento é materialista, e seu processo de pensar e de exprimir-se é um processo dialético. O estudo e a experiência o levaram a uma concepção materialista da vida, se bem que nem sempre coerente e consequente em sua expressão; já o processo dialético era nele coisa a bem dizer do berço, instintiva, congênita.
Creio que não será muito difícil determinar que o pensamento materialista se acentua em sua obra com o correr dos anos. É um pensamento que se enraíza no mais íntimo do seu ser e que se define claramente na maturidade, sem embargo de manifestações e opiniões de superfície. Os resíduos de idealismo religioso, que ainda revela, ou a que se refere convencionalmente, não vão além de — “uma vaga religiosidade, provavelmente um deísmo ineficaz”, conforme observa Barreto Filho(28). Pelo contrário, seu pensamento materialista se exprime algumas vezes em formulações de admirável nitidez, quer pela exatidão dos termos, quer pela profundidade do conteúdo filosófico. Um exemplo, entre outros, colhido em crônica de 22 de novembro de 1896:
“Nós não temos outra prova do mundo que nos cerca senão a que resulta do reflexo dele em nós: é a filosofia verdadeira”(29).
Nenhum materialista antigo ou moderno recusaria assinar essa formulação machadiana.
Refere Lúcia Miguel Pereira, em seu estudo crítico e biográfico, que Machado de Assis, já no fim da vida, “acusado de materialista” por um amigo, retrucou-lhe vivamente:
“Materialista, eu? Absolutamente”.(30)
Semelhante negativa não invalida o que se disse aqui — aliás repetindo o que outros já disseram — acerca das raízes materialistas do pensamento machadiano.
Já vimos que ele não era um materialista acabado e consequente. Não era, nem podia ser, dadas as condições sociais do meio em que viveu e trabalhou. Nem é possível apontar, entre os escritores brasileiros do seu tempo, inclusive aqueles que mais de perto lidavam com os problemas filosóficos, algum que houvesse chegado a posições materialistas isentas de vacilações e incongruências. Veja-se, por exemplo, Sílvio Romero, crítico e professor de filosofia, seguramente o mais combativo e avançado de todos: sem grande esforço podemos verificar em suas obras numerosas confusões e inconsequências no concernente ao problema fundamental da delimitação e oposição entre materialismo e idealismo. A mesma coisa se pode verificar nos positivistas, ortodoxos ou dissidentes. Isto posto, não é de admirar que Machado de Assis tivesse retrucado, pela forma em que o fez, àquela “acusação” do amigo. Considere-se, por outro lado, que ambos se referiam, provavelmente, ao “materialismo” em sua acepção mais vulgar e grosseira, que nada tem que ver com o materialismo filosófico.
Sabe-se que Pascal foi desde cedo um dos mestres de cabeceira de Machado de Assis, mas mestre de ceticismo, não de misticismo, e na realidade o ceticismo machadiano se alimentava mais de Montaigne que de Pascal. Era um ceticismo de raiz materialista, por isso mesmo não-fideista — “alguma coisa de irredutivelmente racionalista que o inibia à compreensão da fé”, conforme justa observação de Lúcia Miguel Pereira(31).
O próprio Machado de Assis diria a última palavra neste sentido, na hora grave e decisiva do diálogo final com a morte, ao recusar qualquer espécie de assistência religiosa:
— “Não creio... Seria uma hipocrisia”, disse, com a voz sumida mas lúcida e intrépida(32).
Só uma profunda convicção materialista poderia ditar semelhante recusa, nas circunstâncias em que foi articulada. A idade do moribundo, seus sofrimentos físicos e morais, seus sentimentos de afeto e gratidão pelos amigos que o cercavam, na maioria religiosos, especialmente senhoras cheias de solicitude e carinho — tudo isso poderia explicar um momento de complacente aceitação formal. O cético poderia ceder, mesmo sem acreditar, apenas para atender, gentilmente, àquelas senhoras de tão boas intenções. Recusou, entretanto, com exemplar firmeza e numa admirável demonstração de fidelidade a si mesmo e à sua obra.
Lúcia Miguel Pereira compreendeu claramente o que se passou de fundamental na formação do pensamento machadiano, e o que isso representou na realização da sua obra: chegado à descrença total, na maturidade é que Machado de Assis produziu os seus grandes livros.(33)
Foi o que Sílvio Romero, cego pela paixão sectária pró-Tobias, não pôde compreender. Se o tivesse estudado com espírito objetivo, desapaixonado, e com mais apurada sensibilidade crítica, Sílvio seriá levado a reconhecer em Machado de Assis precisamente aquele escritor que mais alto elevou, nos domínios da novelística, o que havia de realmente positivo e fecundo no movimento de renovação do pensamento brasileiro, que se processou a partir da década de 70 e de que foi ele, Sílvio Romero, sem dúvida alguma, o mais eminente e ardoroso militante.
