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Quando os homens de Natal pronunciam o esquisito nome de Giocondo fazem-no com admiração e respeito. E se quem o pronuncia é um dos soldados, cabos e sargentos que fizeram a revolução de 35 no Rio Grande do Norte, então sua voz se enche de carinho. O cabo Giocondo, de Natal, é o mesmo camarada Dias, da Bahia. Giocondo Alves Dias, hoje Secretário Estadual da região da Bahia. Pelo nordeste sofrido seu nome é um pouco lendário e ouvireis muitas histórias sobre ele, algumas com várias versões, histórias de heroísmos, de valentias, de altos gestos de bondade. No nordeste os fatos caem logo no domínio da imaginação dos violeiros, esse é um povo criador. O nome do cabo Giocondo é um daqueles que correm terras na voz anônima do povo, seus feitos engrandecidos com uma aura de lenda.
Um homem loiro e magro, de meia altura, de sorriso tímido e olhos molhados. De uma brusquidão cheia de ternura. Podereis ver homens enormes, ríspidos, faladores, contadores de vantagens, que, na presença do ex-cabo Giocondo ficam como filhos pequenos ante o pai ralhador mas compreensivo. Parecem esperar aquele terno e paternal puxar de orelhas que é mais uma carícia que um castigo. E como um puxar de orelhas é a voz do camarada Dias:
— Deixa de conversa fiada. Tu só tem prosa...
Ouvistes, com certeza, falar muitas vezes dessas pessoas humaníssimas que nasceram para tratar com os demais, para se preocuparem com todos, para se sacrificarem diariamente em benefício dos outros, cheios de compreensão e de solidariedade, tratastes, sem dúvida, com algumas dessas figuras que nos fazem acreditar no homem e amar a humanidade. Ainda assim precisareis de conhecer o camarada Dias. Os homens de Natal, os da revolução de 35, nunca se acostumaram a chamá-lo de Dias. Para eles é Giocondo, o cabo. Alguns são felizes porque podem tratá-lo pela voz familiar de Nenen que é como o chama Lurdes, sua dedicada companheira.
Eu tinha uma boa amiga em Buenos Aires, militante do movimento proletário, que costumava falar da “raça dos homens tristes”. Certa vez espiávamos uma fotografia de Prestes e ela, após examinar a face do líder brasileiro, seus olhos profundos, disse:
— Eu bem desconfiava que Prestes era da raça dos homens tristes...
E desenvolveu sua teoria. Existia uma raça de homens que eram os “mestres”, homens tristes mas que amavam ver e criar a alegria dos demais. Esses eram os criadores de vida, os capazes de renovar o mundo, de mudar sua face. Assim tinha sido Lenin e assim era Stalin. O melhor exemplo dessa raça na Argentina, segundo Teresa, era Rodolfo Ghioldi. Homens que sofriam as penas de todos, que tinham o coração repleto do sofrimento alheio. “Dessa raça — disse ela — saem os grandes poetas, os grandes revolucionários, os grandes romancistas, os grandes músicos”. Achava que São Francisco de Assis havia saído da “raça dos homens tristes” e que Henri Barbusse tinha sido um dos seus mais altos representantes, assim como Máximo Gorki. Mostrava uma fotografia do romancista russo e apontava seus olhos mongólicos e doces, seu bigode caído sobre os lábios num sorriso de amor e melancolia.
Penso na teoria de Teresa todas as vezes que me encontro com o camarada Dias. Esse seria um perfeito paradigma da “raça dos homens tristes”. Nos seus olhos, por vezes maliciosos como os de Nicolau Ilitch, há uma certa melancolia como se neles se refletisse todo o sofrimento em torno, toda a miséria ambiente. E a mesma capacidade de reunir os homens em derredor de si, de ouvir pacientemente suas amarguras, de guiá-los. Existem, sem dúvida, esses homens que congregam, que despertam a confiança dos demais, que são como portos procurados por embarcações desarvoradas. Assim o camarada Dias.
