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Primeira Edição: ADORNO e HORKHEIMER. Temas básicos da sociologia. São Paulo, ed. Cultrix, 1973
Fonte: Núcleo de Pesquisas e Estudos Sociedade, Subjetividade e Educação
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O conceito de ideologia generalizou-se na linguagem científica. "Só ocasionalmente, escreveu há pouco Eduard Spranger, se fala agora de idéias e ideais políticos, e com muito mais freqüência de ideologias políticas"(1). A referência a ordem de motivações permite incluir formações espirituais do conhecimento na dinâmica social. A aparência irrevogável de conhecimento pelo conhecimento em si e a sua aspiração à verdade estão impregnadas de sentido crítico. Não só a autonomia mas a própria condição dos produtos espirituais de se tornarem autônomos são pensadas, com o nome de ideologia, em uníssono com o movimento histórico da sociedade. E nesta se desenvolvem os produtos ideológicos e suas funções. Atribui-se-lhes uma utilidade, desejada ou não, a respeito dos interesses particulares. A sua própria separação, a constituição da esfera espiritual e sua transcendência, manifestam-se, entre outros aspectos, como o resultado da divisão do trabalho. Assim é que tal transcendência justifica, de um modo puramente formal, na concepção ideológica, a divisão da sociedade, se é certo que a participação no mundo eterno das idéias está reservada a quantos que, por estarem excetuados do trabalho físico, desfrutam de um privilégio. Estes e outros motivos que se manifestam onde é usada a palavra ideologia, levaram a estabelecer um contraste entre o conceito de ideologia e da sociologia que o emprega, por uma parte, e a filosofia tradicional, por outra. Esta última ainda afirma, embora em palavras algo diferente, que o seu domínio é o da essência permanente e imutável, para além dos fenômenos e das suas variações. É conhecido o dito de um filósofo alemão, ainda hoje respeitado, que comparava a sociologia, na era anterior ao fascismo, com um Fassedenkletterer [um assaltante que entra na casa alheia trepando pelas fachadas dos edifícios. N. do T.]. Idéias deste tipo, que foram inculcadas há tempo na consciência popular e que contribuem para manter a desconfiança em relação à sociologia, obrigam a uma maior reflexão, sobretudo porque, com freqüência, deparamo-nos com elementos irreconciliáveis ou francamente contraditórios entre si. Quanto à dinamização dos conteúdos espirituais, por parte da crítica ideológica, esquece-se geralmente que a própria teoria da ideologia pertence à história e que, se não a substância, pelo menos a função do conceito de ideologia, foi modificando-se historicamente e está sujeita à dinâmica que se quer rejeitar(2). Assim, o significado de ideologia e do que são ideologias só pode ser compreendido se reconhecermos o movimento histórico desse conceito, que é, ao mesmo tempo, o da coisa.
Prescindindo de algumas tendências da filosofia grega oposicionista, desacreditadas com o triunfo da tradição platônico-aristotélica e reconstituídas hoje, com dificuldade, pelos filósofos, as condições gerais da constituição de uma pseudoconsciência são enfatizadas no começo da moderna sociedade burguesa, entre fins do século XVI e começos do XVII. Os manifestos antidogmáticos de Francis Bacon, em prol da libertação da Razão, proclamam a luta contra os "ídolos", os preconceitos coletivos que preponderavam sobre os homens no começo da burguesia, tal como agora, em seu fim. As formulações de Bacon soam, para nós, como uma antecipação da moderna crítica positivista da linguagem, em sua esfera semântica. Ele caracterizou um tipo de ídolo no qual o espírito deveria se libertar, o dos idola fori, que poderíamos traduzir livremente como ídolos da sociedade de massa, "os homens associam-se entre si com a ajuda da linguagem; mas os nomes são atribuídos às coisas pelo arbítrio do vulgo. Por isso, o intelecto vê-se tolhido, de maneira singular, pelas denominações inadequadas...As palavras violentam o espírito e turvam todas as coisas"(3).
É necessário fazer dois comentários a essas pretensões iniciais do espírito iluminista. O engano foi atribuído, em primeiro lugar, "ao" homem, ao ente de natureza invariante e não às condições que fazem com que o homem seja o que é, ou o que é subjacente como massa. Ainda hoje, a doutrina da cegueira humana inata, um fragmento de teologia secularizada, pertence ao arsenal da crítica vulgar da ideologia; ao atribuir a falsa consciência a um caráter constitutivo dos homens ou ao seu agrupamento em sociedade de um modo geral, não só se omitem as suas condições concretas, mas de certa maneira, justifica-se essa cegueira como lei natural e o domínio exercido sobre quem a sofre continua baseado em tais leis, como sucederá depois com um discípulo de Bacon, Hobbes. Em segundo lugar, as aberrações são atribuídas à nomenclatura, à impureza lógica e, portanto, aos indivíduos e sua falibilidade,assim como à situação histórica, tal como Theodor Geiger fazia ainda há pouco quando liquidou a ideologia "como uma questão de mentalidade", com o que denunciava a tentativa de levar para a estrutura social um "misticismo puro"(4). O conceito de ideologia em Bacon, se é possível assim dizer, já é tão subjetivista quanto os atuais. A teoria dos ídolos pretendia dar uma base à emancipação da consciência burguesa da tutela eclesiástica e, para tanto, inseria-se na tendência progressista da filosofia de Bacon, considerada em seu todo. Mas, a perpetuação ideal das relações pensadas, quando muito, segundo o modelo das antigas cidades-Estados, que se queria imitar, e o subjetivismo abstrato que queria ignorar completamente a inverdade da categoria da subjetividade, isoladamente considerada, ao mesmo tempo já revela os limites dessa consciência.