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Bastante conhecida, mas diversamente interpretada, é a carta a Joaquim Nabuco, na qual Machado de Assis dizia que o longo manuseio de Pascal não foi para ele nenhuma distração. Ora, é preciso convir que havia Pascal e Pascal, e não seria certamente o Pascal místico, teólogo, perquiridor de angústias metafísicas, o da predileção de Machado de Assis; o outro Pascal sim, o Pascal moralista, pessimista, materialista “malgré-lui” e dialético sem o saber. Quer dizer — justamente o Pascal que melhor se afinava com a maneira de ser e de pensar do autor brasileiro. Sem dúvida, nessa questão de influências e elementos de formação é sempre necessário botar muita cautela, sem perder de vista o que há de relativo em aproximações e afinidades entre homens que viveram em situações históricas diversíssimas. No caso em apreço, o que se pode admitir, mui cautelosamente, é que os elementos pascalianos que entraram na formação do pensamento de Machado de Assis hão de ser identificados numa linha de consonância acaso existente entre um e outro — e essa linha, ao que suponho, não é nem pode ser outra senão aquela de essência materialista e dialética. Fora daí, Pascal e Machado são antípodas(34).
No estudo que lhe dedicou, Henri Lefebvre nos revela um Pascal roído de contradições insuperadas, homem de gênio em cujo mundo interior, reflexo do mundo exterior, se acotovelam e se chocam violentamente o místico e o matemático, o idealista e o materialista, o metafísico e o dialético.
“Pascal pressentiu e formulou mesmo o princípio de unidade da natureza material,a objetividade do tempo e do espaço, sua relatividade, interdependência e interação...”(35).
Mas a ideologia dominante no tempo de Pascal limitou e barrou os horizontes do seu pensamento científico, levando-o a destruir suas próprias descobertas de físico e matemático. Posto o problema assim, corretamente, opina H. Lefebvre, não se pede atribuir a Pascal a antecipação do materialismo dialético, mas é forçoso reconhecer o caráter genial de seus pressentimentos. Conclui Lefebvre:
“Podemos então perceber claramente o conflito entre a ideologia (idealista) e a ciência (espontaneamente e “ingenuamente” materialista e dialética, mas já materialista e dialética, porque revela um conhecimento objetivo, reflexo da natureza material e suas leis)”(36).
Eis aqui, a meu ver, onde se pode traçar a linha de similitude ou consonância entre o pensamento de Pascal e o de Machado. O moralista Machado de Assis, desencantado, dubitativo, pessimista, também roído de contradições, mas contradições de outra natureza, nada místico nem metafísico, é também, dos pés à cabeça, um dialético do tipo espontâneo (não direi “ingênuo”, qualificativo de índole anti-machadiana), e é um materialista, posslve1 mente um materialista a contragosto, mas materialista, se bem que enquadrado nas limitações ideológicas e sociais de tempo, de país, de classe.
M. M. Rosental compendiando a lição marxista, nos diz que as leis objetivas da natureza se impõem com tamanha força aos investigadores e pensadores, que estes, mesmo quando ignoram as leis dialéticas, são obrigados, muitas vezes, a se expressar em forma dialética(37). é esse, exatamente, o caso de Machado de Assis, que não era um homem de ciência, um naturalista, mas cujo poder de observação e de análise penetrava fundo nos fenômenos da natureza e da sociedade — e sobretudo nos da alma humana.
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A obra de Machado de Assis, livro por livro, página por página, ficção e crônica, prosa *e verso, se desenvolve toda ela segundo uma linha quebrada ou sinuosa de movimentação dialética. Tudo nela é contraste, contradição, conflito, formas as mais diversas de dialogação social, reflexos do próprio jogo da vida em sociedade — essa vida que um dos seus personagens definiu como sendo “uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios”(38).
Alguns dos seus romances e muitos dos seus contos são obras-primas de sentido dialético, e certamente de nível não inferior ao Nevett de Rameau e a certos contos de Diderot, autor com o qual possui evidentes afinidades, e que era o prosador das preferências de Marx e Engels justamente por sua feição dialética.
Lembrarei desde logo o Esaú e Jacó, ainda não estudado com a devida atenção pela crítica, que tem mesmo pretendido relegá-lo a segundo e a terceiro plano entre os grandes romances de Machado de Assis, o que não me parece justo. Pois precisamente o Esaú e Jacó é dialético até no título, como o é na sua estrutura, na sua composição, no seu desenvolvimento. Veja-se, no seu início, o capítulo XIII, em que o romancista convida o leitor a “colaborar” no desenrolar da narrativa, inclusive propondo-lhe algo semelhante ao jogo do xadrez: “Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo”(39).
