Revendo o Surrealismo

Theodor Adorno

1956


Primeira Edição: Texto original em alemão publicado em 1956. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. Noten zur Literatur: 101-5

Fonte: http://planeta.clix.pt/adorno/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


A teoria amplamente difundida do surrealismo, como colocada nos Manifestos de Breton e também como dominante nos manuais de introdução, o relaciona com o sonho, o inconsciente, talvez até com os arquétipos de Jung, que, nas colagens e na escrita automática, teriam encontrado sua linguagem constituída de imagens e enfim liberta de relação com o "eu" consciente. Por essa teoria, os sonhos manipulariam os elementos do real à semelhança dos procedimentos surrealistas. No entanto, se entendemos que a arte jamais tenha que se compreender? e se somos levados a considerar que a autocompreensão da arte e seu valor sejam coisas incompatíveis? então não se faz necessário aceitarmos esta visão programática defendida pelos comentadores. O que há de fatal na interpretação da arte, e aliás até naquelas com responsabilidade filosófica, é que no processo de conceitualização esta se vê forçada a explicar o estranho e o surpreendente em termos do que já é familiar e, portanto, a excluir a única coisa que realmente haveria a explicar: se as obras de arte demandam explicação, acabam todas, mesmo contra suas intenções, por cometerem um ato de traição, que as leva ao conformismo. Se, na verdade, o surrealismo fosse apenas uma coleção de ilustrações literárias e gráficas de Jung, e até de Freud, só duplicaria, de maneira supérflua e com a pretensão de disfarce por metáforas, o que a teoria em si já diz. Seria, também, tão inócuo que não haveria mais lugar para o escândalo , que é sua intenção e seu elemento vital. Colocá-lo no mesmo plano que a teoria psicológica dos sonhos é dar-lhe um humilhante carimbo oficial. O refrão "trata-se da figura paterna" provoca a resposta auto-satisfeita "Sim, nós já sabemos"; e, como Cocteau bem compreendeu, se algo não passa de sonho não causará grandes danos à realidade, por mais danificada que sua imagem já esteja.

Mas esta teoria não faz justiça ao tema. Não é assim que as pessoas sonham, ninguém sonha desse jeito. As criações surrealistas não passam de análogas aos sonhos ao suspenderem a lógica habitual e as regras da existência empírica, mas, ao fazê-lo, respeitam os objetos que foram retirados à força de seus contextos e que trazem seus conteúdos, em especial seus conteúdos humanos, mais próximos das formas desses objetos. Esses conteúdos destroem-se, reorganizam-se, mas não se suprimem. O sonho, com certeza, não procede de modo diferente, mas nele o objeto aparece de forma incomparavelmente mais velada e não se apresenta tão investido de realidade como no surrealismo, no qual a arte abala profundamente a arte. O sujeito, que no surrealismo age muito mais aberta e livremente do que nos sonhos, dirige sua energia para sua auto-aniquilação, energia que no sonho absolutamente não é exigida; mas, por tudo isso, torna-se mais objetivo, por assim dizer, do que no sonho, onde o sujeito, ausente desde o início, fica nos bastidores para colorir e permear tudo que acontece. Os surrealistas chegaram também à descoberta de que as pessoas, mesmo na situação psicanalítica, não associam o conteúdo como eles ao fazerem poesia. Além disso, nem a espontaneidade das associações psicanalíticas é, na verdade, espontânea. Todo analista sabe o que lhe custa de esforço e cansaço, de força de vontade, para dominar a expressão involuntária já na situação psicanalítica, o que não dizer então da situação artística dos surrealistas. Não é o inconsciente em-si que se atualiza no mundo em ruínas dos surrealistas. Se julgássemos essa pretensão, os símbolos se revelariam bem racionais. Esse tipo de decodificação reduziria a luxuriante multiplicidade do surrealismo a padrões bem insuficientes, como o complexo de Édipo, sem conseguir dar conta da força que emana se não de todas as obras do surrealismo, pelo menos de sua idéia. Esta, aliás, parece ter sido a reação de Freud a propósito de Dali.

Os choques do surrealismo perderam sua virulência após a catástrofe européia,. É como se tivessem salvado Paris ao predispô-la ao medo: a destruição da cidade sempre lhe foi central. Conceituar o surrealismo nesse sentido não é remontar à psicologia, mas as seus próprios procedimentos artísticos. Sem dúvida, são esquematizados pela montagem. Seria fácil mostrar que até a própria pintura surrealista opera com seus motivos e que a justaposição descontínua de imagens na poesia lírica surrealista tem o caráter de montagem. Tais imagens, sabemos, provêm, em parte literalmente e em parte espiritualmente, de ilustrações do final do século XIX, como reconheceriam os pais da geração de Max Ernst. Desde os anos vinte, houve, fora do campo surrealista, coleções de imagens desse tipo, como Our Fathers , de Alan Bott, que participaram? de maneira parasitaria? do choque surrealista e, ao assim faz?-lo, como um tipo de delicadeza, pouparam o público da tensão causada pela estranheza da montagem. Mas a prática propriamente surrealista misturou a esses elementos outros elementos insólitos. São estes, aliás, que, pela surpresa, deram este jeito familiar, este aspecto de "Onde será que já vi isto antes? ". Portanto, não é de se pensar que a afinidade com a psicanálise esteja num simbolismo do inconsciente, mas na tentativa de revelar as lembranças da infância de maneira súbita e explosiva. O que o surrealismo acrescenta às ilustrações do mundo dos objetos é aquele algo da infância que perdemos; estas ilustrações já antiquadas naquele tempo nos impressionaram tanto como hoje as imagens surrealistas. O aspecto subjetivo disto está no ato da montagem, que tenta? talvez em vão, mas com propósito inegável? produzir percepções semelhantes às que devem ter existido outrora. O ovo gigante, do qual, a qualquer momento, pode saltar o monstro do Julgamento Final, é tão grande porque nós éramos pequenos demais no dia em que pela primeira vez trememos diante de um ovo.