O impulso politicamente progressista da teoria da falsa consciência, delineada por Bacon, ressurgiu de uma forma muito mais clara com o Iluminismo do século XVII. Dois precursores do Enciclopedismo, como Helvécio e Holbath, afirmaram que os preconceitos atribuídos por Bacon aos homens, em geral, cumprem uma certa função social, na medida em que servem para a injustiça e impedir a construção de uma sociedade racional. "Os preconceitos dos grandes", lê-se em Helvécio, "são as leis dos pequenos"(5); e, numa outra obra: "[...] a experiência revela que quase todos os problemas morais e políticos não são decididos pela razão, mas pela força. Se é certo que a opinião é soberana, ela só o é, em última instância, no reino dos poderosos, que fazem e governam a opinião"(6). O fato do moderno exercício da pesquisa de opinião ter se desenvolvido, até uma data recente, com menosprezo desse axioma e na crença de que seria possível nos determos na opinião expressadas subjetivamente como se fossem outros tantos dados básicos e definitivos, talvez seja um indício das modificações funcionais que os motivos iluministas poderiam sofrer com a transformação da sociedade. O que certa vez foi concebido como função crítica deveria servir agora para comprovar como "estão as coisas". Mas o resultado da investigação não sai ileso. A análise do significado da ideologia no conjunto da sociedade é substituída pelas considerações a respeito da sua superfície, isto é, sobre a distribuição estatística de certas opiniões. Nem os próprios enciclopedistas, por certo, chegaram a uma concepção unânime sobre a origem objetiva da ideologia e das formas objetivas das suas funções sociais. Os preconceitos e a pseudoconsciência foram interpretadas na melhor das hipóteses, como maquinações dos poderosos. Disse Holbach: "de um modo geral, a autoridade vê o seu próprio interesse na conservação das idéias estabelecidas; os preconceitos e erros que consideram necessários para assegurar o seu poder são perpetuados pela força, que jamais se sujeita à Razão (qui jamais ne raisonne)".(7)
Entretanto, nessa mesma época, Helvécio, que talvez tenha sido o intelecto mais poderoso do Enciclopedismo, já focalizara o caráter de necessidade objetiva daquilo a que os seus contemporâneos atribuíam ao "arbítrio maléfico de uma camarilha". "As nossas idéias são uma conseqüência necessária da sociedade em que vivemos"(8). Esse elemento de necessidade reaparece no centro dos trabalhos investigativos da escola francesa que adotou o nome de ideólogos (lês ideólogues), ou seja, os estudiosos das idéias. A palavra ideologia deve-se a um dos principais expoentes dessa escola, Destutt de Tracy.(9) Ele estava ligado ao empirismo filosófico, que atomizava o espírito humano para poder observar o mecanismo de conhecimento e reduzir a este os critérios da verdade e coerência intelectual. Mas a sua intenção não era gnosiológica, nem formal. Não procura no espírito as simples condições de validade dos juízos, mas quer conjugar a observação dos próprios conteúdos da consciência com os fenômenos ideais, decompondo-os e descrevendo-os como se fossem objetos naturais (um mineral e uma planta, por exemplo). A ideologia, escreveu certa feita, numa formulação deliberadamente provocativa, é uma das partes da zoologia(10). Referindo-se ao sensualismo do espírito fortemente materialista de Condilla, de Tracy empenha-se em reduzir todas as idéias à sua origem nos sentidos. Já não lhe basta a refutação da falsa consciência e a denúncia dos objetos por ela servidos, o que ele quer agora é que toda e qualquer consciência, seja falsa ou verdadeira, seja reduzida às leis que as governam. Daí, à concepção da necessidade social de todos os conteúdos de consciência é apenas um passo. Os ideólogos compartilhavam tanto da tradição que os antecedeu como do positivismo do seu próprio tempo, cuja orientação mais recente era matemático-científica. Assim, Tracy também pôs em destaque o nascimento e formação da expressão lingüística, querendo estabelecer, depois do controle dos dados primordiais, uma gramática e uma linguagem matematizantes, na qual cada idéia deve corresponder, inequivocamente, a um único símbolo significante, de acordo com o também celebrado ideal de Leibniz e do antigo racionalismo(11). Mas tudo isso devia servir agora para um objetivo prático-político. Destutt de Tracy ainda esperava poder impedir, mediante a prova de comparação com os dados sensíveis, a consolidação dos princípios falsos e abstratos, capazes de dificultar não só a compreensão entre os nomes, mas também a edificação da sociedade e do Estado. A sua ciência das idéias, ou seja, a ideologia, deveria conjugar a certeza e a segurança, como a matemática e a física. O rigor metódico da ciência deveria pôr fim, de uma vez para sempre, à arbitrariedade e à variabilidade indiferente das opiniões que a grande filosofia sempre censurou, desde Platão. Ante o método científico, a falsa consciência, ou seja, a ideologia, como se lhe chamará mais tarde, deve desaparecer. Mas, com isso, restaura-se o primado das ciências e, portanto, do espírito. Entretanto, a escola dos ideólogos, cujas fontes ideais não eram só materialistas, mas também idealistas, mantém firme o seu empirismo, crente no princípio de que a consciência é que determina o ser. A ciência suprema deveria ser, segundo de Tracy, uma ciência dos homens, suprindo as bases para toda a vida política e social(12). A idéia do papel cientificamente dominante, de Comte – e, em definitivo, também socialmente dominante – da sociologia,l já está presente nos "idéologues", de forma virtual.
Originalmente, a sua teoria tinha um propósito progressista. Seria instaurado o domínio da razão e o mundo seria organizado em proveito do homem. Isto pressupunha um equilíbrio harmônico das forças sociais, em bases liberais, funcionando quando cada indivíduo atua segundo seu próprio interesse bem compreendido e que se lhe tornou claro. Neste sentido, o conceito de ideologia atuou, numa primeira fase, nas lutas políticas efetivas. Já Napoleão, num trecho citado por Pareto e apesar de tudo o que vinculava a sua ditadura à emancipação burguesa, fazia contra os ideólogos a mesma acusação de agentes da desintegração social que, depois, passou sempre a acompanhar, como uma sombra, a análise social da consciência. Numa linguagem tingida de elementos bebidos em Rousseau, valorizava justamente os momentos irracionais, aos quais se referirá depois de maneira constante, nos seus ataques ao chamado intelectualismo da crítica ideológica, ao passo que, por seu lado, a teoria da ideologia, numa fase subseqüente, funde-se em Pareto com um extremo irracionalismo. Ressoam as frases de Napoleão: "à doutrina dos ideólogos, essa tenebrosa metafísica que, investigando penetrantemente as causas primeiras, tem como objetivo estabelecer sobre as suas bases a legislação dos povos, em vez de ajustar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história, devem ser atribuídas todas as desgraças das nossas batalhas da França. Esses erros tinham de conduzir, e conduziram, de fato, ao regime dos sanguinários. Senão, vejamos quem foi que proclamou o princípio da insurreição como dever? Quem adulou o povo, proclamando-o o detentor de uma soberania que ele é incapaz de exercer? Quem destruiu a santidade e o respeito pelas leis, fazendo-as depender não dos sagrados princípios da justiça, da natureza das coisas e da ordem civil, mas da vontade de uma Assembléia composta de homens alheios ao conhecimento das leis civis, penais, administrativas, políticas e militares? Quando se for chamado a regenerar um Estado, é necessário seguir constantemente os princípios opostos a isso [dês príncipes constamment opposés]. A História oferece a imagem do coração humano; na História é preciso buscar as vantagens e desvantagens das várias legislações"(13). Por muito pouco lúcidas que sejam essas preposições, nas quais se misturam o direito natural da Revolução Francesa e a subseqüente fisiologia da consciência, é evidente, de qualquer modo, que Napoleão farejava em qualquer análise da consciência um perigo para a "positividade", que lhe parecia melhor assegurada no coração. Em seu pronunciamento, Napoleão também prenunciou o futuro "ideologismo ingênuo" de que acusa os supostos utópicos abstratos, em nome da realpolitik. Mas Napoleão ignorava que a análise da consciência, desenvolvida pelos ideólogues, não era inteiramente incompatível com os interesses do poder, porque já se fazia acompanhar de um elemento técnico-manipulativo, do qual a teoria positivista da sociedade nunca desligou, com o que os seus resultados ficavam disponíveis para finalidades que, inclusive, eram mutuamente contraditórias. Para os ideólogues, o conhecimento da origem e formação das idéias é o domínio de especialistas e o que estes elaborarem deve servir depois para os que fazem as leis e governam os Estados, a fim de assegurar a ordem por eles desejada, a qual ainda era identificada, sem dúvida, com a ordem racional. Mas já predomina a idéia de que com o correto conhecimento do quimismo é possível dominar os homens; esta idéia põe de lado a questão da verdade e da apreensão objetiva das idéias, coerente com a atitude cética em que se inspirava a escola dos ideólogos e, em segundo lugar, também desaparece a investigação das tendências históricas objetivas de que a sociedade depende, tanto em seu cego desenvolvimento como processo "naturalista" como na potencialidade do seu consciente ordenamento racional.