Eis a imagem da suprema antinomia, Deus e o Diabo no xadrez onde se joga o destino de dois irmãos gêmeos, que simbolizam a luta dos contrários em processo de interação, unidade e novo desdobramento antinômico. Veja-se o capítulo XLVII, aplicação de nova luta entre Deus e o Diabo, segundo S. Mateus, IV, 1-10: é um primor de narrativa, página tipicamente machadiana, modelo de desenvolvimento dialético de uma sinuosa situação psicológica a refletir uma sinuosa situação política.
O capítulo começa por definir em forma sentenciosa o âmago da situação política que produziu a correspondente situação psicológica do personagem Batista:
“Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outro que desce, e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da situação, como no Gênesis”.(40)
As componentes desse capítulo podem ser resumidas em poucas linhas: cai o gabinete conservador, sobe um gabinete liberal; o conservador Batista está desolado, suas esperanças por terra; a mulher de Batista, encarnação do Diabo, tenta o marido, dizendo-lhe que ele é realmente mais liberal do que conservador; Batista resiste, mas o germe da tentação exerce o seu ofício, e a consciência de Batista se parte em duas, Batista conservador lutando contra Batista liberal.. . A luta continua durante alguns capítulos, até vitória final de Batista liberal, finalmente nomeado presidente de província. O processo dialético porque passa a consciência em crise de Batista é magistralmente conduzido pelo romancista(41).
Entre os contos machadianos, há não poucas obras primas de categoria universal — não apenas por suas qualidades específicas como criação artística e literária, mas precisamente pelo que há neles de intrínseco realismo dialético. O conflito nodal, que constitui o centro de cada história, não é jamais resolvido por cortes diretos e arbitrários: o que lhes dá interesse, o duplo interesse do conteúdo e da forma, é o seu jogo interno de antinomias que se desenvolvem ora com requintes de sutile2a e malícia, ora com voluptuosas manobras de felino, ora com artes e sugestões do Diabo. O fio dialético, quebrado ou sinuoso, assinala a sequência do caso narrado, em cuja superfície visível repercutem as vibrações que palpitam no seu subsolo.
O conto “O Espelho”, para citar o primeiro que me acode à memória, e é aliás um dos mais característicos da maneira machadiana, possui algo de simbólico ou de mágico em sua expressão de essência dialética. Nele o contraste dominante é o do olhar que vê simultaneamente de fora para dentro e de dentro para fora, buscando a unidade da antinomia numa nova imagem real do personagem que se desdobra em face do espelho. Citarei ainda “O Alienista”, que tem as proporções de uma novela e é uma sátira política e social sem par em nossa literatura, podendo ombrear com o que há de melhor, no gênero, em qualquer literatura. Não me lembra se algum crítico ou intérprete já assinalou o grande momento da história — o do “assombro de Itaguaí”. Depois de meter quatro quintos da população de Itaguaí no manicômio da Casa Verde, a fim de curá-los, da acordo com a teoria que descobrira, o sábio alienista Simão Bacamarte concluiu que a verdadeira doutrina não era aquela que havia experimentado, mas a oposta. Os supostos “anormais”, visto que formavam a maioria, passaram à condição de “normais” e os até então considerados “normais”, pequena minoria, esses sim é que eram “anormais”. Mas o Dr. Simão Bacamarte era um gênio da psiquiatria:
“Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura”... Entregou-se de novo a profundas cogitações, pois “alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria”(42).
Ao cabo de tudo, a “novíssima teoria” o levou à suprema experiência terapêutica, e ele, consequente e corajoso, recolheu-se solitário à Casa Verde, como único doido restante na cidade.
“A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática”(43).
Conflitos, situações, episódios, bem como sentenças, conceitos, reflexões — repontam, a cada página da obra machadiana, com o seu lastro dialético de emoções, de malícias e de ideias. A pesquisa nesse campo vem a ser das mais fáceis, tão abundante é a seara a trabalhar. Apontaremos, a seguir, umas quantas passagens mais características, colhidas por igual na ficção e na crônica.
