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Primeira Edição: Entrevista concedida à revista alemã "Der Spiegel" (nº 19) em 1969, ano em que morreu.
Fonte: http://adorno.planetaclix.pt/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Senhor professor, há duas semanas o mundo ainda parecia em ordem...,
Não para mim.
... o senhor dizia que sua relação com os estudantes não havia sido afetada. Nas suas atividades de ensino haveria debates fecundos e objetivos, sem perturbações privadas. No entanto agora o senhor suspendeu as aulas.
Não as suspendi por todo o semestre, só temporariamente. Em algumas semanas pretendo retomá-las. É o que todos os colegas fazem quando há invasões de sala.
Houve violência contra o senhor?
Não violência física, mas fizeram tanto barulho que a aula se tornou impraticável. Isso claramente foi planejado.
O senhor sente-se incomodado apenas pela forma como agora o atacam os estudantes que antes o apoiavam ou também o incomodam os objetivos políticos? Afinal, antes havia concordância entre o senhor e os rebeldes.
Não é nessa dimensão que estão em jogo as divergências. Há dias declarei numa entrevista à televisão que, embora eu tivesse elaborado um modelo teórico, não poderia ter imaginado que as pessoas quisessem realizá-lo com bombas. Essa frase foi citada inúmeras vezes, mas necessita muito de interpretação.
Como o senhor a interpretaria hoje?
Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer condutas ou quaisquer ações. Sou um homem teórico, que sente o pensamento teórico como extraordinariamente próximo de suas intenções artísticas. Não foi agora que eu me afastei da prática, meu pensamento sempre esteve numa relação muito indireta com a prática. Talvez ele tenha tido efeitos práticos em consequência de alguns temas terem penetrado na consciência, mas nunca eu disse algo que se dirigisse diretamente a ações práticas. Desde que ocorreu em 1967 em Berlim um circo contra mim, determinados grupos de estudantes insistiram em forçar-me à solidariedade e exigiram ações práticas da minha parte. Isso eu recusei.
Mas a teoria crítica não quer deixar as condições tal como se encontram. Isso os estudantes esquerdistas aprenderam do senhor. Mas agora, senhor professor, dá-se a sua recusa da prática. É verdade, então, que o senhor cultiva uma "liturgia da crítica", como afirmou [Ralf] Dahrendorf [1929, sociólogo britânico de origem alemã pertencente à segunda geração da Escola de Frankfurt]?
Em Dahrendorf ressoa uma despreocupada convicção: a de que, se apenas melhorarmos as coisas aos poucos, talvez tudo venha a melhorar. Não posso reconhecer isso como premissa. Nas organizações estudantis de esquerda, contudo, defronto-me sempre com a exigência de entregar-se, de ir junto, e a isso eu venho resistindo desde muito jovem. E nisso nada se modificou em mim. Tento exprimir aquilo que reconheço e sinto. Mas não posso acomodá-lo ao que se fará disso e ao que disso resultará.
Ciência como torre de marfim, portanto?
Não tenho temor algum da expressão torre de marfim. Essa expressão já teve dias melhores, quando Baudelaire a empregou. Contudo, já que o senhor fala de torre de marfim: creio que uma teoria é muito mais capaz de ter consequências práticas em virtude da sua própria objetividade do que quando se submete de antemão à prática. O relacionamento infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que a teoria se vê submetida a uma pré-censura prática. Tenta-se, por exemplo, proibir-me de exprimir coisas simples, que mostram o caráter ilusório de muitas propostas de determinados estudantes.
Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abominável"
Mas é bem claro que esses estudantes têm muitos seguidores.
Sempre volta a ocorrer que um pequeno grupo seja capaz de exercer obrigações de lealdade às quais a grande maioria dos estudantes de esquerda não conseguem se furtar. No entanto quero repetir: eles não podem invocar modelos de ação que eu lhes tivesse dado para depois me distanciar deles. Não faz sentido falar desses modelos.
Seja como for, ocorre que os estudantes se referem, às vezes direta e outras vezes indiretamente, à sua crítica da sociedade. Sem as suas teorias talvez nem tivesse surgido o movimento de protesto estudantil.
Isso eu não quero negar; apesar disso, tenho dificuldade para captar essa relação. Estou disposto a acreditar que a crítica à manipulação da opinião pública, que vejo como inteiramente legítima também na forma de demonstrações, não teria sido possível sem o capítulo sobre "indústria cultural" que Horkheimer e eu publicamos na "Dialética do Esclarecimento". Mas acredito que muitas vezes a relação entre teoria e prática é representada de modo demasiado sumário. Quando se ensinou e publicou durante 20 anos como eu, com essa intensidade, isso acaba mesmo passando para a consciência geral.
