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Fonte: http://planeta.clix.pt/adorno/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A perdida unidade entre a arte e a religião, vista como um fato benéfico ou prejudicial, não pode ser recuperada por um ato de vontade. Como não era uma questão de cooperação intencional, mas resultava de toda uma estrutura objetiva da sociedade durante certas fases da história, a ruptura é objetivamente condicionada e irreversível. A unidade de arte e religião não provém simplesmente de convicções e decisões subjetivas mas da realidade social subjacente e de sua tendência objetiva. Tal unidade existe, em princípio, apenas em sociedades fechadas, não-individualistas e hierárquicas – até mesmo na antigüidade grega não prevaleceu nas fases em que o indivíduo se emancipou econômica e politicamente. A presente crise que envolve a individualidade e as tendências coletivas em nossa sociedade não justifica qualquer retrocesso da arte a um estágio que antecede a era individualista, qualquer tentativa de novamente submeter a arte de modo arbitrário a amarras de natureza religiosa. Uma reversão dessas traria o selo da própria era individualista: seria essencialmente racionalista. O indivíduo ainda poderia ter experiências religiosas. Mas a religião positiva perdeu seu caráter de validade objetiva e oniabrangente, sua força vinculante supra-individual. Não é mais um medium a priori não-problemático dentro do qual cada um exista sem questionamentos. Por isso o desejo de reconstrução daquela unidade tão exaltada é um wishful thinking, mesmo que esteja profundamente enraizado no desejo sincero por algo que dê "sentido" a uma cultura ameaçada pelo vazio e pela alienação universal.
A exaltada unidade de arte e religião é, e sempre foi, altamente problemática em si mesma. Na verdade é amplamente uma projeção romântica ao passado pelo desejo de relações orgânicas e não-alienadas entre os homens, para deixar de lado a universal divisão do trabalho. Provavelmente tal unidade jamais existiu em períodos em que se possa falar de arte no sentido apropriado de liberdade da expressão humana como distinta dos símbolos de ritual que são obras de arte apenas por acaso. É revelador que a idéia desta unidade tenha sido concebida na época romântica. É errada a tese de que a arte se tenha separado da religião apenas numa fase tardia do iluminismo e da secularização. Tanto a religião objetivada quanto a arte são igualmente, desde uma época muito recuada, o produto da dissolução da unidade arcaica entre imagens e conceitos. Desde quando estabelecida, a relação entre ambas as esferas tem sido de tensão. Mesmo nos períodos que se supõe terem assegurado a máxima integração entre a religião e a arte, como no mundo grego clássico ou no auge da cultura medieval, esta unidade foi grandemente imposta sobre a arte e teve, em certo grau, um caráter repressivo. Isto é atestado pelas diatribes de Platão contra a poesia e, no mesmo grau mas de maneira invertida, por aquelas cabeças diabólicas e figuras grotescas que adornam as catedrais góticas; estas últimas, embora partes e parcelas da ordo católica, expressam claramente impulsos de resistência do emergente indivíduo contra esta mesma ordo. Em outras palavras, a arte – tanto a chamada arte clássica quanto suas expressões mais anárquicas – sempre foi e é uma força do protesto humano contra a pressão das instituições dominantes, a religião e outras, e também reflete sua substância objetiva. Por isso, há motivos para a suspeita de que onde quer que se levante um grito para que a arte recupere suas fontes religiosas também prevaleça o desejo de que a arte deveria exercer uma função disciplinar e repressiva.
São fúteis todas as tentativas de acrescentar significado espiritual e, portanto, validade mais objetiva à arte pela reintrodução de conteúdo religioso a tratamento artístico. É assim que a religião quando tratada pela poesia moderna e pelos inevitáveis meios da técnica poética moderna acaba por assumir um aspecto de " ornamental ", do decorativo. Torna-se circunscrição metafórica para experiências mundanas, geralmente experiências psicológicas do indivíduo. O simbolismo religioso deteriora-se numa expressão untuosa de algo que na verdade pertence a este mundo. Um bom exemplo desta deterioração dos símbolos religiosos em mero embelezamento pode ser dado pelo pseudo misticismo de Rainer Maria Rilke. Com outras obras mais avançadas e de um suposto conteúdo religioso, com a Sinfonia dos Salmos (1930), de Stravinski, a atitude religiosa assume um ar de comunidade externa e fundamentalmente arbitrária manipulada por recursos individuais atrás dos quais nada existe da força coletiva que alardeia possuir. E é preciso referir-se a essa espécie de romance religioso best seller de que temos tidos alguns desagradáveis exemplos nos últimos anos. Esse tipo de literatura liquida qualquer pretensão quanto à validade real de suas teses. Neles se glorifica a religião porque seria tão bom se a gente pudesse crer novamente... É como se a religião estivesse à venda. É posta no mercado a preços baixos para fornecer mais um desses irracionais estímulos pelos quais os membros de uma sociedade que calcula fazem cálculos para esquecer os cálculos que os esmagam. Essa arte de consumidor é religião cinematográfica até mesmo antes que essa indústria dela tome posse. Contra esse tipo de coisa, a arte só consegue manter-se fiel a sua verdadeira afinidade com a religião, uma relação com a verdade, por uma quase abstinência quanto a qualquer anseio ou ao mais ligeiro toque em assuntos religiosos. A arte religiosa hoje em dia é apenas blasfêmia.