O próprio Machado, em crônica escrita à beira dos sessenta anos, definia o seu método de análise em termos muito claros, a saber:
“Eu, posto creia no bem, não sou dos que negam o mal, nem me deixo levar por aparências que podem ser falazes. As aparências enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida, e nunca me dei mal com ela. Daquela disposição nasceu em mim esse tal ou qual espírito de contradição que alguns me acham, certa repugnância em execrar sem exame vícios que todos execram, como em adorar sem análise virtudes que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se me engano, não é por falta de diligência em buscar a verdade. O erro é deste mundo”.(44)
Aí estão alguns dos elementos primordiais necessários a qualquer análise dialética das realidades sociais: o senso da relatividade, a desconfiança nas aparências, o espírito de contradição, a honestidade e a modéstia na busca da verdade. São normas que podem ser empregadas tanto na análise de caráter científico quanto- na análise de caráter literário ou artístico.
A contradição está em toda a parte — eis um fenômeno de constante verificação no trato das coisas e das gentes. Seu reflexo nos escritos de Machado corre parelha com os fatos observados, repetindo-se frequentemente na mesma ou parecida frase — “a contradição é deste mundo”. Um exemplo entre muitos:
“Sofia dobrou o papel, não já com tédio, senão com desgosto, e por dois motivos que se contradiziam; mas a contradição é deste mundo"(45).
Quando opinava sobre algum assunto do dia, numa crônica, e em meio desta surgiam ideias contraditórias, o cronista justificava-se amplamente:
“Creio que há aqui alguma contradição; mas a contradição é deste mundo”(46).
A propósito da Humânitas de Quincas Borba, o humorista utiliza uma imagem vulgar, mas eficaz, para exprimir a ideia da unidade dos contrários:
“Moléstia e saúde eram dois caroços do mesmo fruto...”(47).
A mesma ideia ganha corpo no Dom Casmurro, mas aqui aplicada ao estado de espírito do homem em certo período da vida:
“Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso”.(48)
De Brás Cubas é este conceito exato do processo de interação dos contrários:
"Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da vida pública e os da vida particular uma certa ação recíproca, regular, e talvez periódica.(49)
Em crônica de 1877, referindo-se a uma sátira em verso de Artur Azevedo, então publicada na Corta, Machado de Assis discordava do poeta no ponto em que este satirizava as viúvas que choram rios de lágrimas ao enviuvarem e um ano depois já estão de marido novo. O poeta achava isso melancólico; o cronista também achava, mas acrescentando que era ao mesmo tempo necessário e providencial. E comentava:
“A culpa não é da viúva, é da lei que rege esta máquina, lei benéfica, tristemente benéfica, mediante a qual a dor tem de acabar, como acaba o prazer, como acaba tudo. É a natureza que sacrifica o indivíduo á espécie”(50).
Trinta anos depois desse comentário, Machado volta ao problema, no Memorial de Aires, porém agora não só com melhor acabamento literário como também com um sentido dialético melhor formulado. O memorialista registra no seu caderno a reflexão que lhe veio ao bico da pena a propósito do novo amor da viúva Fidélia, Esta era jovem e bonita, e o casamento com Tristão podia muito bem coexistir com a fidelidade ao finado marido: Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa. Era o acordo ou o contraste do indivíduo e da espécie. A recordação do finado vive nela, sem embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias antigas, com o segredo das estreias de um coração que aprendeu na escola do morto. Mas o gênio da espécie faz reviver o extinto em outra forma, e aqui lho dá, aqui lho entrega e recomenda”(51). Eis um modelo de finura psicológica exprimindo em forma admirável uma situação dialética de “contraste” e de “acordo” entre o indivíduo e a espécie, entre o sentimento e a necessidade.
A ideia da transformação gradativa de um sentimento no seu contrário é daquelas que se repetem ao longo da obra machadiana, não raro moldadas com rigorosa formulação de sentido dialético. Em A Mão e a Luva, Luís Alves, discutindo com o rival Estêvão, diz a certa altura:
"— Há no amor um germe de ódio que pode vir a desenvolver-se depois”(52).
Não há aí nenhuma originalidade, e a frase, destacada do seu contexto, chega a ser banal; mas a sua formulação é excelente, correspondendo com absoluta justeza a uma situação psicológica real. Eis outro exemplo não menos excelente:
“Durante a moléstia e a convalescença do pai, Iaiá tratara Jorge com- muita gratidão e cordialidade. Algum tempo depois começou a diminuir essa aparência, até que cessou de todo e se converteu noutra coisa, que visivelmente era repugnância, com uma pontasinha de hostilidade”(53).
No conto “O Enfermeiro” descreve-se um momento semelhante, que se desenvolve com igual sentido:
“Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão”(54).
Noutro plano, fora da ficção, fazendo o seu comentário incidir sobre algum caso do momento, o cronista alternava a galhofa e a gravidade como era dos seus hábitos, e lá se saia com uma tirada de sociólogo ou de jurista filósofo:
“Outrossim, se a lei pode valer pelo uso que se lhe der, é também certo que o simples uso faz lei. Começa-se por um abuso, espécie de erva que alastra depressa, correndo chão e arvoredo; depois, ou porque a força do homem corte algumas excrescências, ou por que a vista se haja acostumado, (...) o abuso passa a uso natural e legítimo, até que fica lei de ferro”(55).