Esses elementos deveriam, precisamente, assumir uma função essencial na teoria clássica da ideologia. Abstemo-nos de expor aqui a teoria, conhecida em suas linhas gerais, e cujas formulações básicas, por outra parte, sobretudo o problema da relação entre a autonomia interna e a coerência dos produtos espirituais e a sua posição na sociedade, exigiriam uma interpretação minuciosa. Esta, por sua vez, levar-nos-ia a questões centrais da filosofia dialética. Para esboçar uma resposta, não bastaria a consideração óbvia de que as ideologias se refletem, por sua vez, e repercutem sobre a realidade social. A contradição entre a verdade objetiva das formulações espirituais e o simples Ser-para-outro, que o pensamento tradicional não pode resolver, deveria ser dialeticamente aprofundada como contradição da coisa e não como mera insuficiência do método. Como a nossa intenção aqui é, em primeiro lugar, esboçar as transformações estruturais e as mudanças das funções históricas das ideologias e do conceito de ideologia, será legítimo abordar, talvez, um outro aspecto – o da relação entre ideologia e espírito burguês. Todos os motivos conceituais que provêm da pré-história do conceito de ideologia pertence a um mundo em que ainda não existia uma sociedade industrial desenvolvida e quase não se duvida de que a liberdade seria obtida, efetivamente, com a realização da igualdade formal dos cidadãos. Em todas as teorias iluministas de então, o estudo da ideologia tem um status e um lugar específicos, em relação com a ausência desse problema do processo vital da sociedade que hoje nem sequer é apresentado; e supõe-se ser suficiente pôr a consciência em ordem para que a sociedade fique ordenada. Mas não só essa crença é burguesa como, além disso, constitui a própria essência da ideologia. Esta, como consciência objetivamente necessária e, ao mesmo tempo, falsa, como interligação inseparável de verdade e inverdade, que se distingue, portanto, da verdade total tanto quanto da pura mentira, pertence, se não unicamente à nossa sociedade, pelo menos a uma sociedade em que uma economia urbana de mercado já foi desenvolvida. Com efeito, a ideologia é justificação. Ela pressupõe, portanto, quer a experiência de uma condição social que se tornou problemática e, como tal, reconhecida, mas que deve ser defendida quer a idéia de justiça sem a qual essa necessidade apologética não subsistiria e que, por sua vez, baseia-se no modelo de permuta de equivalentes. Em rigor, quando regem relações simples e imediatas de poder, não existem ideologia, num sentido estrito. Os pensadores da Restauração, panegiristas dos tempos feudais ou absolutistas, já adquiriram um caráter burguês pela forma da lógica discursiva, da argumentação que empregam e que contém um elemento igualitário e anti-hierárquico. Por isso, nada mais fazem do que minar e desvirtuar tudo o que glorificam. Uma teoria racional do sistema monárquico que tivesse de fundamentar e justificar a irracionalidade que lhe própria, soaria a crime de lesa-majestade, onde quer que o príncipe monárquico ainda tivesse uma substancial realidade, pois a fundamentação do poder positivo na razão nega, virtualmente, o próprio princípio do reconhecimento daquilo que como tal subsiste. Por isso, a crítica ideológica, como confronto da ideologia com a sua verdade íntima, só é possível na medida em que a ideologia contiver um elemento de racionalidade, com o qual a crítica se esgote. Assim acontece com as idéias tais como as do liberalismo, individualismo, identidade entre o espírito e a realidade. Entretanto, quem se dispusesse a criticar desta maneira a chamada ideologia do nacional-socialismo, acabaria sendo vítima da sua desapontadora ingenuidade. Não só o nível literário de escritores como Hitler e Rosemberg está abaixo de toda a crítica, mas a sua trivialidade, sobre a qual é muito fácil triunfar, é sintomática de uma situação que já não se aduz validamente da definição de ideologia como falsa consciência que a si própria se basta. No chamado "patrimônio intelectual" do nazismo não se refletem as formas do espírito objetivo, dado que foi constituído em resultado de manipulações e como instrumento de poder, do qual ninguém, nem mesmo os seus porta-vozes, pensavam seriamente que merecesse crédito ou fosse levado a sério. Havia aí sempre uma insinuação de recursos à força bruta: tenta fazer uso da tua razão e não tardarás a ver o que acontece; é claro, o absurdo da tese proposta servia para medir o que ainda era possível fazer com que o ouvinte engolisse, ao mesmo tempo que se lhe insinua, atrás do fraseado vazio, o timbre da ameaça ou a promessa de uma parte do saque. Quando se substitui a ideologia pelo ukase de uma aprovada mundivisão, até a crítica ideológica deve ceder o lugar a simples análise do cui bono. Além disso, esta distinção é válida para recordar até que ponto havia pouco em comum entre a crítica ideológica e certo relativismo a que é freqüentemente assimilada. A crítica ideológica é, no sentido hegeliano, negação determinada, confronto de entidades espirituais com sua realização, e pressupõe a distinção do verdadeiro e do falso no juízo de valores, assim como a pretensão de verdade no objeto da crítica. Por conseguinte, a crítica ideológica não é relativista, mas, outrossim, é-o o absolutismo ideológico de marca totalitária, os decretos de um Hitler, de um Mussolini e de um Zdanov, que não é sem motivo que falam de ideologia a propósito de seus pronunciamentos. A crítica da ideologia totalitária não se reduz a refutar teses que não pretendem, absolutamente, ou que só pretendem como ficções do pensamento, possuir uma autonomia e consistência internas. Será preferível analisar a que configurações psicológicas querem se referir, para servirem-se delas; que disposições desejam incutir nos homens com suas especulações, que são inteiramente distintas do que se apresenta nas declamações oficiais.
