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Primeira Edição: vol. 56, nº 6, Nov/2004 da Monthly Review. http://www.monthlyreview.org/1104amin.htm
Fonte: http://resistir.info/
Tradução: Margarida Ferreira.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
1 - O conflito permanente entre os imperialismos e o imperialismo colectivo
2 - O projecto da classe dominante americana: globalizar a doutrina Monroe
4 - O Médio Oriente no sistema imperialista
5 - O projecto europeu: atolado no pântano liberal
A análise que aqui se propõe sobre o papel da Europa e do Médio Oriente na estratégia imperialista global dos Estados Unidos baseia-se numa visão histórica geral da expansão capitalista que já desenvolvi noutro local.(1) Dentro dessa perspectiva, considera-se que a natureza do capitalismo tem sido sempre, desde o seu início, um sistema polarizador, ou seja, imperialista. Esta polarização – uma estrutura concorrente de centros dominantes e de periferias dominadas, e a sua multiplicação que se aprofunda de estádio para estádio – é própria do processo de acumulação do capital operando a uma escala global.
De acordo com esta teoria da expansão global do capitalismo, as mudanças qualitativas nos sistemas de acumulação, duma fase da sua história para outra, configuram as sucessivas formas de polarização assimétrica centros/periferias, quer dizer, as formas do verdadeiro imperialismo. O sistema mundial contemporâneo manter-se-á assim imperialista (polarizador) durante o próximo futuro, enquanto a sua lógica fundamental se mantiver dominada pelas relações de produção capitalistas. Esta teoria associa o imperialismo ao processo de acumulação de capital a uma escala mundial, o que eu considero constituir uma realidade única na qual as diversas dimensões de facto não podem ser separadas. Diverge pois quer da versão popularizada da teoria leninista “o imperialismo, a fase mais alta do capitalismo” (como se as fases iniciais da expansão global do capitalismo não fossem polarizadoras), quer das teorias pós-modernas contemporâneas que descrevem a nova globalização como sendo “pós-imperialista”.
Na sua evolução globalizada, o imperialismo foi sempre conjugado no plural, desde o seu início (no século XVI) até 1945. O conflito permanente e frequentemente violento dos imperialismos ocupou um espaço decisivo na transformação do mundo enquanto luta de classes, através da qual se exprimem as contradições fundamentais do capitalismo. Para além disso, as disputas e conflitos sociais no seio dos imperialismos estão intimamente interligadas, e é esta interligação que determina o verdadeiro curso do capitalismo existente. A análise que proponho quanto a esta tese é muitíssimo diferente da da “sucessão de hegemonias.”(2)
A Segunda Guerra Mundial terminou com uma importante transformação nas formas do imperialismo, substituindo a multiplicidade de imperialismos em permanente conflito por um imperialismo colectivo. Este imperialismo colectivo representa o conjunto dos centros do sistema capitalista mundial ou, para ser mais simples, uma tríade: os Estados Unidos e a sua província externa canadiana, a Europa ocidental e central, e o Japão. Esta nova forma de expansão imperialista passou por várias fases de desenvolvimento, mas esteve sempre presente desde 1945. O papel hegemónico dos Estados Unidos tem que ser situado dentro desta perspectiva, e cada fase desta hegemonia tem que ser especificada nas suas relações com o novo imperialismo colectivo. Estas questões levantam problemas, que são exactamente aqueles que eu queria aqui destacar.
Os Estados Unidos beneficiaram imenso com a Segunda Guerra Mundial, que arruinou os seus principais contendores – a Europa, a União Soviética, a China e o Japão. Ficaram assim em condições de exercer a sua hegemonia económica, tanto mais que metade da produção industrial global estava concentrada nos Estados Unidos, em especial as tecnologias que iriam dar forma ao desenvolvimento da segunda metade do século. Para além disso, só eles possuíam armas nucleares – a nova arma total.
Esta dupla vantagem contudo foi-se desvanecendo num período relativamente curto (duas décadas) face a duas recuperações, uma económica na Europa e no Japão capitalistas e outra militar na União Soviética. Não podemos esquecer que este recuo relativo do poder americano provocou uma viva especulação sobre o declínio americano, que chegou mesmo a pôr a hipótese do aparecimento de possíveis hegemonias alternativas (incluindo a Europa, o Japão e, posteriormente, a China).
Foi nesta época que surgiu o gaullismo. Charles de Gaulle considerava que, a partir de 1945, o objectivo dos Estados Unidos era controlar todo o Velho Mundo (a Eurásia). Washington tinha-se colocado numa posição estratégica para dividir a Europa – a qual, na perspectiva de de Gaulle, se estendia desde o Atlântico até aos Urais incluindo a “Rússia soviética” – agitando o espectro da agressão de Moscovo, um espectro em que de Gaulle nunca acreditou. Esta análise era realista, mas de Gaulle encontrou-se praticamente sozinho. Contra o atlantismo promovido por Washington ele previa uma estratégia contrária baseada na reconciliação franco-germânica e na construção de uma Europa não americana, excluindo cautelosamente a Inglaterra que ele considerava, com toda a razão, ser o cavalo de Tróia do atlantismo. A Europa poderia depois abrir caminho à reconciliação com a “Rússia soviética”. A reconciliação e coligação dos três maiores povos europeus – franceses, alemães e russos – poria um fim definitivo ao projecto americano de dominação do mundo. Podemos então resumir em duas alternativas o conflito interno específico para o projecto europeu: uma Europa atlântica, na qual a Europa é um apêndice do projecto americano, ou uma Europa não atlântica (que integra a Rússia). Este conflito ainda não está resolvido. Mas os desenvolvimentos posteriores – o fim do gaulismo, a entrada da Inglaterra para a União Europeia, a expansão da Europa para leste, o colapso soviético – combinaram-se para invalidar o projecto europeu dada a sua dupla diluição numa globalização económica neo-liberal e num alinhamento político-militar com Washington. Mais ainda, esta evolução reforça a intensidade do carácter colectivo do imperialismo da tríade.
O actual projecto americano, arrogante, demente e mesmo criminoso nas suas implicações, não saltou da cabeça de George W. Bush para ser levado à prática por um grupo de extrema direita que se apoderou do poder através de eleições duvidosas. É um projecto que a classe dominante americana alimentou sem cessar desde 1945, mesmo apesar de a sua implementação ter passado por altos e baixos e nem sempre ter podido ser conseguida com a consistência e a violência demonstradas desde a desintegração da União Soviética.