Igualmente fútil é tomar emprestado formas religiosas do passado, peças como os mistérios ou os oratórios, e delas abstrair os conteúdos religiosos a que estão vinculadas. Hoje tomamos como pressuposto a obsolescência da arte individualista e sua substituição por formas coletivistas. É essa fórmula que engendra as tentativas mais passionais de mobilizar novamente as formas artísticas dos tempos religiosos. É bem característico, no entanto, que nenhuma das tentativas feitas nesse sentido tenha como base uma reconciliação autêntica e concreta entre sujeito e objeto, entre o individual e o coletivo, mas que atinjam o caráter coletivo apenas às expensas do indivíduo cuja liberdade de expressão está mais ou menos podada. Isto se liga bastante a tendências totalitárias de nossa sociedade, mas que não posso discutir nessas rápidas observações que faço. Por outro lado, convém deixar claro, entretanto, que tampouco há caminho de volta à arte individualista no sentido tradicional. Em seu relacionamento com o coletivismo e o individualismo, a arte hoje enfrenta um beco sem saída que poderíamos tentar ultrapassar concretamente mas que certamente não pode ser resolvido por qualquer receita geral e muito menos por "síntese", por escolha de uma terceira via. Esse beco é uma expressão fiel da crise da nossa atual sociedade em si mesma.
Numa época como a nossa, estraçalhada por antagonismos de grupos e por todas espécies de discriminação social, uma era em que a religião positiva e a filosofia tradicional perderam grande parte de seu apelo junto às massas, parece atraente a muitos que a força de integração daqueles domínios tenha passado para a arte. A arte deveria, como dizem, "transmitir uma mensagem" de solidariedade humana, de amor fraternal, de universalidade oniabarcante. Parece-me que o valor dessas idéias só podem consistir em sua verdade inerente, não em sua aplicabilidade social e muito menos na maneira como são, de fato, propagadas pela arte. Por outras palavras, enfrentá-las como tais permanece tarefa do pensamento filosófico autônomo. Tornar essas idéias como assunto de obras de arte seria apenas um pouco melhor do que as pinturas murais modernistas de santos ou os romances sobre milagres duvidosos – as idéias supremas da filosofia seria distorcidas numa espécie de slogans eleitorais. Se hoje nos dizem que a arte, a religião e a filosofia são, em última análise, idênticas, isto não justifica a posição de que caberia à arte traduzir as idéias filosóficas em imagens sensuais. Pois a suposta identidade de arte, religião e filosofia, mesmo se verdadeira, é tão remotamente abstrata que sua virtualidade não leva a nada e permanece tão frágil quanto um truísmo pronunciado em Escolas Dominicais e em sessões de coretos filarmônicos. O que vem com a aparência de idealismo em alto grau pressupõe, na verdade, o emasculamento de todas as disputas atuantes, sejam religiosas, filosóficas ou artísticas. Todas se tornam idênticas ou, pelo menos, mutuamente reconciliáveis, como "bens culturais" aos quais ninguém mais toma a sério. Tornam-se inofensivas e impotentes. É a redução a algo geralmente aceitável dentro do padrão conformista de uma dada cultura que produz a ilusória aparência de identidade espiritual. Essa ênfase aparentemente humanista já se tornou mera ideologia. A arte que queira preencher seu destino humano não pode tomar o humano de espreita nem proferir palavreados humanistas.