Existe depois a questão de apurar por que e como a sociedade moderna produz homens capazes de reagir a esses estímulos, dos quais, inclusive, sentem necessidade, e cujos intérpretes são, depois, os líderes e demagogos da massa. É necessário o desenvolvimento que conduziu a tais transformações históricas da ideologia, não o conteúdo em que o resultado ideológico se expressa(14). A crítica à ideologia totalitária deve ir para além dos enunciados – as modificações antropológicas a que a ideologia totalitária quer corresponder são conseqüências de transformações na estrutura da sociedade e nisso, e não nos seus enunciados, encontramos a realidade substancial dessas ideologias. A ideologia contemporânea é o estado de conscientização e de não conscientização das massas como espírito objetivo, e não os mesquinhos produtos que imitam esse estado e o repetem, para pior, com a finalidade de assegurar a sua reprodução. A ideologia, em sentido estrito, dá-se onde regem relações de poder que não são intrinsecamente transparentes, mediatas e, nesse sentido, até atenuadas. Mas, por tudo isso, a sociedade atual, erroneamente acusada de excessiva complexidade, tornou-se demasiado transparente.
Essa transparência é, justamente, o que se admite com maior relutância. Quanto menos subsiste de ideologia e quanto mais toscos são os produtos que lhe sucedem, tanto mais se multiplicam as investigações sobre ideologia, com a pretensão de substituir a teoria da sociedade na descrição exaustiva da grande quantidade de fenômenos(15). Enquanto que no Bloco Oriental se fez do conceito de ideologia um instrumento para atacar o pensamento inconformista e os que têm a audácia de alimentá-lo, deste lado o conceito dissolveu-se no desgaste do mercado científico, perdendo todo o seu conteúdo crítico e, portanto, a sua relação com a verdade. Já em Nietzsche encontravam-se referências nesse sentido, ainda que com outra intenção, por certo. Ele queria humilhar a presunção da limitada razão burguesa, em sua suposta dignidade metafísica. Depois, Max Weber, como hoje toda a sociologia positivista, negou a existência, ou pelo menos, a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura total da sociedade e de sua relação com os produtos espirituais; e, em contrapartida, propôs, com a ajuda de uma tipologia ideal não sujeita a um princípio geral, mas tão-só adequada aos interesses imparciais da investigação, efetuar a distinção entre o momento primário e secundário(16). A sua orientação conjugava-se com o ideal de Pareto. Ao limitar a teoria da ideologia à demonstração de dependências isoladas, o que significava passar de uma teoria da sociedade, em seu conjunto, a uma hipótese sobre ligações individuais de dados, quando não a uma "categoria da sociologia da compreensão (Verstehen) , Max Weber chegava ao mesmo efeito obtido por Pareto, ampliando o conceito de ideologia em sua célebre teoria dos derivados, até eliminar toda e qualquer determinação específica(17). Assim, a explicação social da falsa consciência converte-se em sabotagem teórica de qualquer forma de consciência. Para Max Weber, o conceito de ideologia atém-se a um preconceito que deve ser constantemente reexaminado; para Pareto, todo o produto do espírito é ideologia; em ambos os casos o conceito é neutralizado. Pareto expõe, inclusive, a conseqüência implícita do relativismo sociológico. O mundo espiritual, na medida em que é algo mais do que ciência natural mecanicista, perde todo o caráter de verdade para resolver-se numa simples racionalização múltipla de situações de interesse, que encontra em todos os grupos sociais quantas ratificações se quiser. A crítica da ideologia converte-se, assim, na lei da selva do mundo espiritual: a verdade não é mais do que uma função do poder em ocasiões impostas. Apesar do seu aparente radicalismo, Pareto aproxima-se da antiga teoria dos ídolos, pois que não tem, de fato, um conceito da História, e atribui as ideologias, como seus "derivados", aos homens em geral. E ainda que proclame, em termos positivistas, que a sua investigação ideológico-crítica é lógico-experimental, de acordo com o modelo de ciências naturais, e só se mostre fiel aos fatos – no que se mostra inteiramente indiferente às preocupações gnosiológicas de Max Weber, embora compartilhe do seu pathos, no tocante à liberdade axiológica – Pareto emprega expressões como tout le monde (todo o mundo)ou les hommes (os homens). Ele mostra-se cego às variações a que estão sujeitas as condições sociais, o que lhe parece ser a natureza humana, e que influem, inclusive, na relação entre os motivos propulsores, em sentido estrito, os resíduos e o que deles surge, ou seja, os derivados ou ideologia. Neste aspecto, é característico um interessante trecho do Traité de Sociologie Génerale: os derivados são o material usado por todos... Até agora, as ciências sociais foram, freqüentemente, teorias constituídas por resíduos e derivados que tinham, aliás, um objetivo prático; persuadir os outros a atuarem de certa forma, considerada útil para a sociedade. A presente obra, pelo contrário, é uma tentativa de levar essas ciências, exclusivamente, para o campo lógico-experimental, sem qualquer objetivo de utilidade prática imediata, com o único propósito de conhecer a uniformidade dos fatos sociais... Pelo contrário, quem é propenso a um estudo lógico-experimental, exclusivamente, deve abster-se, com o maior cuidado, de usar os derivados, que para ele serão objeto de estudo e nunca um meio de argumentação(18). Ao referir-se desse modo aos homens e não às configurações concretas de sua socialização, Pareto volta a cair na velha posição, quase poderíamos dizer, no ponto de vista pré-sociológico, segundo a qual a teoria da ideologia é, em resumo, psicológica. Mantém-se apegado a uma concepção parcial, pela qual é necessário distinguir entre "o que um homem pensa e diz de si e o que ele realmente é e que faz", sem obedecer à exigência complementar dessa concepção e para a qual, "nas lutas históricas, é preciso distinguir ainda em maior grau a fraseologia dos partidos e o que sobre si mesmos presumem, sobre seus verdadeiros interesses, sua imaginação a respeito da realidade". De algum modo, Pareto repõe a investigação ideológica na esfera privada. Foi observado com razão que o conceito de derivados de Pareto está em estreita ligação com o conceito psicanalítico de racionalização, na forma inicialmente proposta por Ernest Jones e depois aceita por Freud: o homem tem... uma forte tendência para unir os desenvolvimentos lógicos com ações não-lógicas..."