O projecto atribuiu sempre um papel fundamental à sua dimensão militar. Os Estados Unidos cedo planearam uma estratégia militar global, dividindo o planeta em regiões e atribuindo a responsabilidade do controlo de cada uma delas a um Comando Militar americano. O objectivo era não só cercar a União Soviética (e a China), mas também assegurar a posição de Washington como administrador de última instância em todo o mundo. Por outras palavras, alargava a doutrina Monroe a todo o planeta, o que deu de facto aos Estados Unidos o direito exclusivo de gerir todo o globo de acordo com os seus interesses nacionais, conforme definido.
Este projecto implica que a soberania dos interesses nacionais dos Estados Unidos deve ser colocada acima de todos os outros princípios que controlam o legítimo comportamento político, e gera uma desconfiança sistemática para com todos os direitos supranacionais. É certo que os imperialismos do passado não se comportaram de modo diferente, e aqueles que se esforçam por minimizar e desculpar as responsabilidades – e o comportamento criminoso – dos actuais governantes dos Estados Unidos bem podem utilizar este argumento e encontram facilmente antecedentes históricos.
Mas era isso precisamente o que gostaríamos de ter visto alterar-se na história que começa após 1945. Foi por causa dos horrores da Segunda Guerra Mundial provocados pelo conflito dos imperialismos e pelo desprezo das potências fascistas pela lei internacional, que foram fundadas as Nações Unidas baseadas num princípio novo que proclamava o carácter ilegítimo do direito soberano de desencadear a guerra, até aí estabelecido. Os Estados Unidos, há que dizê-lo, não só se identificaram com este novo princípio, como estiveram entre as primeiras potências a adoptá-lo.
Esta boa iniciativa – apoiada na altura pelos povos de todo o mundo – representava de facto um salto qualitativo e abria caminho ao progresso da civilização, mas nunca convenceu a classe dominante dos Estados Unidos. As autoridades de Washington nunca se sentiram à vontade com o conceito da Nações Unidas, e hoje proclamam de forma brutal aquilo que foram forçados a esconder até agora: que nem sequer aceitam o conceito de uma lei internacional acima do que eles consideram ser as exigências da defesa do seu próprio interesse nacional. Não podemos aceitar desculpas para este regresso a uma concepção desenvolvida pelos nazis, que levou à destruição da Liga das Nações. A defesa da lei internacional, advogada com talento e elegância pelo ministro dos Estrangeiros francês Dominique de Villepin no Conselho de Segurança, não é uma olhadela nostálgica para o passado mas, pelo contrário, é um aviso para o que pode vir a ser o futuro. Nessa ocasião foram os Estados Unidos que defenderam um passado considerado definitivamente obsoleto por toda a opinião decente. A implementação do projecto americano passou necessariamente por diversas fases, modelado pelas específicas relações de poder que as definiam.
Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial a liderança americana foi aceite e até mesmo solicitada pela burguesia da Europa e do Japão. Pois, se bem que a ameaça de uma invasão soviética apenas pudesse convencer os fracos de espírito, a sua mera invocação prestava bons serviços tanto aos da direita como aos sociais democratas acossados pelos seus primos adversários comunistas. Poder-se-ia então pensar que o carácter colectivo do novo imperialismo era devido apenas a este factor político e que, quando o seu atraso em relação aos Estados Unidos fosse ultrapassado, a Europa e o Japão procurariam ver-se livres da supervisão incómoda e doravante supérflua de Washington. Isso não aconteceu. Porquê?
A minha explicação baseia-se no recrudescimento dos movimentos de libertação nacional na Ásia e em África – durante as duas décadas que se seguiram à Conferência de Bandung de 1955 que deu origem ao movimento das nações não alinhadas – e ao apoio que tiveram da União Soviética e da China (cada um deles à sua maneira). O imperialismo foi então forçado a conformar-se, não apenas aceitando a coexistência pacífica com uma enorme área que escapava muito ao seu controlo (o mundo socialista) mas também negociando as condições de participação dos países asiáticos e africanos no sistema imperialista mundial. O alinhamento colectivo da tríade sob a liderança americana parecia útil para gerir as relações Norte-Sul da época. Foi assim que as nações não alinhadas se confrontaram com um bloco ocidental praticamente indivisível.
O colapso da União Soviética e a sufocação dos regimes nacionalistas populistas nascidos dos movimentos nacionais de libertação permitiram que o projecto imperial dos Estados Unidos se desenvolvesse com extremo vigor no Médio Oriente, na África e na América Latina. Na verdade, o projecto mantém-se ao serviço do imperialismo colectivo, pelo menos até um certo ponto (que tentarei explicitar mais tarde). A expressão desse projecto acabou por ser o governo económico do mundo na base dos princípios do neoliberalismo, implementado pelo Grupo dos 7 e pelas instituições ao seu serviço (a OMC, o Banco Mundial e o FMI), e os planos de reajustamento estrutural passaram a vigorar no terceiro mundo asfixiado. Mesmo a nível político, é evidente que inicialmente os europeus e os japoneses alinharam com o projecto americano. Aceitaram a marginalização das Nações Unidas em benefício da NATO na época da Guerra do Golfo em 1991 e nas guerras na Jugoslávia e na Ásia Central em 2002. Esta fase ainda não terminou, embora a guerra em 2003 no Iraque tenha revelado algumas fendas na muralha.
A classe dominante dos Estados Unidos proclama abertamente que não tolerará a reconstituição de qualquer poder económico ou militar capaz de pôr em causa o seu monopólio de domínio sobre o planeta e, para atingir este objectivo, arroga-se o direito de desencadear guerras preventivas. Neste contexto estão debaixo de mira três principais possíveis adversários.
Em primeiro lugar está a Rússia, cujo desmembramento, a seguir ao da União Soviética, constitui de agora em diante um objectivo estratégico principal para os Estados Unidos. A classe dominante russa parece que ainda não percebeu bem isto. Parece convencida de que, depois de ter perdido a guerra, poderia ganhar a paz, como aconteceu com a Alemanha e o Japão. Esquece-se que Washington necessitava da recuperação destes dois anteriores adversários precisamente para enfrentar a ameaça soviética. A situação é agora diferente: os Estados Unidos já não têm um competidor perigoso. A sua primeira opção é portanto destruir o moribundo adversário russo duma forma permanente e total. Será que Putin percebe isto e irá iniciar o processo de tirar as ilusões à classe dominante russa? Em segundo lugar está a China, cujo crescimento e sucesso económico preocupa os Estados Unidos. O objectivo estratégico americano é desmembrar este enorme país.