Se não estou enganado, o próprio Marx não desdenharia assinar o que aí escreveu o cronista carioca da Gazeta de Notícias.
Ainda em crônica publicada no mesmo jornal e na mesma época, dizia Machado de Assis, a propósito de desfalques, que
“há sempre duas opiniões sobre o desfalque, — a do desfalcado e a outra”(56).
O timbre da frase possui intenção galhofeira, mas o seu conteúdo é grave e exato, dialeticamente falando. Toda opinião obedece a um critério de relatividade, determinado pela posição da pessoa que opina em relação à coisa sobre que opina.
Tudo é relativo, inclusive o critério de avaliação da verdade e da mentira. Há circunstâncias em que os polos da antinomia verdade e mentira se convertem nos seus contrários, a verdade virando mentira e a mentira virando verdade(57). O pequeno filósofo José da Costa Marcondes Aires, inimigo nato de “verdades absolutas”, compreendia bem o que há de relativo em tudo isso, — e em tudo o mais, — conforme deixa entender e subentender em mais de uma página do seu Memorial. A seguinte reflexão define a sua justa posição relativista:
“Deixo aqui esta página com o fim único de me lembrar que o acaso também é corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muita vez exato e sincero”(58).
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Nos artigos e ensaios de crítica literária, deixados por Machado de Assis, encontram-se indicações precisas acerca da natureza dialética de certos elementos que entram na estruturação do seu pensamento. E a pesquisa nesta seara vem a ser particularmente importante, visto tratar-se de gênero literário em que a prosa opinativa e doutrinai busca exprimir-se com mais apurada formulação. Vejamos alguns exemplos mais convincentes.
No estudo sobre as Inspirações do Claustro de Junqueira Freire, o então jovem crítico, já senhor do seu ofício, mergulhava o olhar no âmago das contradições que dilaceravam a alma do poeta, e de lá voltava dizendo;
“Teme (o poeta) que lhe chamem o livro uma coleção de orações e de blasfêmias. Caso raro! o poeta via objeto de censura exatamente naquilo que faz a beleza da obra, defendia-se de um contraste que representa a consciência e a unidade do livro. Sem esse dúplice aspecto, o livro das Inspirações perde o encanto natural, o caráter de uma história real e sincera; deixa de ser um drama vivo. Contrário a si mesmo, cantando por inspirações opostas, aparece-nos o homem através do poeta; vê-se descer o espírito da esfera da ilusão religiosa para o terreno da realidade prática, assiste-se às peripécias daquela transformação; acredita-se na palavra do poeta, pois que ele sai, como Enéas, dentre as chamas de Troia”.(59)
A caracterização dialética da poesia de Junqueira Freire aí está feita com certeira acuidade, tanto mais de se admirar porque feita num tempo de nível crítico ainda muito precário.
Em 1874, no ensaio crítico sobre “A Nova Geração”, trabalho amplo e de ampla repercussão, Machado de Assis começava por deixar assentado que havia entre nós “uma nova geração poética”. Em seguida indagava: “Mas haverá também uma poesia nova, uma tentativa, ao menos?” E respondia à própria indagação: “Fora absurdo negá-lo; há uma tentativa de poesia nova — uma expressão incompleta, difusa, transitiva, alguma coisa que, se ainda não é o futuro, não é já o passado”. Continuando, diz-nos o critico que — “o essencial é que um espírito novo parece animar a geração que alvorece, o essencial é que esta geração não se quer dar ao trabalho de prolongar o ocaso de um dia que verdadeiramente acabou”. E esclarece:
“Esse dia, que foi o romantismo, teve as suas horas de arrebatamento, de cansaço e por fim de sonolência, até que sobreveio a tarde e negrejou a noite”(60).
Em tão breves palavras, que não chegam a encher uma página de prosa, transmite-nos o crítico uma justa noção dialética do período de transição literária que sucedeu aos últimos suspiros do Romantismo.