(19). O subjetivismo central de Pareto, que se relaciona com sua economia subjetiva, faz derivar a inverdade das ideologias pelo esforço realizado subseqüentemente pelos homens para fundamentar e justificar racionalmente os seus verdadeiros motivos, e não das condições sociais e dos contextos fantasiosos objetivamente pré-estabelecidos. Portanto, não se põe se quer o problema do elemento de verdade das ideologias, que só é psicologicamente perceptível em relação com condições objetivas: as ideologias esgotam-se, para Pareto, em sua função antropológica. É válida, pois, a formulação de Hans Barth, ao descrever em Verdade e Ideologia que, para Pareto, o mundo do espírito, enquanto queira ser algo mais do que um estudo das relações causais segundo o modelo mecanicista, não possuirá nem autonomia nem valor cognitivo(20). A aparente constituição da teoria da ideologia em ciência implica, por conseguinte, na renúncia da ciência ante o seu próprio objeto. Ao proibir-se o conhecimento da razão nas ideologias, implícito no conceito de necessidade histórica, à maneira de Hegel, Pareto também renunciou ao direito de julgar, em geral, em questões de ideologia – direito ao qual só a razão pode aspirar. Essa doutrina da ideologia presta-se muito bem, por sua vez, à ideologia dos Estados de poder totalitário. Quando todo o produto espiritual é subsomado, antecipadamente, numa finalidade de propaganda e autoritarismo, oferece-se ao cinismo uma boa consciência científica. São conhecidas as relações que existem entre algumas declarações de Mussolini e o tratado de Pareto. Entretanto, o liberalismo político tardio, cuja concepção da liberdade de opinião já tinha certas afinidades com o relativismo – qualquer pessoa pode pensar o que quiser, esteja ou não certo, visto que cada uma pensa, essencialmente, o que melhor lhe serve para progredir e permitir a sua afirmação – esse liberalismo, como dizíamos, não era certamente imune a tais perversões do conceito de ideologia. Isso confirma, inclusive, que o domínio totalitário não se opõe à humanidade de fora por obra de uns tantos desesperados nem é uma grande desgraça acidental na auto-estrada do progresso, o que ocorre, outrossim, é que no âmago da nossa cultura amadurecem forças destrutivas(21).
A ruptura da teoria da ideologia, em relação à teoria filosófica da sociedade, permite estabelecer uma aparência de ciência exata da ideologia que sacrifica, na verdade, o poder cognitivo desse conceito. Tal processo também se observa quando é a própria filosofia que, pelo contrário, absorve a concepção de uma ideologia, como aconteceu com Max Scheler. Ao invés de Pareto e da sua doutrina niveladora dos derivados, Scheler empenhou-se em construir uma espécie de tipologia, para não dizermos uma ontologia das ideologias. Hoje, menos de 30 anos decorridos a sua tentativa, que na época foi alvo de grande admiração, parece-nos espantosamente ingênua:
... exemplos destas espécies formais de classes de pensamentos são os seguintes...:
Concepções do devir – classe inferior; concepções do Ser – classe superior...
Realismo (o mundo, de preferência, como "domínio das idéias")...
Materialismo – classe inferior; espiritualismo – classe superior...
Otimismo no futuro e retrospecção pessimista – classe inferior; visão pessimista do futuro e otimista do passado – classe superior.
Concepção tendente a procurar contradições ou concepção "dialética" – classe inferior; concepção tendente à identidade – classe superior...
Trata-se, aqui, de tendências determinadas pela classe de uma espécie subconsciente, e que levam à compreensão do mundo de um modo ou de outro. Não são, portanto, preconceitos de classe, mas algo mais do que preconceitos, isto é, leis formais da constituição dos preconceitos, os quais, como leis formais das tendências predominantes para configurar certos preconceitos, fundamentam-se unicamente no status de classe – e totalmente independente da individualidade... No caso dessas leis serem inteiramente descobertas e entendidas em seu surgimento necessário da situação de classe, constituiriam uma nova disciplina teórica da sociologia do conhecimento, a que se poderia chamar, por analogia com a doutrina baconiana dos ídolos, uma teoria sociológica dos ídolos do pensamento, da instituição e dos valores...(22)
É claro que este esquema de classe superior e inferior de Scheler, que ele próprio considerou rudimentar demais, não chega a identificar a formação concreta da estratificação social nem da produção ideológica, e compartilha da posição filosófica, situada no pólo oposto, de Pareto, quanto à ausência de consciência histórica. A oposição dos pensamentos estático-ontológico e dinâmico-nominalista é pobre e carente de diferenciações internas. E não só isso: é equívoca quanto à própria estrutura da produção ideológica. O que Scheler designa como "ideologia da classe superior" caracteriza-se, hoje, pelo seu caráter de nominalismo extremo. A ordem estabelecida é defendida mediante a afirmação de que a sua crítica é uma elaboração conceitual arbitrariamente imposta às coisas desde cima, uma "metafísica", e que a investigação deve limitar-se aos dados não estruturados, aos opaque facts; esta apologética ultranominalista tem seu exemplo no próprio Pareto e no positivismo que hoje domina as ciências sociais, e seria difícil atribuir à classe inferior do esquema de Scheler uma manifestação com a mesma tendência. Pelo contrário, as mais importantes teorias que Scheler classificaria como ideológicas da classe inferior, têm se oposto nitidamente ao nominalismo. Elas partem da estrutura total e objetiva da sociedade e de um conceito objetivo da verdade em seu desenvolvimento, modelado pela concepção hegeliana. Quanto ao procedimento fenomenológico de Scheler, ao qual a filosofia queria se ajustar passivamente, renunciando à construção conceitual de supostas essências intuíveis, caiu em sua última fase numa espécie de positivismo de segundo grau, um positivismo que, em certa medida, poderíamos chamar espiritual. A renúncia do conceito a construir a coisa faz com que a própria coisa lhe escape.
Com Scheler e Mannheim, a doutrina da ideologia converteu-se no ramo acadêmico da sociologia do conhecimento. O nome é bastante significativo: todo o conhecimento, tanto o falso como o verdadeiro, o "conhecimento", em geral, deveria ter demonstrado aqui o seu condicionamento social. Mannheim considerava-se o criador do conceito total de ideologia(23); em sua principal obra, Ideologie und Utopie, lê-se o seguinte trecho: com a afirmação do conceito total de ideologia, em forma generalizada, entende-se que a simples teoria da ideologia dá lugar à sociologia do conhecimento... É claro que o conceito de ideologia adquiri, assim, um novo significado. Duas possibilidades apresentam-se então. A primeira possibilidade consiste em renunciar, doravante, a investigação ideológica, a toda a intenção de "encobrimento"... limitando-se a destacar, em cada caso, a correlação entre ser social e perspectiva social. A segunda possibilidade é a de voltar a vincular, subseqüentemente, essa visão ‘isenta de valores’ com uma visão gnosiológica. Isto... pode conduzir... a um relativismo ou a um relacionismo, em que uma forma não se confunde com a outra(24).