A Europa vem em terceiro lugar nesta perspectiva global dos novos senhores do mundo. Mas aqui os governantes norte americanos não parecem tão inquietos, pelo menos até agora. O incondicional atlantismo de alguns (da Inglaterra, assim como dos novos poderes servis de leste), o lodaçal do projecto europeu (um assunto a que voltarei), e os interesses convergentes do capital dominante do imperialismo colectivo da tríade, tudo contribui para enfraquecer o projecto europeu. Os atlantistas constituem a ala europeia do projecto americano depois que a diplomacia de Washington conseguiu manter a Alemanha submissa. Esta aliança parece que foi mesmo reforçada com a reunificação e conquista da Europa de Leste. A Alemanha foi encorajada a repensar a sua tradição de expansão para leste e, em resultado disso, assistimos ao papel desempenhado por Berlim no desmembramento da Jugoslávia, ao apressadamente reconhecer a independência dos eslovenos e dos croatas. Em troca, a Alemanha aceitou navegar na senda de Washington. Há algumas mudanças em curso? A classe política alemã mostra-se hesitante e pode estar dividida quanto às suas escolhas estratégicas. A alternativa ao alinhamento atlantista é um reforço do antigo eixo Paris-Berlim-Moscovo, o qual se tornaria assim o mais sólido pilar dum sistema europeu independente de Washington.
Podemos agora reconsiderar a nossa principal questão, isto é, a natureza e a força potencial do imperialismo colectivo da tríade, e as contradições e fraquezas da liderança dos Estados Unidos.
O mundo dos nossos dias é unipolar do ponto de vista militar. No entanto, parece terem surgido algumas fissuras entre os Estados Unidos e alguns dos países Europeus que se identificam, pelo menos em teoria, com a gestão política de um sistema global unificado pelos princípios do liberalismo. Serão estas fissuras apenas temporárias e limitadas, ou prenunciam algumas mudanças duradouras? Será necessário analisar em toda a sua complexidade a lógica da nova fase do imperialismo colectivo (as relações Norte-Sul em linguagem corrente) e os objectivos específicos do projecto americano. Dentro deste espírito irei abordar sucinta e sucessivamente cinco conjuntos de questões:
A formação do novo imperialismo colectivo tem a sua origem na transformação das condições de concorrência. Há apenas algumas décadas atrás, as grandes empresas travavam as suas batalhas competitivas essencialmente nos mercados nacionais, quer no dos Estados Unidos (o maior mercado nacional do mundo) quer nos dos estados europeus (apesar do seu tamanho reduzido que os inferiorizava em relação ao dos Estados Unidos). Os vencedores das competições nacionais adquiriam condições para ter êxito no mercado mundial. Nos nossos dias, para se atingir a supremacia no mercado, numa primeira fase da competição, é necessário um mercado com uma dimensão de 500 a 600 milhões de potenciais compradores. Portanto, a batalha tem que ser travada directamente no mercado global e tem que ser ganha neste terreno. E aqueles que dominarem este mercado poderão depois afirmar o seu poder nos respectivos terrenos nacionais. É através da internacionalização que as grandes firmas estabelecem a base mais importante da sua actividade. Por outras palavras, no duo nacional/global, os termos de causalidade estão invertidos: anteriormente o poder nacional comandava a presença global e hoje passa-se o contrário. Por isso, as firmas multinacionais, qualquer que seja a sua nacionalidade, têm interesses comuns na gestão do mercado mundial. Estes interesses sobrepõem-se aos diversos conflitos comerciais, que definem todas as formas da competição própria do capitalismo, independentemente de quais elas sejam.
A solidariedade dos segmentos dominantes do capital multinacional de todos os parceiros na tríade é real, e está expressa na sua adesão ao neoliberalismo globalizado. Nesta perspectiva, os Estados Unidos são vistos como os defensores (se necessário pelas armas) destes interesses comuns. Apesar disso, Washington não faz tenção de partilhar equitativamente os benefícios da sua liderança. Os Estados Unidos procuram, pelo contrário, reduzir a vassalos os seus aliados e por isso apenas dispostos a fazer concessões menores aos seus menores aliados na tríade. Será que este conflito de interesses no seio do capital dominante levará à ruptura da aliança atlântica? Não é impossível, mas é improvável.
É senso comum que o poder militar americano constitui apenas a ponta do icebergue, e que a superioridade do país se estende também a todas as áreas, em especial à económica, mas também à política e à cultural. Daí que seja impossível evitar a submissão à hegemonia que pretendem.
Eu afirmo, pelo contrário, que, dentro do sistema do imperialismo colectivo, os Estados Unidos não têm uma superioridade económica decisiva. O sistema de produção americano está longe de ser o mais eficiente do mundo. Na verdade, muito poucos dos seus sectores teriam a certeza de bater a concorrência num mercado verdadeiramente livre como o sonhado pelos economistas liberais. O défice comercial americano, que aumenta de ano para ano, passou de 100 biliões de dólares em 1989 para 500 biliões em 2002. Mais ainda, este défice atingiu praticamente todas as áreas de produção. Mesmo os excedentes de que os Estados Unidos beneficiavam outrora na área dos artigos de alta tecnologia, os quais atingiam os 35 biliões em 1990, transformaram-se agora em défice. A competição entre os mísseis Ariane e os da NASA, entre os Airbus e os Boeings, comprova a vulnerabilidade da superioridade americana. Os Estados Unidos enfrentam a concorrência europeia e japonesa nos produtos de alta tecnologia, a chinesa, a coreana e a de outros países industrializados da Ásia e da América Latina nos produtos de fabrico comum, e a europeia e a do sul da América Latina na agricultura. Os Estados Unidos provavelmente não seriam capazes de ganhar se não fosse o seu recurso a meios extra-económicos, com a violação dos princípios do liberalismo imposto aos seus concorrentes!
O que é verdade, é que os Estados Unidos beneficiam apenas de uma superioridade comparativa no sector do armamento, precisamente porque este sector opera largamente fora das regras do mercado e beneficia de apoio estatal. Esta superioridade arrasta provavelmente alguns benefícios para a esfera civil (o exemplo mais conhecido é a Internet), mas também provoca graves distorções que prejudicam muitos sectores de produção.
A economia norte americana vive duma forma parasita em detrimento dos seus parceiros no sistema mundial. “Os Estados Unidos dependem em 10 por cento do consumo industrial de bens cujos custos de importação não estão cobertos pelas exportações dos seus próprios produtos”, como lembra Emmanuel Todd.(3) O mundo produz e os Estados Unidos (que praticamente não fazem poupança nacional) consomem. A superioridade dos Estados Unidos é a de um predador cujo défice é coberto por empréstimos dos outros, quer sejam consentidos quer sejam obtidos à força. Washington tem vindo a utilizar três formas principais de compensar esta deficiência: violações unilaterais repetidas dos princípios liberais; exportação de armamento; e procura de maiores lucros a partir do petróleo (o que pressupõe um controlo sistemático sobre os produtores – uma das verdadeiras razões para as guerras na Ásia Central e no Iraque). O que é facto é que parte essencial do défice americano é coberto pelas contribuições de capital da Europa, Japão e do Sul (dos países produtores de petróleo e das classes compradoras de todos os países do terceiro mundo, incluindo os mais pobres), às quais se juntam as somas adicionais que entram por conta da dívida que foi imposta em quase todos os países na periferia do sistema mundial.