É o obsoleto que dá este efeito. Na modernidade há algo de paradoxal, pois, mesmo sob o fetiche do sempre igual que lhe é imposto pela produção em massa, ainda conserva a história. Este paradoxo a aliena e nas "Figuras para as Crianças dos Tempos Modernos" torna-se a expressão de uma subjetividade que se alienou de si mesma e do mundo. A tensão do surrealismo descarregada no choque é a mesma que existe entre a esquizofrenia e a reificação; não se trata, portanto, de tensão por motivação psicológica. O sujeito que se dispõe livremente de si mesmo, que se torna absoluto e sem obrigação de dar conta do mundo empírico, denuncia-se, diante da alienação total, como sendo si mesmo mas destituído de alma, alguém virtualmente morto. As imagens dialéticas do surrealismo são imagens de uma dialética da liberdade subjetiva num estado de não-liberdade objetiva. Nessas imagens o Weltschmerz(1) da Europa torna-se em pedra, à semelhança de Níobe(2) ao ter os filhos mortos; nelas a sociedade burguesa abandona toda esperança de sobreviver. Dificilmente algum surrealista terá conhecido a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, mas ali se encontra uma frase que deve ser relacionada à tese mais geral de que a história é o progresso da consciência da liberdade e que pode dar conta do conteúdo surrealista: "A única obra, o único ato de liberdade universal é, então, a morte, uma morte que carece de dimensão e de realização interiores". O surrealismo assumiu essa crítica, isso explica, em política, sua oposição impulsiva ao anarquismo, o que, no entanto, é incompatível com sua substância. Tem se afirmado desta frase de Hegel que o Aufklärung(3) se anula ao se realizar; é a este preço? não como uma linguagem da imediaticidade mas como testemunho da regressão da liberdade abstrata na supremacia das coisas e, assim, à mera natureza? que se poderá compreender o surrealismo. As montagens são as verdadeiras naturezas mortas. Ao recomporem o obsoleto, criam natureza morta.

Essas imagens são menos algo que vem do íntimo do que fetiches? fetiches da mercadoria? em que, outrora, se fixava o subjetivo, a libido.? por meio desses fetiches, e não da introspecção que fazem ressurgir a infância. Os modelos do surrealismo poderiam ser a pornografia. O que se passa com as colagens, o que está convulsivamente suspenso nelas como as contrações tensas de gozo em torno da boca, assemelha-se às alterações que atingem uma representação pornográfica no momento de lascívia do voyeur. Bustos cortados, pernas com meias de seda em manequins nas colagens? eis as marcas da lembrança dos objetos destas tensões parciais que despertam a libido. O esquecido aí se revela à maneira de uma coisa, morto, como aquilo que o amor desejava, como algo a que desejava se assemelhar, a que nós nos assemelhamos. O surrealismo aproxima-se em fotografia porque é um despertar súbito de um estado de petrificação. O que toma são imagens; não invariantes, sujeitos sem consciência e sem história, a que poderiam ser neutralizados pela visão convencional, mas imagines históricas em que o sujeito, no que tem de mais íntimo, toma consciência de si como exterioridade, como imitação de uma realidade socio-histórica. "Vamos, Joe, toque aquelas músicas dos bons tempos"(4).

Nisso, no entanto, o surrealismo torna-se complemento da Sachlichkeit, que surgiu na mesma época. O horror que este sente pelo "crime do ornamento", nas palavras de Adolf Loos, é mobilizado pelos choques surrealistas. A casa tem um tumor: sua sacada. É esta que o surrealismo vai pintar: cresce uma excrescência de carne saindo da casa. As imagens infantis da modernidade são a verdadeira incarnação do que a Sachlichkeit dissimula por trás de um tabu, porque isso a faz lembrar que sua própria essência provém das coisas e de sua incapacidade de lidar com o fato de que sua racionalidade é irracional. O surrealismo recolhe o que a objetividade nega aos homens; a distorção atesta o que a proibição fez ao objeto do desejo. Por tal distorção, o surrealismo permite salvar o obsoleto, um album de idiossincracias, em que o sentimento de justiça e de felicidade que os homens se negam em seu próprio mundo tecnificado acaba por esvair-se em fumaça. Mas se hoje o próprio surrealismo parece obsoleto, isto ocorre porque os homens já se recusam esta consciência negativa que era fixada no negativo fotográfico que é o surrealismo.


Notas de rodapé:

(1) A dor do mundo, expressão indicativa do que os franceses chamaram de "mal de siècle" no período romântico. (retornar ao texto)

(2) Filha de Tântalo e mulher do rei de Tebas, Anfion. Por ter sete filhos e sete filhas escarneceu de Latona, mãe de apenas dois filhos: Apolo e Diana. Estes, em vingança, mataram todos os filhos de Níobe, que infeliz converteu-se num rochedo e tornou-se símbolo do amor materno. (Nota do tradutor) (retornar ao texto)

(3) O Iluminismo. (retornar ao texto)

(4) "Geh, Joe, mach die Musik von damals nach"? Verso da Bilbao-Song, de Brecht e Kurt Weil na pe?a Happy End. (retornar ao texto)

Inclusão 21/11/2018