Semelhante noção não lhe brotava da mente por obra e graça de mero acaso ou por estalo de alguma inspiração do momento; pelo contrário, e isto é o que mais interessa no caso, resultava de concepção amadurecida, que se revela em muitas passagens da sua obra, as de ficção inclusive. Sem sairmos do volume de trabalhos críticos, vamos encontrá-la na carta dirigida a Henrique Chaves, por ocasião da morte de Eça de Queiroz, em 1900, e aqui sob a forma de conceituação geral do processo de sucessão histórica das gerações, em que os movimentos de renovação literária — por isso mesmo que são de “renovação” — vinculam-se necessariamente ao legado da tradição próxima ou remota. É uma página da melhor prosa machadiana, e nela se lê o seguinte:
“Os mesmos que (Eça) haverá ferido, quando exercia a crítica direta e cotidiana, perdoaram-lhe o mal da dor pelo mel da língua, pelas novas graças que lhe deu, pelas tradições velhas que conservou, e mais a força que as uniu umas e outras, como só as une a grande arte. A arte existia, a língua existia, nem podíamos os dois povos, sem elas, guardar o patrimônio de Vieira e de Camões; mas cada passo do século renova o anterior e a cada geração cabem os seus profetas”(61).
Sobre o problema da forma e do conteúdo na poesia, Machado opinava: “Outro (conceito) que também me parece cabido é que, no esmero do verso não vá ao ponto de cercear a inspiração. Esta é a alma da poesia, e como toda a alma precisa de um corpo, força é dar-lhe, e quanto mais belo melhor; mas nem tudo deve ser corpo. A perfeição, neste caso, é a harmonia das partes” (62). Aqui vemos como o crítico possuía uma compreensão acertada do processo de interação entre forma e conteúdo, compreendendo ao mesmo tempo a necessidade de “harmonizá-las” para atingir a perfeição. Mas a perfeição não é deste mundo, e assim fica subentendido que a “harmonia” ou unidade entre forma e conteúdo se realiza também dialeticamente, ou seja — como um movimento de construção da poesia tendente a aproximá-la do ideal da perfeição.
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O próprio Machado de Assis era uma encarnação viva do homem dialético — todo um complexo de contradições, dúvidas, hesitações(62), aparências e realidades. Nele o sim e o não pendulavam os minutos de uma vida bipartida(63) “entre mim mesmo e mim”, como se diz em certo verso de Camões, que o cronista carioca recorda, cita e comenta, com a graça do costume:
“Um dia — ó dia nefasto! — descobri em mim dois homens, eu e eu mesmo, tal qual sucedeu a Camões, naquela redondilha célebre: Entre mim mesmo e mim, A semelhança do fenômeno encheu-me a alma com grandes abondanças, para falar ainda como o próprio poeta. Sim; eu era dois, senti bem que, além de mim, havia eu mesmo”(64).
A mesma coisa, por outras palavras, já o cronista verificara antes:
“Como é que a minha consciência se pôde dividir em duas, é que não atino; há aí um curioso fenômeno para os estudiosos”.(65)
O “curioso fenômeno” vem a ser nada mais nada menos que a manifestação, na consciência de Machado de Assis, de um fenômeno geral — o da formação dialética do pensamento. Ele era um dialético inato, espontâneo, sua maneira de pensar era dialética, e seu pensamento aparece impregnado de elementos dialéticos. Isto me parece incontestável. Creio também que a essência materialista do seu pensamento não oferece margem a dúvidas sérias. Todavia, seria de todo em todo incorreto e insensato supor ou concluir que Machado de Assis foi um “materialista-dialético”. Nem podia ser, num país como o nosso, na época e nas condições em que viveu. Mas dentro de tais limitações objetivas, é evidente que o seu pensamento avançou tanto quanto era possível. E nisto reside, a meu ver, um dos mais luminosos sinais da sua grandeza.