O crescimento nos anos Clinton, apregoado como resultado de um liberalismo a que a Europa em vão tentava resistir, foi na verdade uma enorme mistificação e, de qualquer modo, não pode ser generalizado, porquanto estava dependente das transferências de capital que levavam à estagnação das economias parceiras. Em todos os sectores do verdadeiro sistema de produção, o crescimento americano não foi melhor do que o da Europa. O milagre americano foi alimentado exclusivamente por um crescimento na despesa produzido pelas crescentes desigualdades sociais (serviços financeiros e privados, legiões de advogados, e forças policiais privadas). Analisando os factos, torna-se claro que o liberalismo de Clinton preparou as condições para a onda reaccionária e posteriormente para a vitória de Bush Filho
As causas do enfraquecimento do sistema de produção americano são complexas. O que é certo é que não são conjunturais, e não podem ser corrigidas pela adopção de, por exemplo, uma taxa de câmbio correcta ou a instauração de um equilíbrio mais positivo entre salários e produtividade. Elas são estruturais. A mediocridade dos sistemas gerais de educação e de formação, e um preconceito profundamente enraizado sistematicamente em prol dos serviços privados em detrimento dos públicos, estão entre as principais razões da profunda crise por que a sociedade americana está a passar.
Devíamos, então, ficar surpreendidos pelo facto de os europeus, longe de tirarem as conclusões que se impõem da observação das deficiências das forças económicas americanas, estarem a imitá-los activamente. Também aqui o vírus liberal não explica tudo, mesmo quando desempenha algumas funções úteis ao sistema tal como a de paralisar a esquerda. A privatização desenfreada e o desmantelamento dos serviços públicos apenas terão como resultado a redução da superioridade comparativa de que goza ainda “A Velha Europa” (como Bush lhe chama). No entanto, quaisquer que sejam os danos que estas medidas venham a causar a longo prazo, elas proporcionam ao capital dominante, que vive a curto prazo, a possibilidade de obter lucros adicionais.
A estratégia de hegemonia dos Estados Unidos insere-se no quadro do novo imperialismo colectivo.
Os economistas convencionais não têm as ferramentas analíticas necessárias para entender a importância suprema destes objectivos. Ouvimo-los repetir até à exaustão que na nova economia as matérias-primas vindas do terceiro mundo estão condenadas a perder a sua importância e por isso o terceiro mundo está a tornar-se cada vez mais marginal no sistema mundial. Em contradição com este discurso ingénuo e oco temos o Mein Kampf da administração Bush,(4) e temos que reconhecer que os Estados Unidos têm lutado esforçadamente pelo direito de se apropriarem de todos os recursos naturais do planeta a fim de satisfazer as suas exigências de consumo. A corrida pelas matérias-primas (primeiro que tudo o petróleo, mas também outras – principalmente a água) já se iniciou em toda a sua virulência. Tanto mais que estes recursos estão em vias de se tornarem escassos não só por causa do desperdício nocivo inerente ao consumismo ocidental, mas também por causa do desenvolvimento da nova industrialização das periferias.
Acresce que um grande número de países do Sul estão em vias de se tornar produtores industriais de importância crescente tanto a nível dos seus mercados internos como quanto ao seu papel no mercado mundial. Enquanto importadores de tecnologias, de capital, e também enquanto concorrentes na exportação, estão em vias de perturbar o equilíbrio económico global com um peso cada vez maior. E não se trata apenas de alguns países da Ásia Ocidental (como a Coreia), mas da imensa China e, futuramente, da Índia e dos grandes países da América Latina. No entanto, longe de ser um factor de estabilização, a aceleração da expansão capitalista no Sul apenas pode vir a provocar violentos conflitos – internos e internacionais. E a razão é que esta expansão não consegue absorver, nas actuais condições, a enorme reserva de força de trabalho que está concentrada na periferia. De facto, as periferias do sistema continuam a ser uma zona de tempestades. Os centros do sistema capitalista precisam pois de exercer o seu domínio sobre as periferias e submeter a população do mundo à disciplina impiedosa que a satisfação das suas prioridades requer.
Dentro desta perspectiva, a elite governante americana percebeu perfeitamente que, para alcançar a sua hegemonia, tem três vantagens absolutas sobre os competidores europeus e japoneses: o controlo sobre os recursos naturais do globo, o monopólio militar e o peso da cultura anglo-saxónica através da qual se exprime melhor o domínio ideológico do capitalismo. A manipulação sistemática destas três vantagens revela muitos aspectos da política americana: os esforços sistemáticos que Washington exerce pelo controlo militar do Médio Oriente produtor de petróleo; a sua estratégia ofensiva no que diz respeito à China e à Coreia – tirando partido da “crise financeira” desta última; e o seu jogo subtil com vista a divisões sem fim na Europa – mobilizando o seu incondicional aliado inglês ao mesmo tempo que evita qualquer aproximação séria entre a União Europeia e a Rússia. A nível do controlo global sobre os recursos do planeta, os Estados Unidos têm uma superioridade absoluta sobre a Europa e o Japão. Não só porque os Estados Unidos são a única potência militar internacional e, por isso, nenhuma intervenção forte no terceiro mundo pode ser levada a efeito sem eles, mas principalmente porque a Europa (com exclusão da ex-URSS) e o Japão estão por seu lado extremamente dependentes dos recursos essenciais para as suas economias. Por exemplo, a sua dependência no sector da energia, em especial a sua dependência do petróleo em relação ao Golfo Pérsico, irá durar um considerável período de tempo, mesmo que venha a diminuir em termos relativos. Ao assegurarem o controlo desta região, pela força das armas, através da guerra do Iraque, os governantes dos Estados Unidos demonstraram que estavam perfeitamente conscientes da utilidade deste tipo de pressão, que utilizam para refrear os seus competidores (aliados). Não há muito tempo, a União Soviética também já se tinha apercebido desta vulnerabilidade da Europa e do Japão, e algumas intervenções soviéticas no terceiro mundo tiveram o objectivo de demonstrar isso mesmo, a fim de os obrigar a negociar noutras regiões. Tornou-se evidente que as deficiências da Europa e do Japão podiam ser compensadas na sequência duma aproximação séria entre a Europa e a Rússia (a casa comum” de Gorbachev). Esta é a verdadeira razão para que o perigo da construção da Eurásia continue a ser o pesadelo de Washington.