Na verdade, é difícil manter separadas essas duas possibilidades na aplicação do conceito total de ideologias que Mannheim quis propor. O segundo caminho, o do relativismo da teoria do conhecimento ou, em outras palavras mais nobres, o do relativismo gnosiológico, que Mannheim opôs ao primeiro, que é o do estudo isento de valores da relação entre ser social e perspectiva social, ou entre a infra-estrutura e a superestrutura, não se opõe, na verdade, ao outro, mas, em última instância, define a compreensão teórica de quem quer oferecer uma proteção de raciocínios metodológicos aos procedimentos da sociologia positivista do conhecimento. Com efeito, não escapou a Mannheim que a validade específica do conceito de ideologia reside em sua definição como pseudoconsciência. Mas, já perdido nesse conteúdo, só pode postulá-lo em termos formais, como afirmação de uma possibilidade gnosiológica. A negação determinada é, assim, substituída pelo caráter genérico da mundivisão e, depois, no particular, segundo o modelo da sociologia da religião de Max Weber, pela revelação de correlações empíricas entre sociedade e espírito. Com isto, a teoria da ideologia fica fragmentada, por um lado, num esquema completamente abstrato da totalidade, a que escapa a riqueza das articulações concretas e terminantes; e, por outro, numa acumulação de estudos monográficos. Entre esses dois elementos fica um vácuo em que se perde o problema dialético da ideologia, que é falsa consciência e, entretanto, não só falsa. A cortina que se interpõe, necessariamente, entre a sociedade e a compreensão social da sua natureza expressa, ao mesmo tempo, essa natureza, em virtude do seu caráter de cortina necessária. As ideologias verdadeiras e próprias convertem-se em pseudo-ideologias apenas na relação em que se situam a respeito da própria realidade. Elas podem ser verdadeiras "em si", como o são as idéias de liberdade, humanidade e justiça, mas não verdadeiras quando têm a presunção de já estarem realizadas. Assim, o rótulo de ideologia que se lhes pode apor, em virtude do conceito total de ideologia, documenta não tanto a possibilidade de conciliar a crítica com a falsa consciência, mas, sobretudo, a fúria contra tudo o que, mesmo na forma de reflexão ideal, e por mais impotente que se torne, exige a possibilidade de uma ordem melhor do que a existente. Foi corretamente observado que quem manifesta desprezo por tais conceitos chamados ideológicos refere-se, na maioria dos casos, ao objeto que quer significar e não ao abuso do símbolo conceitual.
Se a determinação e compreensão das realidades ideológicas pressupõem a construção teórica de uma ideologia, então, inversamente e em igual medida, a definição de ideologia depende do que efetivamente atua como produto ideológico. Mas ninguém pode fugir à experiência de uma transformação decisiva, que já se produziu no caso específico dos produtos espirituais. E se é lícito mencionar a Arte como o sismógrafo mais idôneo da História, não é possível duvidar do enfraquecimento ocorrido durante o período heróico da arte moderna, por volta de 1910, e que oferece um flagrante contraste com a época. Não é possível, sem renunciar a ver as coisas em seu contexto social, reduzir esse enfraquecimento, que não respeita outras áreas culturais, como a da filosofia, a uma certa debilidade das energias criadoras ou à nociva civilização técnica. Percebe-se melhor como uma espécie de deslocamento das camadas geológicas. Diante dos acontecimentos catastróficos que ocorrem nas estruturas profundas da sociedade, o mundo do espírito adquiriu um caráter efêmero, pálido, impotente. Diante da realidade concreta, não pode manter intacta e segura a sua veleidade e seriedade que, em compensação, era aceita como axiomática na cultura leiga do século XIX. O deslocamento geológico, que ocorre literalmente entre as camadas da infra-estrutura e da superestrutura, penetra no mais íntimo dos problemas da consciência e da criação espiritual, ainda os mais sutis e intrínsecos. Assim, paralisa as forças que não se poderá dizer que faltem completamente. Mas a criação que se recusa a refletir sobre esse processo e que segue o antigo caminho como se nada tivesse acontecido, está condenada à futilidade estéril. A doutrina da ideologia sempre serviu para recordar ao espírito a sua fragilidade, mas, hoje, ele deve estabelecer a sua capacidade autoconsciente diante desse aspecto que lhe é característico; e quase podemos dizer hoje que a consciência, já definida por Hegel como sendo, essencialmente, o momento da negatividade, só sobreviverá na medida em que assumir, em si mesma, o momento de crítica da ideologia. Só se pode falar sensatamente de ideologia quando um produto espiritual surge do processo social como algo autônomo, substancial e dotado de legitimidade. A sua inverdade é o preço dessa separação, em que o espírito pretende negar a sua própria base social. Mas até o seu momento de verdade está vinculado a essa autonomia, própria de uma consciência que é mais do que a simples marca deixada pelo que é e que trata de impregná-la. Hoje, a assinatura da ideologia caracteriza-se mais pela ausência dessa autonomia e não pela simulação de uma pretensa autonomia. Com a crise da sociedade burguesa, também o conceito tradicional de ideologia parece ter perdido o seu objeto. O mundo dos produtos espirituais desintegra-se, por um lado, na verdade crítica, que se despe do elemento de aparência, mas é esotérica e alheia às ligações sociais imediatamente aparentes e, por outro lado, na administração planejada do que, em dado momento, constitui a ideologia. Se esta herança da ideologia for entendida como totalidade dos produtos espirituais que hoje enchem, em grande parte, a consciência dos homens, então essa totalidade manifestar-se-á, sobretudo, como um conjunto de objetos confeccionados para atrair as massas em sua condição de consumidoras e, se é possível, para adaptar e fixar o seu estado de consciência e não tanto como espírito autônomo inconsciente das próprias implicações societárias. A falsa consciência de hoje, socialmente condicionada, já não é espírito objetivo, nem mesmo no sentido de uma cega e anônima cristalização, com base no processo social, pelo contrário, trata-se de algo cientificamente adaptado à sociedade. Essa adaptação realiza-se mediante os produtos da indústria cultural; como o cinema, as revistas, os jornais ilustrados, rádio, televisão, literatura de best-seller dos mais variados tipos, dentro do qual desempenham um papel especial as biografias romanceadas. É por demais evidente que os elementos de que se compõe essa ideologia intrinsecamente uniforme não são novos; muitas vezes encontram-se até imobilizados e petrificados. Isto relaciona-se, na verdade, com a distinção tradicional, cujos primórdios já se manifestavam na Antiguidade, entre a esfera cultural superior e inferior, sendo que esta última, entretanto, está racionalizada e integrada por resíduos deteriorados do espírito superior. Para a história dos esquemas da atual indústria cultural, é possível remontar, em particular, à literatura inglesa de vulgarização dos primeiros tempos, por volta de 1700. Já aí, encontram-se presentes, em sua maioria, os estereótipos que hoje nos agridem nas telas do cinema e da televisão. Mas a respeitável antigüidade de certos elementos componentes de um fenômeno qualitativamente novo é um agrupamento para não nos deixarmos dopar em sua consideração como fenômeno social e, ainda menos, na dedução que se pretende fazer de uma suposta necessidade básica que, dessa maneira, seria sempre satisfeita. O que conta não são, de fato, os elementos constitutivos, nem sequer a persistência das características primitivas na atual cultura de massa, através de extensas épocas de imaturidade da humanidade, mas o fato de que todos esses elementos e caracteres estão hoje subordinados, em seu conjunto, a uma direção orgânica que converteu o todo num sistema coeso.