Quando ele veio de Natal, após dois anos de cárcere, condenado à larga pena de prisão, buscar asilo na ilegalidade em terras da Bahia que eram sua terra natal, então houve uma verdadeira imigração. Por toda a cidade, nos meses que se seguiram, começaram a surgir cavernosas caras potiguares. Eram cabos e soldados do regimento, condenados uns, sem pena outros, que vinham no rastro do cabo Giocondo e que viviam em torno dele como se fossem ao mesmo tempo sua família e sua guarda pessoal. Alguns desses homens — bem poucos, felizmente — nem mais eram revolucionários, haviam se acomodado na vida em empregos, lares e situações. Mas nenhum deixava de aparecer diariamente em casa de Dias, bater um papo, ouvir uns desaforos, desculpar-se, sair dali sorridente. Ele vivia ilegal, a cada momento podia ser preso e os homens de Natal sabiam disso. Sabiam que era perigoso, para eles e para Dias, aquela convivência. E Dias não o escondia e os mandava embora. Mas eles voltavam diariamente, mesmo quando sabiam que da boca revolucionária do cabo e do militante só podiam ouvir desagradáveis palavras contra seu conformismo, seu acomodamento, sua preguiça, seu oportunismo.
Mas logo após não eram só os homens de Natal, os bons, como esse magnífico Cândido que era para qualquer tarefa, e os perdidos, logo eram os homens da Bahia que um a um iam descobrindo o camarada Dias, sua inteireza moral, sua pureza, sua inteligência, sua humana compreensão. Lembro-me de Diwaldo Miranda, jovem médico de corpo gigantesco, um dos mais nobres militantes, que possuiu o Partido na Bahia. Morreu tuberculoso no ano passado sem ter tido a alegria de assistir à vitória das Nações Unidas. Morreu trabalhando na campanha de ajuda à FEB. Enquanto na cidade da Bahia, todas as manhãs, invariavelmente, podia-se encontrar Diwaldo no escritório de Dias. O ex-cabo, transformado por fôrça da ilegalidade em representante comercial (e que excelente representante!), trabalhava. Interrompido a cada momento por um camarada do Partido que vinha dar conta de uma tarefa ou discutir um assunto. Diwaldo respeitava o trabalho de Dias. Sentava numa das poltronas e ficava silencioso. Aquela era a alegria melhor daquele homem doente, já condenado pela ciência, sabendo ele também — era médico — que não podia durar muito. Numa dessas manhãs saímos juntos da casa de Dias e Diwaldo me disse com sua voz grave e triste:
— Venho aqui todos os dias porque estou perto de morrer. E vendo Dias trabalhar morro certo de que a coisa marcha...
Quando Diwaldo morreu, num domingo de angústia, Dias estava viajando. Arriscando sua liberdade fora ao Rio na luta contra os liquidacionistas do Partido. Era quando a conspiração contra o Partido mais alto se levantara, quando os provocadores se haviam infiltrado em todos os meios e só tinham uma bandeira: acabar com o Partido. A preocupação de todos nós era como dizer ao companheiro que ia chegar da partida final do outro companheiro. Pois se pareciam esses dois homens, Diwaldo e Dias, na bondade, na compreensão, na imensa solidariedade para com a dor dos homens.
E foi ele ainda quem nos veio consolar da perda do amigo, foi quem nos veio dar ânimo e coragem quando havíamos parado um momento ante o túmulo querido. Assim é o camarada Dias, escondendo o coração num sorriso irônico.
Lembro de outro que morreu, esse na cadeia, na Ilha Grande. Chamava-se Valverde, era a ruidosa alegria, a lealdade em pessoa. Fora ele também cabo em Natal, na revolução. Fui visitar os companheiros presos em 44 e o nome mais popular na Ilha Grande era o de Giocondo. Alguém me disse: — É quase uma religião dos homens de Natal, Valverde à frente...