Se bem que os parceiros na tríade partilhem interesses comuns na gestão global do imperialismo colectivo implícito no seu relacionamento com o Sul, eles mantêm no entanto um relacionamento muito grave, potencialmente conflituoso.
A superpotência americana mantém-se de pé graças ao fluxo de capital que alimenta o parasitismo da sua economia e da sua sociedade. Esta vulnerabilidade dos Estados Unidos constitui, assim, uma séria ameaça ao projecto de Washington.
A Europa em particular e o resto do mundo em geral terão que escolher uma das duas seguintes opções estratégicas: ou investem o excedente do seu capital (isto é, economias) por forma a garantir o financiamento continuado do défice americano (consumo, investimentos e despesas militares) ou conservam e investem estas economias internamente.
Os economistas convencionais mantêm-se alheados a este problema, e levantam a hipótese absurda de que, como a globalização supostamente aboliu o estado-nação, os factores básicos económicos (poupança e investimento) deixaram de poder ser geridos a nível nacional. Mas embora ridícula, a noção de identidade de poupança e investimento a nível mundial é na verdade útil para justificar e favorecer o financiamento do défice americano por terceiros. Tal absurdo é um excelente exemplo do raciocínio tautológico, em que as conclusões a que se pretende chegar estão implicadas na própria premissa.
Então porque é que se aceita um disparate destes? Sem dúvida porque as equipas de doutos economistas que enquadram quer as classes políticas europeias da direita (assim como as russas e as chinesas) quer as da esquerda eleitoral são elas próprias vítimas da sua alienação económica, a que chamo o vírus liberal. Mais ainda, o raciocínio político do grande capital multinacional exprime-se através desta opção. Este raciocínio é de que as vantagens decorrentes da gestão do sistema globalizado pelos Estados Unidos por conta do imperialismo colectivo são mais importantes do que os seus inconvenientes – é um tributo que tem que ser pago a Washington para garantir a estabilidade. O que está em jogo, afinal de contas, é um tributo e não um investimento com garantia de um bom retorno. Há alguns países classificados de países pobres endividados que estão sempre constrangidos a pagar a sua dívida a qualquer preço. Mas há também um país fortemente endividado que tem os meios para desvalorizar a sua dívida se isso for considerado necessário.
A outra opção para a Europa (e para o resto do mundo) consistiria assim em pôr fim a esta transfusão a favor dos Estados Unidos. As poupanças poderiam então ser utilizadas localmente (na Europa), e a economia poderia ser revitalizada. A transfusão exige que os europeus se submetam, na linguagem equívoca da economia convencional, a “políticas deflacionárias” a que chamo de estagnação – que provoquem um excedente de poupança para exportação. Faz com que a recuperação na Europa – sempre medíocre – fique dependente do apoio artificial dos Estados Unidos. A mobilização deste excedente para emprego local na Europa permitiria uma revitalização não só do consumo (reformulando a dimensão social da gestão económica destruída pelo vírus liberal), como do investimento (em especial nas novas tecnologias e pesquisa), e até mesmo das despesas militares (pondo fim à superioridade dos Estados Unidos nesta área). A escolha desta resposta implicaria um reequilíbrio das relações sociais em prol das classes trabalhadoras. Na Europa esta opção mantém-se possível para o capital. No fundo, o contraste entre os Estados Unidos e a Europa não resulta de interesses opostos dos segmentos dominantes dos seus respectivos capitais. Resulta sobretudo da diferença de culturas políticas.
A cumplicidade e a competição entre os parceiros no imperialismo colectivo pelo controlo do Sul – a pilhagem dos recursos naturais e a sujeição dos seus povos – podem ser analisadas sob diversos pontos de vista. Quanto a isto, farei três observações que me parecem as mais importantes.
Primeira, o sistema mundial contemporâneo que designo por imperialismo colectivo não é menos imperialista que os seus antecessores. Não é um “Império” de natureza “pós-capitalista”.
Segunda, propus uma leitura da história do capitalismo, globalizado logo desde a origem, centrada na distinção entre as diversas fases do imperialismo (de relações centro/periferia).
Terceira, a internacionalização não é sinónimo de unificação do sistema económico através da abertura selvagem dos mercados. Esta última – nas suas formas históricas sucessivas (liberdade de comércio ontem, liberdade das empresas hoje) – constituiu sempre o projecto do capital dominante da época. Na realidade este projecto foi quase sempre forçado a ajustar-se a condições que não eram do interesse da sua lógica interna exclusiva e específica. Portanto, nunca pôde ser implementado a não ser durante alguns breves momentos da história. A “livre troca” proclamada pela principal potência industrial do tempo, a Inglaterra, só funcionou durante duas décadas (1860-1880) e foi seguida por um século (1880-1980) caracterizado pelo conflito entre os países imperialistas e pelo afastamento vincado dos países socialistas e o afastamento mais moderado dos países nacionalistas populistas (na era de Bandung desde 1955 a 1975). O actual momento de reunificação do mercado mundial, instaurado pelo neoliberalismo desde 1980, e alargado a todo o planeta com o colapso soviético, não terá provavelmente um destino melhor. O caos que tem gerado comprova o seu carácter de “permanente utopia do capital”, frase com que tenho descrito este sistema desde 1990.
O Médio Oriente, considerado daqui em diante em conjunto com as áreas fronteiriças do Cáucaso e da Ásia Central ex-soviética, ocupa uma posição de especial importância na geoestratégia e geopolítica do imperialismo e, em especial, do projecto de hegemonia americano. Deve esta posição a três factores: à sua riqueza em petróleo; à sua posição geográfica no coração do Velho Mundo; e ao facto de que constitui o ponto vulnerável do sistema mundial.
O acesso ao petróleo a um preço relativamente barato é vital para a economia da tríade dominante, e os melhores meios de assegurar este acesso garantido consiste em assegurar o controle político da área.
Mas a região também tem importância devido igualmente à sua posição geográfica, estando junto ao centro do Velho Mundo, a igual distância de Paris, Pequim, Singapura e Johannesburg. Nos velhos tempos o controle sobre esta inevitável encruzilhada deu ao Califado o privilégio de retirar os principais benefícios do comércio a longa distância daquela época. Após a Segunda Guerra Mundial a região, localizada ao sul da União Soviética, era crucial para a estratégia militar de sitiar o poder soviético. E a região não perdeu a sua importância com o colapso do adversário soviético. A dominância americana na região reduz a Europa, dependente do Médio Oriente para o seu abastecimento de energia, à vassalagem. Uma vez subjugada a Rússia, a China e a Índia estavam também sujeitas à chantagem energética permanente. O controle sobre o Médio Oriente permitiria portanto uma extensão da Doutrina Monroe ao Velho Mundo, o objectivo do projecto hegemonista dos Estados Unidos. Mas os contínuos e constantes esforços efectuados por Washington desde 1945 para assegurar o controle sobre a região, excluindo os britânicos e franceses ao mesmo tempo, não foram coroados pelo êxito. Pode-se recordar o fracasso da tentativa de anexar a região à NATO através do Pacto de Bagdad, e a queda de um dos seus mais fieis aliados, o Xá do Irão.