Nenhuma fuga é tolerada, os homens estão cercados por todos os lados e as tendências regressivas, já postas em movimento pelo desenvolvimento da pressão social, são favorecidas pelas conquistas de uma psicologia social pervertida, ou, como corretamente se chamou essa prática, de uma psicanálise às avessas. A sociologia está saturada nessa esfera de instrumentos próprios da chamada communication research (pesquisa de comunicação)(25), o estudo dos meios de comunicação em massa, e dedica especial atenção às reações dos consumidores, assim como à estrutura das interações entre produtores e consumidores. Essas investigações, que não escondem a sua origem nas pesquisas de mercado, dão alguns frutos, sem dúvida. Entretanto, mais importante do que o simples fato de enfatizar a atividade dos meios de comunicação de massa terá a sua análise crítico-filosófica, tanto mais que o reconhecimento tácito concedido a essa atividade da investigação descritiva constitui também um elemento da ideologia(26).
O estudo concreto do conteúdo ideal da comunicação de massa é tanto mais urgente quando se pensa na inconcebível violência que os seus veículos exercem sobre o espírito dos homens, em conjunto, diga-se de passagem, com o esporte, que passou a integrar, nos últimos tempos, a ideologia, em seu mais amplo sentido. Temos aqui a produção sintética da identificação das massas com as normas e condições que regem anonimamente a indústria cultural ou que a propagam – ou com ambas. Qualquer voz discordante é objeto de censura e o adestramento para o conformismo estende-se até às manifestações psíquicas mais sutis. Nesse jogo, a indústria cultural consegue se apresentar como espírito objetivo, na mesma medida em que readquire, em cada vez maior grau, tendências antropológicas em seus clientes. Ao apegar-se a essas tendências, ao corroborá-las e proporciona-lhes uma confirmação, pode simultaneamente eliminar ou até condenar, de forma explícita, tudo o que rejeitar a subordinação. A rigidez inexperiente do mecanismo de pensamento que domina a sociedade de massa torna-se ainda mais inflexível, se isso é possível, e a própria ideologia impede que se desmascare o produto oferecido, em sua qualidade de objeto premeditado para fins de controle social, em virtude de um certeiro pseudorealismo que, sob o aspecto da exterioridade, proporciona uma imagem permanentemente exata e fiel da realidade empírica. Quanto mais os bens culturais assim elaborados forem proporcionalmente ajustados aos homens, tanto mais estes se convencem de ter encontrado neles o mundo que lhes é próprio. Vemos nas telas da televisão coisas que querem se parecer com as mais habituais e familiares e, entrementes, o contrabando de senhas, como a de que todo estrangeiro é suspeito ou de que o êxito e a carreira são as finalidades supremas da vida, já está dado por aceito e posto em prática, desembaraçadamente, para sempre. Para resumir numa só frase a tendência inata da ideologia da cultura de massa, seria necessário representá-la numa paródia da frase: "converte-te naquilo que és", como duplicação e super-ratificação da situação já existente, o que destruiria toda a perspectiva de transcendência e de crítica. O espírito socialmente atuante e eficaz limita-se, aqui, a pôr, uma vez mais, diante dos olhos dos homens, o que já constitui a condição da sua existência, ao mesmo tempo em que proclama o existente como sua própria norma, e, assim, confirma-os e consolida-os na crença, carente de verdadeira fé, em sua pura existência.
Da ideologia só resta o conhecimento do que subsiste, um conjunto de modelos de comportamentos adequados às condições vigentes. É pouco verossímil que, hoje em dia, as metafísicas mais eficazes só por causalidade sejam as que se referem à palavra "existência", pretendendo identificar a duplicação do mero existir com as mais elevadas determinações abstratas que é possível obter com esse mesmo sentido de existir. A essa duplicação corresponde, nos resultados, em grande parte, a situação existente na cabeça dos homens. Estes já não sofrem a situação – na qual, ante a possibilidade aberta de felicidade, faz-se sentir, dia após dia, a ameaça da catástrofe irremediável – de considerá-la a expressão de uma idéia, como poderia ser ainda a atitude adotada diante do sistema burguês dos Estados nacionais; hoje, o homem adapta-se às condições dadas em nome do realismo. Os indivíduos sentem-se, desde o começo, peças de um jogo e ficam tranqüilos. Mas, como a ideologia já não garante coisa alguma, salvo que as coisas são o que são, até a sua inverdade específica se reduz ao pobre axioma de que não poderiam ser diferentes do que são. Os homens adaptam-se a essa mentira, mas, ao mesmo tempo, enxergam através do seu manto. A celebração do poder e a irresistibilidade do mero existir são as condições que levam ao desencanto. A ideologia já não é mais um envoltório, mas a própria imagem ameaçadora do mundo. Não só pelas suas interligações com a propaganda, mas também pela sua própria configuração, converte-se em terror. Entretanto, precisamente porque a ideologia e a realidade correm uma para outra; porque a realidade dada, à falta de outra ideologia mais convincente, converte-se em ideologia de si mesma, bastaria ao espírito um pequeno esforço para se livrar do manto dessa aparência onipotente, quase sem sacrifício algum. Mas esse esforço parece ser o mais custoso de todos.
