MIA: História: História soviética: 100º aniversário da Revolução Russa: De Fevereiro a Outubro
No seu livro Inside the Russian Revolution, Rheta Childe Dorr descreveu a sua primeira impressão na Rússia:
“A primeira coisa que eu vi na manhã em que cheguei a Petrogrado (…) foi um grupo de jovens rapazes, mais ou menos vinte, a marchar pela rua em frente ao meu hotel, carregando uma bandeira escarlate com uma inscrição em grandes letras brancas.
‘O que diz a bandeira?’, perguntei ao comissário do hotel que estava ao meu lado.
‘Diz ‘Todo poder ao Soviete’’, foi a resposta.
‘O que é ‘o soviete?’’, perguntei, e ele respondeu sucintamente:
‘É o único governo que temos na Rússia neste momento’”.
A julgar por esta passagem, a maioria de nós poderia assumir que Dorr desembarcou na Rússia após a Revolução de Outubro, já que só então os sovietes derrubaram o governo provisório. No entanto, Dorr chegou à Rússia no fim de maio de 1917 e deixou o país no final de agosto. O seu livro foi impresso antes da Revolução de Outubro e, por isso, oferece um olhar inestimável do que acontecia em 1917, livre da retrospetiva.
O relato de Dorr revela um facto essencial: “Os sovietes, ou conselhos de delegados dos soldados e operários, que se propagaram como fogo pelo país, são a coisa mais próxima de um governo que a Rússia conheceu desde os primeiríssimos dias da revolução”. Apesar de socialista, Dorr era fervorosamente comprometida com a guerra contra a Alemanha e, por isso, fortemente hostil ao que via como um regime de uma multidão tirânica. Ela considerava que o governo do soviete não era melhor e, em certos aspetos, era até pior, que o dos czares. No que diz respeito à censura da imprensa, por exemplo: “Mesmo se [o viajante norte-americano médio] pudesse ler todos os jornais diários, não seria capaz de obter muitas informações. A censura à imprensa, hoje, é rígida e tirânica como no auge da autocracia, só que agora é suprimido um tipo diferente de notícia”. Para oferecer aos seus leitores norte-americanos uma ideia da “obsessão pelo comité” que se difundiu na Rússia, ela usou esta analogia:
“Tentem imaginar como seria em Washington, digamos, no escritório do secretário do tesouro, se um comité da Federação Americana do Trabalho (AFL) entrasse e dissesse: ‘Viemos controlá-lo. Escrever os seus livros e todos os seus documentos confidenciais’. É o que acontece com os ministros na Rússia, e vai continuar a ser assim até que consigam formar um governo que responda apenas ao eleitorado, e não seja um escravo do Conselho de Delegados dos Operários e Soldados”.
O relato de Dorr é unilateral: o poder soviético foi fortemente contestado durante todo o ano de 1917 e o Governo Provisório possuía uma agenda ambiciosa. Apesar disso, ela relata realidades que não surpreendem a maioria dos historiadores mas que iluminam de maneira inesperada o slogan “Todo poder aos sovietes!”. Vale a pena explorar esta nova perspectiva, primeiro demonstrando a continuidade entre Fevereiro e Outubro, em seguida, questionando o tipo de revolução em curso e, finalmente, lançando o olhar sobre a liderança dos Bolcheviques e de Lenine em particular.
“Todo o poder aos sovietes” é um dos mais famosos slogans na história das revoluções. Ele está ao lado de “Igualdade, liberdade, fraternidade”, como símbolo de toda uma época revolucionária. É composto por três palavras: “вся власть советам” ou “ vsya vlast’ sovetam.” “ Vsya” = “todo,” “ vlast’” = “poder,” e “ sovetam” = “aos sovietes”. A palavra russa “sovet” significa simplesmente “aconselhamento” e, daí, “conselho”.
Outra palavra russa, “ vlast”, apresenta um desafio maior. “Poder” não é uma tradução totalmente adequada por muitos motivos. Vlast possui uma referência mais específica que a palavra “power” em inglês [ou “poder” em português] e significa autoridade soberana num determinado país. Para possuir o vlast, é preciso possuir o direito à decisão final, ser capaz de tomar decisões e de verificar se estas são concretizadas. Com frequência, em inglês, numa tentativa de captar estas nuances vlast é traduzida como “the power” [o poder]. Neste artigo, usarei “poder” e vlast alternadamente.