E assim também para a prática, não?
Pode ocorrer -mas não necessariamente. Nos nossos trabalhos o valor das chamadas ações isoladas fica extremamente limitado pela ênfase na totalidade social.
Mas como o senhor quer modificar a totalidade social sem ações isoladas?
Essa pergunta me ultrapassa. Diante da questão "que fazer" eu na realidade só consigo responder, na maioria dos casos, "não sei". Só posso tentar analisar de modo intransigente aquilo que é. Nisso me censuram: já que você exerce a crítica, então é também sua obrigação dizer como se deve fazer melhor as coisas. Mas é precisamente isso que eu considero um preconceito burguês. Verificou-se inúmeras vezes na história que precisamente obras que perseguiam propósitos puramente teóricos tenham modificado a consciência e, com isso, também a realidade social.
Nos seus trabalhos o senhor distinguiu entre a teoria crítica e quaisquer outras teorias. Ela não deve se ater à mera descrição empírica da realidade, mas especificamente introduzir na reflexão a ordenação correta da sociedade.
Nesse ponto tratava-se da crítica ao positivismo. Preste atenção no que eu disse: introduzir na reflexão. Veja que nessa sentença nada me permite atrever-me a dizer como então se agirá.
Mas uma vez o senhor afirmou que a teoria crítica quer "erguer a pedra sob a qual incuba o monstro". Se agora os estudantes jogam essa pedra, isso é tão incompreensível?
Incompreensível certamente não é. Creio que o ativismo basicamente se deve ao desespero, porque as pessoas sentem quão pouca força têm para modificar a sociedade. Mas estou igualmente convencido de que essas ações isoladas estão condenadas ao fracasso, como se viu na revolta de maio [de 68] na França.
Se então não há sentido nas ações isoladas, ficaremos apenas com a "impotência crítica", da qual a organização estudantil de esquerda (SDS) o acusa?
O poeta Grabbe tem uma sentença: "Pois nada senão o desespero pode salvar-nos". Isso é provocador, mas nada tem de tolo. Não vejo como condenar que se seja desesperançado, pessimista, negativo no mundo em que vivemos. Mais limitados serão aqueles que se aferram compulsivamente ao otimismo do oba-oba da ação direta, para obter alívio psicológico.
Seu colega Jürgen Habermas, que também é um defensor da teoria crítica, acaba de conceder, em um artigo, que os estudantes manifestaram "senso de provocação com muita fantasia" e que conseguiram de fato mudar alguma coisa.
Nisso eu concordaria com Habermas. Creio que a reforma universitária, da qual ainda não sabemos no que vai dar, nem sequer teria sido iniciada sem os estudantes. Creio que a atenção generalizada aos processos de emburrecimento que dominam a sociedade contemporânea jamais teria ganho forma sem o movimento estudantil. E também acredito, para citar algo bem concreto, que foi somente em consequência da investigação sobre a morte do estudante Benno Ohnesorg [em 1967, na repressão a uma manifestação contra o ditador persa, o xá Reza Pahlevi] que essa história macabra veio a atingir a consciência pública. Com isso quero dizer que em absoluto não me fecho a consequências práticas, quando são transparentes para mim.
E quando foram transparentes para o senhor?
Participei de manifestações contra as leis de emergência e, no caso da reforma da legislação penal, fiz o que podia. Mas é muito diferente se faço coisas desse tipo ou se participo de uma prática realmente um tanto insana e jogo pedras contra institutos universitários.
Como o senhor avaliaria se uma ação faz sentido ou não?
Em primeiro lugar, a decisão depende em grande medida da situação concreta. Depois, tenho as mais graves reservas contra qualquer uso da violência. Eu teria que renegar toda a minha vida -a experiência sob Hitler e o que observei no stalinismo- se não me recusasse a participar do eterno círculo da violência contra a violência. Só posso conceber uma prática transformadora dotada de sentido como uma prática não-violenta.
Também sob uma ditadura fascista?
Certamente haverá situações em que isso se apresente de outro modo. A um fascismo real só se pode reagir com violência. Nisso não sou de modo algum rígido. No entanto me nego a seguir aqueles que, após o assassinato de incontáveis milhões nos Estados totalitários, ainda preconizem a violência. É nesse limiar que se dá a separação decisiva.