Giocondo para eles simbolizava as qualidades boas do ser humano. Sorri para o espanto dos companheiros presos. Eu chegava da Bahia e compreendia, sabia o porquê daquele devotamento.
E já que estou falando de Giocondo e de Valverde contarei uma história se bem não vos quisesse contar histórias de Dias, pois são tantas que não seria num folheto que haviam de caber. Mas essa é mais uma história de Valverde e quero narrá-la em honra da memória desse jovem que está enterrado nas areias do presídio político da Colônia dos Dois Rios. Foi assim:
Quando Dias fugiu de Natal, escondido na terceira classe de um navio, vinha quase tuberculoso. Seu corpo está cortado de balas e uma delas reside até hoje no seu pulmão. Balas de novembro de 35. Valverde vinha fugido também, também ele escondido no porão e assistia o companheiro morrer de inanição, de fraqueza. Os portos eram temidos porque lá estava a polícia à espera.
Os tiras das ordens políticas e sociais se espalhavam em busca de fugitivos, de condenados, de comunistas. Dias vinha morrendo e Valverde sabia que era necessário alimentá-lo com uma comida melhor que a miserável boia que ali conseguiam e que o estômago do homem com febre não suportava. Não conseguiam leite no navio. Chegaram ao mais temido dos portos: a Recife, onde a polícia havia atingido a uma ferocidade e a uma habilidade que eram superiores à da própria polícia de Filinto Müller. Valverde sabia que saltar em Recife era arriscar não apenas a liberdade. Era arriscar-se às torturas mais infames, a fama da polícia pernambucana era uma desonra do Brasil. Mas era preciso leite para o companheiro, Valverde chegara à conclusão que um pouco de leite seria bastante para sustentar as fôrças do cabo até a Bahia. Não teve dúvidas, saltou no cais infestado de tiras, em meio ao terror. Com seus últimos níquéis comprou o leite necessário.
Dessas histórias é feita a história do nosso Partido. Desses homens é feito o corpo do nosso Partido. Foi por isso que ele resistiu à perseguição de dez anos, consecutiva e brutal.
Falei do homem Giocondo Alves Dias, pouco disse do revolucionário. É que não são duas figuras. O homem é o revolucionário, — nunca, desde os 18 anos, Dias agiu senão na sua condição de comunista. Em 35 quando tudo parecia perdido em Natal, ele estava numa cama de hospital com balas pelo corpo, quase morto. A desmoralização nascida do medo começou a tomar conta do quartel. Ele levantou-se enfaixado, o revólver na mão. Sua presença — tinha pouco mais de vinte anos — deu novo ânimo aos homens, tudo entrou em ordem, a confiança voltou. Foi o último a deixar o quartel quando as fôrças de Pernambuco se aproximavam. Antes cuidou de um por um, orientou todos os que partiam. Eis porque jamais se esqueceram dele.
Foi preso e era considerado o chefe, o mais perigoso de todos. Queriam que ele falasse, e fizeram tudo para ele falar. Os autos do processo informam: — “Não prestou declarações”. Assim é esse homem.
Quando em 41 a quinta-coluna atingiu a direção do Partido na Bahia, desorganizando-a, foi Dias quem novamente a levantou.
Existem homens que vêm para o Partido certos de que a moral comunista é pequeno-burguesa, mesquinha, triste e limitadora da personalidade humana. Outros creem, que a moral comunista é anárquica, é a falta de moral, é a dispersão do homem e dos valores humanos. Uns e outros só com o tempo e o exemplo e a superação de si mesmo compreendem que existe uma condição moral dos comunistas que é cheia de humanidade, que é a valorização das qualidades do homem, que é criadora de alegria e de beleza. Quando se encontra um homem que realmente cumpre essa moral e molda sua vida dentro dela estamos diante de um homem decente, de bem, e de uma vida decente e limpa. É o caso de Giocondo Alves Dias.
Inclusão | 08/04/2014 |