Faz parte do senso comum a respeito de 1917 o contraste entre “Fevereiro” e “Outubro”. Ao público letrado é dada uma versão liberal deste contraste: Fevereiro é a revolução boa, da liberdade política e da democracia, e Outubro a má, a revolução ilegítima, da tirania e da utopia extremista. É comum encontrar nas organizações de esquerda um contraste similar onde o sinal é invertido: “revolução democrático-burguesa” versus “revolução socialista”.
A forte continuidade entre Fevereiro e Outubro é negligenciada. Desde o seu início, em fevereiro, o levante de 1917 deveria ser visto como uma revolução democrática antiburguesa. O poder do soviete foi proclamado em Fevereiro – o papel de Outubro foi confirmar que este não deixaria a cena pacificamente.
A força básica por trás deste novo poder ou autoridade soberana – a base eleitoral do soviete – era o povo, o narod, os operários, soldados, camponeses, a multidão; em oposição às elites, os tsenzoviki (o “povo censitário”, as classes proprietárias), a sociedade educada. O objetivo central da revolução do soviete era levar adiante um programa vasto de reformas logo conhecidas por “revolução democrática” – antes de mais nada, terra aos camponeses e liquidação dos pomeshchiki (nobres proprietários rurais) como classe, além do fim da guerra mortífera e inútil.
Ao mesmo tempo, a revolução foi intensamente antiburguesa, ainda que este sentimento não tenha sido traduzido numa reivindicação programática pela instalação do socialismo no curto ou médio prazo. O facto surpreendente não é a base social da revolução nem os seus valores antiburgueses, mas a criação praticamente simultânea, depois da queda do czar, de um candidato viável à autoridade soberana no território, apoiado numa ampla base eleitoral popular.
Em fevereiro, a longa dinastia Romanov – comummente chamada “o vlast histórico” – foi dissolvida, deixando a Rússia essencialmente sem um vlast capaz de funcionar, ou seja, sem uma autoridade soberana geral reconhecida. As linhas de força fundamentais ao longo de todo o ano estabeleceram-se quase imediatamente durante os acontecimentos revolucionários de 27 de fevereiro de 1917. Neste dia:
Assim, o Soviete de Petrogrado assumiu o papel de fonte suprema do vlast, a autoridade soberana – ainda que neste estágio fosse prudente não assumir este nome. O soviete era a representação eleita de operários e soldados: uma diferença essencial em relação à sua encarnação em 1905. Dois momentos foram marcantes nesta imposição de autoridade. Primeiro, o Governo Provisório foi forçado a comprometer-se com questões-chave do programa do Soviete para alcançar legitimidade elementar e, na verdade, para existir. Segundo, a Ordem Número Um permitiu ao soviete (quase sem querer) alcançar um atributo essencial de qualquer vlast, nomeadamente, controlo sobre os meios últimos de coerção, o exército. Estes dois factos – compromisso do governo em levar adiante aspectos fundamentais do programa do soviete e a lealdade última das forças armadas ao soviete e não ao Governo Provisório – determinaram o curso da política para todo o resto do ano.
Na superfície, as vicissitudes do poder do soviete ao longo de de 1917 encontraram expressão numa série de crises políticas democráticas. Por baixo, tinha lugar um processo mais molecular, que revestia o soviete de atributos essenciais de um genuíno vlast. Vejamos mais de perto este processo.
De acordo com alguns observadores bolcheviques da época, em fevereiro, o soviete era um “ vlast embrionário”. Esta é uma excelente metáfora que leva à seguinte questão: o que seria preciso para que este se erguesse em toda a sua força, como um vlast independente, capaz de se defender sozinho? Um vlast efetivo precisaria pelo menos de:
Estas são características-chave de um vlast atuante. O vlast soviético embrionário estabelecido em fevereiro começou com algumas destas características de maneira virtual, e então estas e as outras características progressivamente adquiriram mais substância, primeiro em 1917 e, em seguida, durante a guerra civil. Por exemplo, o soviete ganhou uma forma institucional nacional através de uma conferência de “Toda a Rússia”, realizada no final de março, e dos dois congressos dos sovietes (em junho e outubro). Em contraste, o Governo Provisório perdeu progressivamente estas mesmas características fundamentais que tinha no início, e passou a ser mais e mais espectral. No outono de 1917, o Governo Provisório já tinha perdido, inclusive, o apoio dos líderes moderados do soviete e era não mais que um vlast fantasma.