Foi superado esse limiar quando os estudantes tentaram impedir, mediante ações de "sit-in", a distribuição de jornais da cadeia [conservadora] Springer?
Esse tipo de manifestação eu considero legítimo.
Foi superado esse limiar quando estudantes perturbaram a sua aula com barulho e exibições sexuais?
Justo comigo, que sempre me voltei contra toda sorte de repressão erótica e contra tabus sexuais! Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abominável. O efeito hilariante que se consegue com isso no fundo não passava da reação do burguesão, com seu riso néscio quando vê uma garota com os seios nus. Naturalmente essa imbecilidade era calculada.
Será que esse ato insólito pretendia confundir as suas teorias?
Parece-me que nessas ações contra mim importa menos o conteúdo das minhas aulas; tudo indica que para a ala extrema é mais importante a publicidade. Essa ala sofre do medo de cair no esquecimento. Com isso se torna escrava da sua própria publicidade. Uma aula como a minha, que conta com uma presença de cerca de mil pessoas, evidentemente é um cenário maravilhoso para a propaganda ativista.
Pode também esse ato ser interpretado como ação da desesperança? Talvez esses estudantes se sentissem abandonados por uma teoria da qual pelo menos acreditavam que pudesse se converter em prática modificadora da sociedade?
Os estudantes nem tentaram discutir comigo. O que tanto dificulta meu relacionamento com os estudantes hoje é a primazia da tática. Meus amigos e eu temos a sensação de não passarmos de objetos em planos bem calculados. A idéia do direito das minorias, que afinal é constitutivo da liberdade, não desempenha mais papel algum. As pessoas recusam-se a enxergar a objetividade da coisa.
E diante desses constrangimentos o senhor abre mão de uma estratégia defensiva?
Meu interesse dirige-se cada vez mais à teoria filosófica. Se eu desse conselhos práticos, como em certa medida fez Herbert Marcuse, isso seria feito à custa da minha produtividade. Pode-se dizer muito contra a divisão do trabalho, mas já Marx, que na sua juventude a atacou com a maior veemência, reconheceu mais tarde que sem ela não seria possível.
Então o sr. se decidiu pela parte teórica, para os outros fica a parte prática; e o senhor já está empenhado nisso. Não seria melhor que a teoria refletisse simultaneamente a prática? E com isso também as ações presentes?
Há situações em que eu faria isso. No momento, contudo, parece-me muito mais importante começar a refletir sobre a anatomia do ativismo.
De novo para a teoria, portanto?
No momento eu atribuo à teoria uma posição superior. Já toquei -sobretudo na "Dialética Negativa"- nessas questões muito antes de ocorrer esse conflito.
Na "Dialética Negativa" encontramos a constatação resignada: "A filosofia, que já parecera superada, mantém-se em vida porque o instante da sua realização foi perdido". Uma filosofia como essa -externa a todos os conflitos- não se converte em "preciosismo"? Uma pergunta que o senhor mesmo se propôs.
Continuo a pensar que é justamente sob os constrangimentos práticos de um mundo funcionalmente pragmatizado que devemos manter a teoria. E também não é pelos eventos recentes que serei levado a me desviar do que escrevi.
Até agora, como formulou seu amigo Habermas, a sua dialética abandonou-se nos "pontos mais negros" da resignação à "esteira destrutiva da pulsão da morte".
Eu preferiria dizer que é o apego compulsivo ao positivo que provém da pulsão da morte.
Seria então a virtude da filosofia encarar de frente o negativo, mas não invertê-lo?
A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou mudanças imediatas. Ela muda precisamente à medida que permanece teoria. Penso que seria o caso de perguntar se, quando alguém pensa e escreve as coisas como eu faço, se isso não é também uma forma de opor-se. Não será também a teoria uma forma genuína da prática?
Não haverá situações, como por exemplo na Grécia [então sob ditadura militar], em que o senhor, para além da reflexão crítica, apoiaria ações?
É evidente que na Grécia eu admitiria toda sorte de ações. Lá reina uma situação totalmente diferente. Mas ficar em lugar seguro, recomendando aos outros que façam revolução, tem algo de tão ridículo que chega a ser constrangedor.
O senhor continua a ver, portanto, como a forma mais significativa e necessária da sua atividade na República Federal Alemã fazer progredir a análise das condições da sociedade?
Sim, e mergulhar em fenômenos singulares muito determinados. Não me envergonho de tornar público que estou trabalhando em um grande livro de estética.
Inclusão | 16/11/2018 |