Notas de rodapé:
(1) Iaiá Garcia, p. 8 Os livros de Machado de Assis aqui citados são da edição Jackson de 1937, a não ser que haja indicação em contrário. (retornar ao texto)
(2) Ibidem, mesma p. (retornar ao texto)
(3) Dom Casmurro, p 73. (retornar ao texto)
(4) Ibidem, mesma p. (retornar ao texto)
(5) Papéis Avulsos, pp. 240-241. (retornar ao texto)
(6) Histórias sem Data, p. 185. (retornar ao texto)
(7) Ibid., mesma p. Em «O Alienista», o dr. Bacamarte leva a mulher a ver a arca onde guardava a sua opulência em cruzados e dobrões de ouro, e D. Evarista — «Comia o ouro com os olhos negros...» (Papéis Avulsos, p. 25). (retornar ao texto)
(8) Ibid.,p. 196 (retornar ao texto)
(9) Relíquias da Casa Velha, v. I, p. 254. (retornar ao texto)
(10) Várias Histórias, p. 38. (retornar ao texto)
(11) Iaiá Garcia, p. 211. (retornar ao texto)
(12) Ibid., p. 274. (retornar ao texto)
(13) Ibid,, pp. 154-155. (retornar ao texto)
(14) Ibid., p. 155. (retornar ao texto)
(15) Olívio Montenegro, O Romance Brasileiro, Rio de Janeiro, 1938, pp. 115-116. (retornar ao texto)
(16) Memórias Póstumas de Brás Cubas, p. 320. (retornar ao texto)
(17) Esaú e Jacó, p. 306. (retornar ao texto)
(18) Memorial de Aires, p. 65. (retornar ao texto)
(19) Processo de natureza idêntica, mas sem o emprego dos olhos, utilizado para exprimir o movimento de uma ideia ou sensação mediante imagens materiais, pode ser apontado numerosamente nos livros de ficção e de comentário jornalístico de Machado. Eis uma amostra típica: «Vieira ficou alguns instantes sem dizer nada; depois começou a mexer com a corrente do relógio, afinal acendeu um charuto. Estes três gestos correspondiam a três momentos do espírito». («O Caso do Romualdo», conto incluído nas Relíquias de Casa Velha, v. I, p. 268). (retornar ao texto)
(20) Quincas Borba, p. 268. (retornar ao texto)
(21) Cf. Matirice Solovine, Héraelite d' Ephèso, Paris, 1931, p. 89, em nota. (retornar ao texto)
(22) Esaú e Jacó, p. 132. (retornar ao texto)
(23) Maurice Solovine, op. cit., p. 44 (frag. 7). (retornar ao texto)
(24) Esaú e Jacó, p. 61. (retornar ao texto)
(25) M. Solovine, op. cit., pp. 58-59. (retornar ao texto)
(26) Dom Casmurro, p. 281. Essa mudança permanente, produzida por ação do tempo, não se faz sentir somente na substância física do homem, mas igualmente na sua substância moral: «O tempo, esse químico invisível, dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais...» (Iaiá Garcia, p. 18). (retornar ao texto)
(27) Léon Robin, La Pensée Greeque el les Origines de l’Esprit Scientifique, Paris, 1932, p. 86. (retornar ao texto)
(28) Barreto Filho, Introdução a Machado de Assis, Rio de Janeiro, 1947, p. 175. (retornar ao texto)
(29) A Semana, v. III, p. 339. (retornar ao texto)
(30) Lúcia Miguel Pereira, Machado de Assis, 5ª edição, Rio de Janeiro, 1955, p. 85. (retornar ao texto)
(31) Id., ibid., mesma p. (retornar ao texto)
(32) Ibid., p. 284. (retornar ao texto)
(33) Ibid., p. 85. (retornar ao texto)
(34) Afrânio Coutinho, que vê em Pascal a "fonte máxima" do pessimismo de Machado de Assis, reconhece todavia que semelhante influência não atingiu o ponto de vista racionalista, não cristão. do escritor brasileiro. (A Filosofia de Machado de Assis, Rio, 1950, p. 54, nota) (retornar ao texto)
(35) Henri Lefebvre, Pascal, v. II, Paris, 1954, p. 169, em nota. (retornar ao texto)
(36) lbid., mesma p. (retornar ao texto)
(37) Cf. M. M. Rosental y G.. M. Straks, Categorias del Materialismo Dialético, trad. de Adolfo Sanchez Vazquez y Wenceslao Roces, México, 1958, p. 49. Ensina Engels que «... a dialética da ideia não é mais que o simples reflexo do movimento dialético do mundo real...» Ludwig Feuerbach, Paris, 1951, p. 44). E Lênin: «A dialética das coisas produz a dialética das ideias, e não inversamente». (Cahiers philosophiques, apud M. M. Kammari, «La dialectique matérialiste, Science philosophique», in Recherques Soviétiques, n. 1, Philosopliie, Paris, 1956, p. 24. (retornar ao texto)
(38) Ressurreição, p. 62. (retornar ao texto)
(39) Esaú e Jacó, p. 58. Chamo a atenção para a referência feita ai ao xadrez, jogo predileto de Machado de Assis (sobre este particular, ver o artigo de Plínio Doyle, «Machado de Assis, jogador de xadrez», in Boletim da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, n. 1 pp. 22-23) — e jogo de caráter eminentemente dialético. E seja ou não coincidência, pode-se lembrar que logo na primeira página do Neveu de Rameau se fala em partidas de xadrez. (retornar ao texto)