Olhemos agora para a série de crises políticas não resolvidas que marcaram as relações dos sovietes e dos reformadores das elites no Governo Provisório. A luta política em 1917 era conduzida no âmbito de uma Constituição não-escrita que estabelecia que a maioria do soviete tem a palavra final em matéria de programa e pessoal. Desde o início, Alexander Kerensky foi inserido no governo como um representante do soviete. Por esta e outras razões, o contraste frequentemente feito entre o período inicial de “poder dual” e um período posterior de coligação não é essencial.
No início de maio, o Governo Provisório propunha mas o soviete dispunha – aceitou o pedido do governo para enviar mais representantes para a sua composição. Independente de quantos representantes individuais os sovietes enviaram para o governo, a verdade é que nenhuma iniciativa política importante foi levada a cabo contra a vontade explícita da maioria do soviete. Assim, todas as diversas crises políticas emergentes ao longo do ano foram resolvidas quando a autoridade do soviete deu a conhecer a sua decisão, já que este detinha o controlo decisivo da força coerciva. Isto era verdade em março, abril, julho e agosto, assim como em outubro.
Claro que o poder soviético foi fortemente contestado desde o início: a contrarrevolução também teve a sua origem em fevereiro. A origem do conflito deu-se sobre o que era chamado na época de krizis vlasti, a crise do poder. O problema era normalmente enquadrado da seguinte maneira: dvoevlastie, poder dual, soberania dual, é uma contradição em termos – se os recursos se dividem entre aqui e lá, então quem toma a decisão final, aquela que realmente conta? Neste sentido, “poder dual” é equivalente a “múltiplos poderes” que é equivalente a nenhum vlast: uma receita para disfunção governamental. A Rússia precisava de um vlast indiscutível, reconhecido e obstinado ( tverdaia ).
Nesta altura, as opiniões começavam a divergir. O partido liberal dos Cadetes, o primeiro a levantar esta linha de raciocínio, declarou que os sovietes deveriam sair de cena. Os Bolcheviques, que rapidamente se apropriaram deste argumento para os seus próprios propósitos, declararam que, de agora em diante, todo o poder deveria concentrar-se nos sovietes!
A questão existencial com a qual a base eleitoral do soviete se defrontava era: poderia o programa do soviete ser realizado por meio da aliança de boa fé com os reformadores das elites – ou a distância entre elites e narod [povo] em questões fundamentais como a guerra, a questão agrária e a regulação económica, era demasiado grande para ser mitigada? Os Bolcheviques rotularam a tentativa desta parceria interclasses de soglashatelstvo – um termo muitas vezes erroneamente traduzido como “conciliação”, mas que que pode ser traduzido de forma mais correta para o inglês como “agreementism” ou para o português como “compromissismo”. Então a questão diante da qual estava a base eleitoral do soviete era: o compromissismo é viável? Sim, pode ser conveniente trabalhar com a elite ao invés de confrontá-la, mas não se isso significa abandonar os objetivos da revolução.
Do ponto de vista da incipiente contrarrevolução, existiam duas possíveis estratégias para eliminar o sistema do soviete: um golpe duro ou um golpe suave. Uma tentativa de golpe duro foi a realizada pelo General Kornilov no final de agosto – mas esta foi uma aventura mal planeada desde o início e que rapidamente chocou com factos concretos da política em1917, nomeadamente, a lealdade última das forças armadas aos sovietes. O golpe suave apoiou-se numa estratégia distinta de criação, por vários meios, de uma alternativa de vlast de longo alcance com apoio nacional, ao mesmo tempo solicitando aos sovietes que voluntariamente se dissolvessem. Nesta categoria encontram-se as experiências de outono, como a Conferência Democrática e o Pré-Parlamento. A Assembleia Constituinte foi-se convertendo cada vez mais na peça central das tentativas de golpe suave, ou seja, de induzir o poder do soviete a se desfazer graciosamente.