A razão é muito simplesmente porque o projecto do populismo nacionalista árabe (e iraniano) entrou logo em conflito com os objectivos do hegemonismo americano. Este projecto árabe tinha esperança de forçar as Grandes Potências a reconhecer a independência do mundo árabe. O movimento não-alinhado formado em 1955 em Bandung pelo conjunto dos movimentos de libertação dos povos asiáticos e africanos era a corrente mais forte naquele tempo. Os soviéticos entenderam isto rapidamente, dando o seu apoio a este projecto eles podiam conter os planos agressivos de Washington.
Este época chegou a um fim, em primeira instância porque o projecto populista-nacionalista do mundo árabe exauriu rapidamente o seu potencial para a transformação, e os poderes nacionalistas afundaram em ditaduras esvaziadas tanto de esperança como de planos para mudança. O vácuo criado por esta deriva abriu o caminho para o Islão político e as autocracias obscurantistas do Golfo Pérsico, os aliados preferidos de Washington. A região tornou-se uma das partes fracas (underbellies) do sistema global, vulnerável à intervenção externa (inclusive militar) que os regimes em vigor, por falta de legitimidade, são incapazes de conter ou desencorajar. A região constituiu, e continua a constituir, uma zona de alta prioridade (como a caribenha) dentro da divisão geomilitar americana do planeta — uma zona onde aos Estados Unidos é concedido o "direito" de intervenção militar. A partir de 1990 eles não se privaram de nada!
Os Estados Unidos operam no Médio Oriente em estreita cooperação com os seus dois fieis e incondicionais aliados — Turquia e Israel. A Europa é mantida longe da região, forçada a aceitar que os Estados Unidos estão a defender os interesses globais vitais da tríade, ou seja, o seu abastecimento de petróleo. Apesar dos sinais de óbvia irritação após a guerra do Iraque, nesta região os europeus de um modo geral continuam a seguir com entusiasmo o rastro de Washington.
O expansionismo colonial de Israel constitui um desafio real. Israel é o único país do mundo que se recusa a reconhecer as suas fronteiras como definidas (e por esta razão não tem o direito de ser membro das Nações Unidas). Tal como os Estados Unidos no século XIX, reivindica o direito de conquistar novas áreas para a expansão da sua colonização e de tratar o povo que ali tem vivido durante milhares de ano como "peles-vermelhas". Israel é o único país que se declara abertamente não vinculado às resoluções da ONU.
A guerra de 1967, planeada em 1965 em acordo com Washington, buscava vários objectivos: iniciar o colapso dos regimes populistas nacionalistas; romper a sua aliança com a União Soviética; forçá-los a reposicionarem-se nos termos americanos; e abrir novos territórios para a colonização sionista. Nos territórios conquistados em 1967 Israel montou um sistema de apartheid inspirado naquele da África do Sul.
É aqui que os interesses do capital dominante encontram-se com aqueles do sionismo. Um mundo árabe rico, poderoso e modernizado poria em causa o direito do Ocidente de pilhar os seus recursos petrolíferos, os quais são necessários para a continuação do desperdício associado com a acumulação capitalista. Portanto, o poderes políticos nos países da tríade — todos eles servidores fieis do capital transnacional dominante — não querem um mundo árabe modernizado e poderoso.
A aliança entre as potências ocidentais e Israel é funda-se portanto na base sólida dos seus interesses comuns. Esta aliança não é nem o produto dos sentimentos de culpa europeus pelo anti-semitismo e crimes nazis nem o da habilidade do "lobby judaico" em explorar tal sentimento. Se as Potências pensassem que o seu interesse eram prejudicado pelo expansionismo colonial sionista, elas rapidamente encontrariam o meios de ultrapassar o seu complexo de culpa de neutralizar este lobby. Não duvido disto, nem estou entre aqueles que ingenuamente acreditam que a opinião pública nos países democráticos, tal como ela é, imponha as suas visões a estas Potências. Sabemos que a opinião pública também é fabricada. Israel é incapaz de resistir por mais do que uns poucos dias mesmo da moderadas medidas de um bloqueio tal como as potências ocidentais infligem à Juguslávia, Iraque e Cuba. Não seria difícil portanto trazer Israel ao bom senso e criar as condições para uma paz verdadeira, se quisessem, o que não acontece.
Logo após a derrota na guerra de 1967, o presidente do Egipto Anwar Sadat declarou que os Estados Unidos detinham "90 por certo das cartas" (expressão sua) e portanto era necessário romper com a União Soviética e reintegrar o campo ocidental. Ele afirmou que ao fazer isso podia conseguir que Washington exercesse suficiente pressão sobre Israel para levá-lo ao bom senso. Além de tais ideias estratégicas peculiares a Sadat — cuja incoerência tem sido demonstrada pelos acontecimentos — a opinião pública árabe continuou em grande medida incapaz de compreender a dinâmica da expansão global do capitalismo, e menos ainda de identificar as suas verdadeiras contradições e fraquezas. Não se diz ainda que "Algum dia o ocidente entenderá que o seu interesse a longo prazo é manter boas relações com 200 milhões de árabes e preferirá não sacrificar estas relações para o apoio incondicional a Israel?" Implicitamente isto é o mesmo que pensar que o “Ocidente” em causa, que é o centro imperial do capital, prefere um mundo árabe moderno e desenvolvido em vez de querer manter o mundo árabe subjugado, para o que é manifestamente útil o apoio a Israel.
A escolha feita pelos governos árabes – à excepção da Síria e do Líbano – que os levaram nas negociações de Madrid e Oslo (1993) a subscrever o plano americano da então chamada paz definitiva, não podia produzir resultados diferentes daqueles que já produzira: encorajar Israel a consolidar o seu projecto expansionista. Ao rejeitar hoje abertamente as condições do contrato de Oslo, Ariel Sharon demonstra apenas o que já era claro na altura – que não se tratava de uma questão dum projecto para a paz definitiva, mas o começo duma nova fase na expansão colonial sionista.