Notas de rodapé:
(1) EDUARD SPRANGER: Wesen und Wert Politischer Ideologien; em Vierteljalres Heft für Zeitgeschichte, Ano II, 1954, p. 119. (retornar ao texto)
(2) Cf. THEODOR W. ADORNO: Prismen, Frankfurt, 1955, p.24. (retornar ao texto)
(3) FRANCIS BACON: Novum Organum, em The Works of Francis Bacon, Londres, 1857, Vol.I, P.164, citado em Hans Barth: Wahrheit und Ideologie, Zurique, 1945, p.48. No trabalho de Barth, essa obra é considerada um dos principais documentos do desenvolvimento do conceito de ideologia. (retornar ao texto)
(4) Cf. THEODOR GEIGER: Kritische Bemerkungen zunm Begriffe der Ideologie, em Gegenwartsprobleme der Sociologie, edição organizada por Gottifried Eisermann, Potsdam, 1949, p.144 – o positivismo de Geiger impede-o de abordar o próprio problema da ideologia: "o enunciado de elementos alheios ao real, enunciado esse que não se refere nem limita para nada a uma realidade epistemológica. O modo e objeto do enunciado ideológico tornam-no inacessível à verificação ou confronto empíricos. Um enunciado errôneo pode ser isento de ideologia ... entretanto, é ideológico quando a análise permite comprovar em qualquer momento, isto é, por princípio, formular asserções documentáveis ou empiricamente refutáveis. Isto acontece ou porque o objeto do enunciado se situa além da realidade cognitiva (a transcende), ou então porque se enuncia, de um objeto real, algo que não pertence à propriedade que o determinou como objeto real" (Geiger: Ideologie und Wahrheit, Estugarda e Viena, 1953, p. 49 e seguintes). (retornar ao texto)
(5) CLAUDE ADRIEN HELVETIUS: De l’espirit; citado em tradução por Barth, op. Cit., p. 65. (retornar ao texto)
(6) HELVETIUS: De l´homme, citado em tradução por Barth, op. cit., p. 66. (retornar ao texto)
(7) PAUL HEINRICH DIETRICH VON HOLBACH: Sistème de la nature ou des lois du monde physique et du monde moral, citado em tradução por Barth. (retornar ao texto)
(8) HELVETIUS: De l’espirit, op. cit., p.62. (retornar ao texto)
(9) DESTUTT DE TRACY: Elements dídeologie, Bruxelas, 1826; cf. Barth, op. cit., p.15 e seguintes. (retornar ao texto)
(10) DESTUTT DE TRACY: op. cit., vol. 1, p. xii.(retornar ao texto)
(11) Cf. Barth: op. cit., p. 21. (retornar ao texto)
(12) Cf. ibid., op. cit., p.23. (retornar ao texto)
(13) Traduzido de Vilfredo Pareto: Traité de sociologie générale, Paris, 1933, vol. II, § 1793, p. 1127, nota. (retornar ao texto)
(14) Cf. o capítulo Preconceito do presente livro. (retornar ao texto)
(15) "Quando um enunciado é suspeito de ideologia, tratar-se-á de descobrir no caudal de suas premissas e condições o ponto em que o turvo regato de representações emotivas deságua nas claras águas da teoria. Na maioria dos casos não é preciso ir procurar muito longe mas, por vezes, o manancial donde brotou a falsa orientação é descoberto a grande distância ... Estudar as proposições ideológicas ou suspeitas de ideologismo, para descobrir a fonte ideológica e o mecanismo de falsa orientação, seria interessante e, possivelmente, proveitoso, desembocando numa classificação das ideologias. Mas ainda não se fez qualquer investigação deste tipo, global e sistemática, nem é possível realizá-la aqui. Ela exige a reunião prévia e a análise de muitas centenas, talvez milhares, de enunciados suspeitos de ideologismo. Podemos supor que os métodos da teoria do conhecimento seriam mais eficazes para isso do que os do sociólogo" (Geiger: Ideologie und Wahrheit, op. cit., p. 92 e seguintes). (retornar ao texto)
(16) MAX WEBER: Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, Tübingen, 1922, p. 520 e seguintes. (retornar ao texto)
(17) PARETO, op. cit., § 1413; cf. do mesmo: Allgemeine Soziologie, edição organizada por Carl Brinkmann, Tübingen, 1955, p. 161 e seguintes. (retornar ao texto)
(18) PARETO, Traité de sociologie générale, op. cit., vol. II, § 1403. (retornar ao texto)
(19) Op. cit., vol. 1, § 180. (retornar ao texto)
(20) Barth, op. cit., p.345. (retornar ao texto)
(21) Cf. para este ponto, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno: Dialetik der Aufklãrung, Amsterdã, 1947, p. 7 e seguintes, 22 e seguintes, 40 e seguintes, 45 e seguintes. (retornar ao texto)
(22) MAX SCHELER: Die Wissenformen um die Gesellschaft, Leipizig, 1926, p.204 e seguintes. (retornar ao texto)
(23) KARL MANNHEIM: Ideologie und Utopie, 3ª edição, Frankfurt, 1952, p.53. (retornar ao texto)
(24) Op. cit., p. 70 e seguintes – "Tem-se um conceito particular de ideologia quando por esta expressão se pretende assinalar apenas o próprio ceticismo sobre determinadas ‘idéias' ou ‘representações' do adversário. Então, são consideradas como falsificações mais ou menos deliberadas de uma situação real, cujo verdadeiro conhecimento estaria em contradição com os interesses daquele. Temos ainda toda uma escala de encobrimento, desde a mentira consciente até a falsificação instintiva e semi-inconsciente, desde o engano deliberado de terceiros até à auto-sugestão... A sua particularidade salta aos olhos assim que se lhe contrapõe o conceito radical e total de ideologia. Fala-se então da ideologia de uma época ou de um grupo histórico-social concreto – por exemplo, uma classe – para designar a estrutura total do conhecimento específico dessa época ou grupo... Ao passo que o conceito particular da ideologia indica somente como ideologia uma parte da concepção do adversário e somente se refere ao seu conteúdo; o conceito total de ideologia, por outro lado, estabelece a mundivisão total do opositor (incluindo o seu sistema categórico) e quer abranger tais categorias, partindo do sujeito coletivo em que participa" (op. cit., p. 53 e seguintes). (retornar ao texto)
(25) Cf. por exemplo, Bernard Berelson: Content Analysis in Communication Research, Glencoe, Illinois, 1952; Paul Lazarsfeld e Frank N. Stanton: Communications Research 1948-1949, Nova Iorque, 1949, Paul Lazarsfeld, Bernard Berelson e Hazel Gaudet: The people´s choice, Nova Iorque, 1948. (retornar ao texto)
(26) Cf. Kulturindustrie / Aufklärung als Massenbetrung, em Horkheimer e Adorno, op. cit., p. 144 e seguintes. (retornar ao texto)
Inclusão | 16/11/2018 |