Para a base do soviete, a questão estava decidida no início de setembro, quando as novas maiorias dos sovietes eleitas em Moscovo e São Petersburgo mostraram o seu apoio a um governo de todos os sovietes e ao anticompromissismo. Ficou evidente que o II Congresso dos Sovietes, a ser realizado em outubro, decidiria no mesmo sentido. A questão passou a ser: iria a Constituição não-escrita prevalecer? A nova maioria soviética poderia exercer o mesmo controlo decisivo sobre as polícias e os funcionários do governo que a velha maioria exercia? Na linguagem do senso comum, Outubro foi o momento em que os sovietes derrubaram o Governo Provisório. Na nossa perspetiva, foi o momento em que o Governo Provisório falhou em derrubar os sovietes.
Ao mesmo tempo, os sovietes delegaram liderança política ao Partido Bolchevique. Esta escolha foi uma implicação inevitável de uma decisão mais substancial de manter a existência do poder do soviete, já que os Bolcheviques eram a única força política organizada disposta e capaz de fazê-lo. (Os Socialistas-Revolucionários de Esquerda [SRs] eram bastante determinados, mas parcamente organizados). A dissolução da Assembleia Constituinte no início de janeiro encerrou a última hipótese de eliminar o poder do soviete pacificamente, ou seja, através de uma autodissolução voluntária. Depois disso, a questão deslocou-se para os campos de batalha.
De acordo com a Constituição não-escrita, um Congresso regularmente eleito de sovietes representando sovietes de todo o país teria o direito e dever de determinar tanto o pessoal administrativo quanto as políticas do governo revolucionário. O II Congresso que se reuniu em 25 e 26 de outubro tornou-se este corpo. Várias vezes ficamos tão fascinados com os debates dramáticos entre os Bolcheviques, e pelo “levante armado” organizado pelo Comité Revolucionário Militar do Soviete de Petrogrado, que tendemos a esquecer que o facto político básico no outono de 1917 era a nova maioria que se formou em todo o país na base eleitoral do soviete.
O levante assume um novo significado à luz deste facto: podemos imaginar o II Congresso sem o levante, mas não podemos imaginar o levante sem o II Congresso. Como disse Trotsky no Congresso: “A fórmula política deste levante: Todo o poder aos sovietes através do Congresso dos Sovietes. Dizem-nos: não esperaram pelo congresso. Nós, como partido, consideramos ser nosso dever criar uma possibilidade genuína para que o Congresso dos Sovietes possa tomar o vlast nas suas próprias mãos”.
No mesmo sentido, um olhar sobre os procedimentos do II Congresso pode dar-nos alguma ideia do significado de Outubro em outubro – ou seja, o que o II Congresso como um todo, incluindo a sua maioria e minoria, pensava estar a fazer. De acordo com a Constituição não-escrita, um Congresso de Sovietes devidamente constituído tinha o direito a determinar as políticas e o pessoal administrativo do governo. Este era o cerne da questão e ninguém discordou no Congresso, nem mesmo os inimigos mais determinados dos Bolcheviques.
Em vez disso, estes tentaram minimizar o status de legitimidade do Congresso de outras formas: primeiro, promovendo o esvaziamento do Congresso para privá-lo do seu quórum mínimo necessário e transformá-lo numa “conferência privada”. Segundo, declarando que o conflito armado e a “guerra civil” nas ruas tornavam o trabalho do Congresso impossível. Mas note-se: os socialistas antibolcheviques não protestaram sobre a prisão do Governo Provisório, mas somente sobre o tratamento dado aos ministros socialistas – e mesmo aqui o repúdio não foi causado pelo seu estatuto de ministros, mas porque eram camaradas de partido numa missão partidária. Finalmente, embora admitindo que o Congresso tinha direito a criar um novo governo e mesmo um governo que excluísse partidos não não soviéticos, insistiram que o novo vlast representasse todos os partidos soviéticos e mesmo todas as forças democráticas – consequentemente a ala Martov dos Mencheviques e os SRs de esquerda – mesmo que a criação de uma coligação tão ampla fosse um sonho irreal. Ninguém no Congresso, portanto, contestava a constituição não-escrita.