Israel e os poderes ocidentais que apoiaram este projecto impuseram um estado de guerra permanente na região. Por seu lado, este estado de guerra permanente reforça os regimes autocráticos árabes. Este bloqueio de qualquer possível evolução democrática enfraquece as possibilidades duma revitalização do mundo árabe, e reforça assim a aliança do capital dominante com a estratégia hegemónica dos Estados Unidos. Fecha-se o círculo: a aliança israelo-americana serve perfeitamente os interesses dos dois parceiros.
Parecia inicialmente que o sistema de apartheid instaurado após 1967 seria capaz de atingir os seus objectivos – a gestão da vida quotidiana nos territórios ocupados pelas temíveis elites e pela burguesia comercial, com a aceitação aparente do povo palestino. Do seu longínquo exílio em Tunes, a OLP, afastada da região após a invasão do Líbano pelo exército israelense (1982), parecia já incapaz de questionar a anexação sionista.
A primeira Intifada explodiu em Dezembro de 1987. Expressou o repentino levantamento das classes populares e em especial dos seus segmentos mais pobres confinados aos campos de refugiados. A Intifada cortou o cordão com o poder israelense ao organizar uma desobediência civil sistemática. Israel reagiu com brutalidade, mas não conseguiu restaurar o poder da sua polícia nem voltar a dominar as temíveis classes médias palestinas. Pelo contrário, a Intifada exigia o regresso em massa das forças políticas exiladas, a constituição de novas formas locais de organização, e a adesão das classes médias a uma luta empenhada pela libertação. A Intifada foi desencadeada por adolescentes, chebab al Intifada, inicialmente não enquadrados nas organizações formais da OLP, mas nem por isso hostis a essas organizações. As quatro componentes da OLP (a Fatah, fiel ao seu chefe Yasser Arafat, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, a Frente Popular para a Libertação da Palestina e o Partido Comunista) empenharam-se na Intifada e conquistaram assim a simpatia da maior parte dos chebab. A Irmandade Muçulmana, com um papel secundário por causa da sua inactividade durante os anos precedentes, apesar de algumas acções levadas a efeito pelo Jihad Islâmico (que fez a sua aparição em 1980), refugiou-se numa nova expressão de luta – a Hamas, constituída em 1988.
Quando, ao fim de dois anos, a primeira Intifada deu sinais de esgotamento, e com uma repressão israelense cada vez mais violenta (que incluiu o uso de armas de fogo contra crianças e o fecho da linha verde para bloquear praticamente a única fonte de rendimento dos trabalhadores palestinos), o cenário para as “negociações” estava montado. A iniciativa foi tomada pelos Estados Unidos, conduzindo primeiro às conversações de Madrid (1991) e depois aos assim chamados Acordos de Paz de Oslo (1993). Estes acordos permitiram o regresso da OLP aos territórios ocupados e a sua transformação numa Autoridade palestina.
Os acordos de Oslo idealizaram a transformação dos territórios ocupados em um ou mais bantustões, integrados decisivamente na região israelense. Dentro desta estrutura, a Autoridade palestina era apenas um falso estado – tal como nos bantustões – e na realidade uma mera correia de transmissão da ordem sionista.
Ao voltar para a Palestina, a OLP – agora a Autoridade palestina – conseguiu estabelecer a sua lei, mas não sem algumas ambiguidades. A autoridade absorveu na sua nova estrutura a maior parte dos chebab, que tinham coordenado a Intifada. Alcançou a legitimidade na consulta eleitoral de 1996, na qual os palestinos participaram em massa (80 por cento); uma esmagadora maioria elegeu Arafat presidente da autoridade. A autoridade manteve-se contudo numa posição ambígua: aceitaria desempenhar as funções que Israel, os Estados Unidos e a Europa lhe tinham destinado – a de serem governo dum bantustão, ou alinharia com o povo palestino que recusava submeter-se?
Como o povo palestino rejeitou o projecto bantustão, Israel decidiu denunciar o acordo de Oslo, apesar de ter ditado o seu articulado, e substitui-lo pelo uso puro e simples da violência militar. A provocação aos lugares santos de Jerusalém engendrada pelo criminoso de guerra Sharon em 1998 (mas com a ajuda do governo trabalhista que forneceu os tanques), e a eleição triunfal desse mesmo criminoso para a chefia do governo israelense (com a colaboração do “inocente” Simon Peres com este governo), foram a causa da segunda Intifada que está em curso.
Terá esta sucesso na libertação do povo palestino do jugo ao apartheid sionista? É demasiado cedo para o dizer. De qualquer modo, o povo palestino tem neste momento um verdadeiro movimento de libertação nacional. Tem as suas especificidades próprias. Não segue o modelo do estilo de homogeneidade de partido único (embora a realidade dos estados de partido único seja sempre mais complexa). Tem componentes que conservam a sua própria personalidade, as suas perspectivas quanto ao futuro, incluindo as suas ideologias, os seus militantes e clientelas, mas que parecem saber como cooperar na liderança da luta.
O desgaste dos regimes do nacionalismo populista e o desaparecimento do apoio soviético deram aos Estados Unidos a oportunidade de implementar o seu projecto para a região.
O controlo do Médio Oriente é de facto uma pedra angular do projecto de Washington para a hegemonia global. Então como é que os Estados Unidos prevêem assegurar esse controlo? Já passou uma década desde que Washington tomou a iniciativa de avançar com o estranho projecto dum “Mercado Comum do Médio Oriente” no qual alguns países do Golfo Pérsico forneciam o capital enquanto outros países árabes forneciam mão de obra barata, ficando reservado a Israel o controlo tecnológico e as funções de intermediário privilegiado e agradecido. Aceite pelos países do Golfo e pelo Egipto, o projecto foi no entanto confrontado com a recusa da Síria, do Iraque e do Irão. Era pois necessário derrubar estes três regimes para que o projecto avançasse. O que já está a ser feito no Iraque.
A questão agora é qual o tipo de regime político que deve ser instaurado por forma a dar sustentação ao projecto. O discurso propagandístico de Washington fala de “democracias.” Na realidade, Washington apressa-se a simplesmente substituir as assim chamadas autocracias obscurantistas islâmicas pelas desgastadas autocracias do populismo fora de moda (mascarando a operação com baboseiras acerca do seu respeito pela especificidade cultural das comunidades). A aliança renovada com o assim chamado Islão politicamente moderado (um que seja capaz de controlar a situação com eficácia bastante para impedir os movimentos terroristas – definindo como “terroristas” as ameaças dirigidas contra, e somente contra, os Estados Unidos) constitui agora o eixo da opção política de Washington. É nesta perspectiva que deverá ser encontrada a reconciliação com a antiquada autocracia do sistema social do Médio Oriente.