(40) Ibid., p. 166. (retornar ao texto)
(41) Cabe aqui observar que o Esaú o Jacó é, dos romances de Machado de Assis, aquele mais cheio de acontecimentos e episódios políticos, onde os lances da ficção se entrelaçam mais frequentemente a fatos políticos reais. Sua ação se desenrola precisamente durante o período histórico que abrange os últimos anos da Monarquia e os primeiros anos da República. E os gêmeos Pedro e Paulo, um monarquista e outro republicano, são de certo modo a representação simbólica dos dois regimes, e neste sentido pode-se dizer que encarnam o jogo dialético da luta entre o «velho» e o «novo». (retornar ao texto)
(42) Papéis Avulsos, pp. 94-95. (retornar ao texto)
(43) Ibid., p. 98. (retornar ao texto)
(44) A Semana, v. III, pp. 203-204. (retornar ao texto)
(45) Quincas Borba, p. 293. (retornar ao texto)
(46) A Semana, v. I, p. 402. (retornar ao texto)
(47) Quincas Borba, p. 15. (retornar ao texto)
(48) Dom Casmurro, p. 277-278. (retornar ao texto)
(49) Brás Cubas, p. 263. (retornar ao texto)
(50) Crônicas, v. III, p. 277. (retornar ao texto)
(51) Memorial de Aires, p. 213. (retornar ao texto)
(52) A Mão e a Luva, p. 205. (retornar ao texto)
(53) Iaiá Garcia, p. 141. (retornar ao texto)
(54) Várias Histórias, p. 152. No conto “O Enfermeiro” o drama de consciência do enfermeiro — centro psicológico da narrativa — é tratado com inexcedível senso realista, e nele o desenvolvimento dialético da culpa que se justifica pelo interesse constitui um dos pontos altos da arte machadiana. (retornar ao texto)
(55) A Semana, v. III, p. 315 (crônica datada de 25 de setembro de 1896). (retornar ao texto)
(56) Ibid., p. 293. (retornar ao texto)
(57) Cf. Fr. Engels, principalmente no Anti-Dühring, p. ex. na p. 130, onde se lê que, emprestando-se valor absoluto à verdade e ao erro, «os dois polos da antítese se convertem no seu contrário: a verdade se torna erro e o erro se torna verdade». (Anti-Dühring, trad. Bracke, Paris, 1946). (retornar ao texto)
(58) Memorial de Aires, p. 67. (retornar ao texto)
(59) Crítica Literária, p. 80 (artigo publicado a 30 de janeiro de 1866). (retornar ao texto)
(60) Ibid., p. 179. (retornar ao texto)
(61) Ibid., p. 260. (retornar ao texto)
(62) «Há hesitações grandes e nobres: minha pobre alma as conhece». (A Semana, v. I, p. 162). — «Hão de ter notado que eu sou o homem mais cheio de dúvidas que há no mundo». (Diálogos e Reflexões do um Relojoeiro, Organização, prefácio e notas de R. Magalhães Júnior, Rio de Janeiro, 1956, p. 232). O cronista se auto- analisava e o romancista, ao analisar os seus personagens, neles encontrava idênticos fenômenos de dualidade: «Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram todavia diversas entre si, uma natural e espontânea, outra calculada e sistemática». (Ressurreição, p. 11). — «Confuso, incerto, ia a cuidar na lealdade que devia ao amigo, mas a consciência partia-se em duas, uma increpando a outra, a outra explicando-se e ambas desorientadas». (Quincas Borba, p. 92). Ainda no Q. B., p. 161: «Era assim que o nosso amigo- se desdobrava [...] diante de si mesmo». Frases, ditos, confissões de igual ou parecida significação podem ser multiplicados. (retornar ao texto)
(63) «Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação». (Dom Casmurro, p. 335). (retornar ao texto)
(64) A Semana, v. II, p. 185, Cf. Relíquias de Casa Velha, v. I, p. 210. (retornar ao texto)
(65) Ibid., v. I, p. 328. Sem se perder de vista as diferenças de tempo e sobretudo de meio, é possível aplicar a Machado de Assis, em certa medida, alguns dos traços característicos da mentalidade de Proudhon, do qual dizia Marx que «a natureza o levava à dialética», mas que ele jamais compreendeu a dialética científica, devido aos seus pontos de vista de intelectual pequeno burguês. Esclarecia Marx: «Duas correntes opostas, contraditórias, dominam os seus interesses materiais e, por consequência, as suas opiniões religiosas, científicas, artísticas, a sua moral, todo o seu ser. Proudhon é a contradição em pessoa». (Carta ao Sozial Demokrat, 1865, reproduzida em Misère de la Philosopliie, Paris, Editions Sociales, 1946, p. 143). Relativamente às raízes materialistas do pensamento machadiano, ver o. ensaio de Otto Maria Carpeaux — «Uma Fonte Filosófica de Machado de Assis» (in Letras e Artes, nº 80, de 4 de abril de 1948), em que o critico aproxima Leopardi e Machado, ambos dessedentados nas mesmas fontes materialistas da antiga filosofia grega. (retornar ao texto)
Inclusão | 27/09/2019 |