Até aqui acentuei a fina distinção entre arte e religião bem como entre arte e filosofia tal como produzida historicamente. Mas isto não nos deve cegar quanto à íntima relação originalmente existente entre elas e que continuamente conduz a uma interação produtiva. Toda obra de arte ainda conserva o selo de usa origem mágica. Até podemos conceder que, se o elemento mágico fosse dela extirpado completamente, o declínio da própria arte teria sido concretizado. Mas isto tem que ser entendido com propriedade. Em primeiro lugar, as tendências artísticas mágicas que sobrevivem são algo totalmente diverso de seus conteúdos ou de suas formas manifestos. Devem ser, de preferência, encontrados em toques, tais como o encanto que emana de uma verdadeira obra de arte, o halo de sua unicidade, a aspiração inerente a representar algo de absoluto. Este caráter mágico, no entanto, não pode ser conjurado pelo desejo de se conservar a chama viva. O relacionamento atual pode ser expresso de maneira paradoxal. A produção artística não pode fugir da tendência universal do Esclarecimento, de crescente domínio da natureza. Por todo o curso da história, o artista cada vez tornou-se mais consciente e autonomamente senhor de seu material e de suas formas e, assim, trabalha contra o mágico encanto de seu próprio produto. Mas é justamente por seu esforço incessante para atingir esse controle consciente e essa força construtiva, justamente pelo ataque da autonomia artística contra o elemento mágico que este retira a força de sobrevivência e de se fazer sentir de formas novas e mais adequadas. As forças da construção racional trazidas para o relacionamento com esse elemento irracional parecem intensificar sua resistência interior mais do que eliminá-la, como nossos filósofos irracionalistas gostariam de fazer-nos acreditar. Portanto, a única maneira possível de salvar o "encanto" da arte é a recusa desse encanto na arte propriamente dita. Hoje só o compositor dos hit parades e os escritores de best sellers é que tagarelam sobre a irracionalidade e inspiração de seus produtos. Quem cria obras que são verdadeiramente concretas e indissolúveis, que verdadeiramente se opõem às oscilações da indústria cultural e da manipulação calculista, é quem pensa com maior rigor e intransigentemente em termos de consistência técnica.
Tenho plena consciência de quanto estas teses fragmentadas são insatisfatórias. Estou particularmente consciente de uma objeção que certamente será levantada e que quero acolher. Pode ser dito que a arte, a despeito de tudo, relaciona-se com o universal; que não se deve hipostasiar a divisão de trabalho considerando a arte como um domínio auto-suficiente e hermeticamente fechado em si mesmo. Pode-se até suspeitar que eu esteja tentando reviver o bom e velho esteticismo, a tese de "l’art pour l’art" que agora repetidamente é dada por morta. Nada disso está em meus intentos. Tão firmemente como estou de que a dicotomia entre arte e religião é irreversível, também firmemente creio que isto não pode ser ingenuamente considerado algo final e definitivo. Mas a relação entre a obra de arte e o conceito universal não é uma relação direta. Se devesse expressar isto de maneira brutal deveria tomar emprestada uma famosa metáfora da história da filosofia. Deveria comparar a obra de arte a uma mônada. De acordo com Leibnitz, cada mônada "representa" o universo, mas não tem janelas; representa o universal dentro de sua próprias paredes. Ou seja, sua estrutura é objetivamente a mesma do universal. Pode ter consciência disso em diferentes graus. Mas não tem acesso imediato à universalidade, não olha para ela, por assim dizer. Não importa o que consideremos dos méritos lógicos ou metafísicos desta concepção: parece-me que expressa com adequação a natureza da obra de arte. A arte não pode tornar os conceitos como seu "tema". O relacionamento da obra de arte com o universal torna-se tanto mais profundo quanto menos a obra tenha a ver explicitamente com universalidades, quanto mais se impregne com seu próprio mundo em destaque, com seu material, seus problemas, sua consistência, sua maneira de expressar-se. Apenas atingindo o ápice da individualização genuína, apenas obstinadamente seguindo os desiderata de seu concretizar-se, é que a obra se torna verdadeiramente portadora do universal. Vou citar o nome de um artista de nossa época que seguiu esse axioma ao extremo, que como muitos acreditam fez uma concretização plena de melancolia mas que, assim, atingiu um grau de universalidade que creio insuplantável na literatura moderna. Penso na obra de Marcel Proust. Sua visão dos homens e das coisas é tão próxima que até a identidade do indivíduo, o seu "caráter" , se dissolve. No entanto, é sua obsessão com o concreto e com o único, com um gosto de madeleine ou com a cor dos sapatos que uma mulher gastou em certa festa, que instrumentaliza a materialização de uma tese verdadeiramente teológica, a tese da imortalidade. Pois é esta concentração sobre os detalhes opacos e quase-cegos que leva Proust a alcançar a Rememoração das Coisas Passadas com que seu romance enfrenta a brava morte ao quebrar a força do oblívio que arrrebata cada vida individual. É ele que, num mundo não-religioso, apanhou a expressão da imortalidade literalmente e tentou salvar a vida, como imagem, dos golpes da morte. Mas fez isto doando-se ao mais fútil, ao mais insignificante, aos traços mais fugitivos da memória. Ao concentrar-se no plenamente mortal, converteu seu romance, hoje censurado como auto-indulgente e decadente, num hieróglifo de "Oh, morte, onde está seu ferrão? Oh túmulo, onde está tua vitória"?
Inclusão | 21/11/2018 |