Confrontados com o desenvolvimento do projecto americano, os europeus inventaram o seu próprio projecto, baptizado de “Parceria euro-mediterrânica.” Um projecto decisivamente cobarde – atafulhado de conversa incoerente que, claro, também propunha reconciliar os países árabes com Israel. A exclusão dos países do Golfo do diálogo euro-mediterrânico reconhecia que a gestão e o controlo destes últimos países era da exclusiva responsabilidade de Washington.
O agudo contraste entre a audácia destemida do projecto americano e a debilidade do projecto europeu é um bom indicador de que não há lugar para um verdadeiro atlantismo com igualdade de responsabilidade e de associação quanto às decisões que coloquem os Estados Unidos e a Europa em pé de igualdade. Tony Blair, que se instituiu a si próprio advogado da construção de um mundo unipolar, julga que pode justificar esta opção com o argumento de que o atlantismo seria fundado nessa suposta colaboração. A arrogância de Washington revela todos os dias que esta expectativa é ilusória, se é que não foi desde o início uma tentativa de má fé para enganar a opinião europeia. O realismo da declaração de Estaline de que os nazis “não sabiam quando é que deviam parar” aplica-se exactamente aos que controlam os Estados Unidos. Blair invoca expectativas que lembram as depositadas na suposta capacidade de Mussolini para deter Hitler.
Será possível outra opção europeia? Terá já começado a ganhar forma? Será que o discurso de Chirac opondo-se ao mundo “Atlântico unipolar” (que aparentemente ele considera ser de facto sinónimo de hegemonia unilateral dos Estados Unidos) anuncia a construção de um mundo multi-polar e o fim do atlantismo? Para que esta possibilidade se torne uma realidade, é necessário que a Europa se liberte primeiro do pântano em que se debate e se afunda.
Todos os governos dos estados europeus foram conquistados pelas teses do liberalismo. Esta arregimentação dos estados europeus traduz simplesmente o desaparecimento do projecto europeu por um duplo enfraquecimento, o económico (as vantagens da união económica europeia desfizeram-se com a globalização económica) e o político (a autonomia política e militar europeia desapareceu). Neste momento não existe qualquer projecto europeu. Foi substituído por um projecto Atlântico Norte (ou mesmo da tríade) sob o controlo americano.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa ocidental conseguiu compensar o seu atraso económico e tecnológico vis-à-vis os Estados Unidos. Depois de 1989, desapareceu a ameaça soviética tal como desapareceram as desgraças que marcaram a história da Europa durante os últimos cento e cinquenta anos: os três maiores países do continente – a França, a Alemanha e a Rússia – reconciliaram-se. Todos estes acontecimentos são, quanto a mim, positivos e ricos de ainda maior potencial. Claro que estão empilhados numa base económica reestruturada dentro dos princípios do liberalismo. No entanto este liberalismo foi moderado até à década de 80 pelo compromisso histórico social-democrata que forçou o capital a ajustar-se às exigências da justiça social expressas pelas classes trabalhadoras. Depois disso, o desenvolvimento continuou num novo quadro social inspirado pelo liberalismo anti-social, no estilo americano.
Esta última reviravolta mergulhou as sociedades europeias numa crise multidimensional. Essencialmente é uma crise económica que resulta, pura e simplesmente, da escolha liberal. A crise foi agravada pelos países europeus que alinharam com as exigências económicas da liderança americana: o consentimento da Europa em continuar a financiar o défice americano em detrimento dos seus próprios interesses. Depois há a crise social, que é acentuada pelo aumento das oposições e lutas das classes populares contra as consequências fatais da opção liberal. Finalmente, há o começo duma crise política – a recusa de alinhar, pelo menos incondicionalmente, com a exigência americana de uma guerra sem fim contra o Sul.
As guerras made-in-USA abalaram obviamente a opinião pública (a última guerra no Iraque teve esse efeito de uma forma global) e até mesmo alguns governos, inicialmente o da França e depois também os da Alemanha, da Rússia e da China. O que é verdade é que esses mesmos governos não puseram em dúvida o seu fiel alinhamento com as necessidades do liberalismo. Esta importante contradição terá que ser resolvida de uma forma ou de outra, seja pela submissão às exigências de Washington seja por uma verdadeira rotura que ponha fim ao atlantismo.
A principal conclusão política que tiro desta análise é que a Europa não pode ir além do atlantismo enquanto as alianças políticas que definem os blocos que detêm o poder se mantiverem centradas no capital multinacional dominante. Só se as lutas sociais e políticas conseguirem modificar o conteúdo destes blocos, e impor novos compromissos históricos entre o capital e o trabalho, é que a Europa conseguirá distanciar-se de Washington, permitindo uma possível revitalização dum projecto europeu. Nestas condições a Europa também poderia – deveria mesmo – envolver-se a nível internacional nas relações com o leste e o sul, seguindo um caminho diferente do que o traçado pelas exigências exclusivas do imperialismo colectivo. Um percurso assim seria o começo da sua participação na longa caminhada para lá do capitalismo. Por outras palavras, a Europa ou será de esquerda (a palavra esquerda deve ser levada a sério) ou não será nada.
Notas de rodapé:
(1) Samir Amin, Class and Nation (New York: NYU Press, 1981); Samir Amin, Eurocentrism, (New York: Monthly Review Press, 1989); Samir Amin, Obsolescent Capitalism (London: Zed Books, 2003); Samir Amin, The Liberal Virus(New York, Monthly Review Press, 2004). (retornar ao texto)
(2) A leitura de “sucessão de hegemonias” é “ocidente-cêntrica” no sentido em que considera que as transformações que se desenrolam no coração do sistema comandam a evolução global do sistema dum modo decisivo e praticamente exclusivo. As reacções das populações das periferias ao desenvolvimento imperialista não deve ser subestimado. A independência das Américas, as grandes revoluções feitas em nome do socialismo (Rússia e China), e a reconquista da independência dos países asiáticos e africanos, constituíram provocações ao sistema feitas pelas periferias. E não acredito que se possa explicar a história do capitalismo mundial sem explicar os ajustamentos que essas transformações impuseram mesmo ao próprio capitalismo central. Também porque a história do imperialismo me parece ter sido modelada mais através do conflito de imperialismos do que pelo tipo de ordem que as sucessivas hegemonias impuseram. Os aparentes períodos de hegemonia foram sempre extremamente curtos e a dita hegemonia muito relativa. (retornar ao texto)
(3) Emmanuel Todd, After the Empire: The Breakdown of the American Order (New York: Columbia University Press, 2003). (retornar ao texto)
(4) Office of the White House, The National Security Strategy of the United States, Setembro 2002, http://www.whitehouse.gov/nsc/nss.html. (retornar ao texto)