Que programa o Congresso ofereceu ao novo governo? Três coisas foram alcançadas durante os dois dias de sessões: uma proposta oficial do governo para uma “paz democrática”, terra aos camponeses e a concomitante abolição das propriedades latifundiárias, e a criação de um “governo operário-camponês”. Todas estas medidas eram essencialmente “democráticas”, na linguagem da época, e esta qualidade democrática foi fortemente enfatizada pela retórica oficial e pelo porta-voz Bolchevique. Numa declaração que se tornou famosa – talvez o primeiro pronunciamento do novo vlast –, Lenine afirma que: “A causa pela qual o narod lutou – a proposta imediata de uma paz democrática, a abolição da propriedade latifundiária da terra, o controlo dos operários sobre a produção, a criação de um governo do soviete – esta causa está agora assegurada”.
No esboço original, Lenine tinha escrito “Vida longa ao socialismo!”, mas riscou esta frase. Isso aponta para uma outra característica dos debates do Congresso: o perfil rebaixado do “socialismo”, tanto como palavra como conceito. A menção ao socialismo é feita como objetivo final, é verdade. Mas os Bolcheviques nunca defenderam o programa efetivo adoptado pelo Congresso como sendo “socialista” – nem os que atacaram os Bolcheviques fizeram qualquer menção a tentativas irreais de instalar o socialismo na Rússia, o que é ainda mais relevante, . O “socialismo” simplesmente não era uma questão no II Congresso.
O significado histórico do II Congresso, então, foi o de a até então Constituição não-escrita se afirmar agora abertamente como a lei definitiva do território. O vlast embrionário criado em fevereiro – um vlast baseado solidamente nos operários e camponeses, e dedicado ao programa da revolução – anunciou ao mundo a sua firme intenção de sobreviver e prosperar.
O olhar sobre o II Congresso e seu programa torna inevitável a questão: que tipo de revolução foi a Revolução Russa de 1917? Em alguns aspectos, obviamente, uma revolução operário-camponesa na Rússia seria inevitavelmente “socialista”, ou seja, seria dirigida por socialistas comprometidos cujo objetivo último era estabelecer uma sociedade socialista. Os partidos socialistas tinham um monopólio absoluto da lealdade política do narod e ninguém além deles tinha estado representado antes no sistema soviético. Além disso, os Bolcheviques situaram finalmente o seu projeto no contexto de uma revolução socialista de alcance europeu que acreditavam estar em curso. Por outro lado, quando olhamos para o programa efetivo para a Rússia adotado pelo poder soviético em 1917, e também para a mensagem concreta enviada pelos Bolcheviques diariamente para a base do soviete, é possível ver que as reivindicações “democráticas” substituíam quase por completo as “socialistas”.
O contraste binário entre “revolução democrático-burguesa” e “revolução socialista” possui longa tradição no marxismo, mas, no início do século XX, mostrava claros sinais de esgotamento. Em 1906, Karl Kautsky escreveu um artigo seminal intitulado Driving Forces and Prospects of the Russian Revolution [ Forças dirigentes e perspetivas para a Revolução Russa]. Este artigo foi apreciado por Lenine, Trotsky e Estaline, sendo que todos escreveram comentários a seu respeito. Mesmo depois da revolução de 1917, o artigo de Kautsky ainda era endossado por Lenine, Trotsky e mesmo Karl Radek como uma exposição clássica da lógica subjacente à estratégia revolucionária Bolchevique.
Kautsky argumentou que a Rússia não passava “nem por uma revolução burguesa no sentido tradicional, nem por uma revolução socialista, mas por um processo único que está a ter lugar na fronteira entre a sociedade burguesa e a socialista”. Para Kautsky, a atual e futura revolução na Rússia não era burguesa, porque era dirigida por socialistas, mas também não era socialista, porque os camponeses aliados do proletariado não estavam prontos para o socialismo. Todos os sociais democratas russos (incluindo Trotsky) concordavam que a maioria camponesa da Rússia era uma barreira para a transformação socialista, ausente uma revolução europeia transformadora.
Diante deste quadro, parece mais adequado entender a revolução de 1917 como uma revolução democrática antiburguesa. A revolução que criou e defendeu o poder do soviete era democrática tanto no que respeita ao seu conteúdo de classe como ao seu programa. O Soviete de Petrogrado foi criado pelos operários e soldados da capital – ou seja, o poder soviético era um vlast operário-camponês desde o início e nunca perdeu este caráter. Pelas regras do discurso marxista aceite por todos em 1917, uma revolução que incorporasse os interesses do campesinato seria considerada democrática.
Como vimos, a revolução dos sovietes era também democrática no seu programa em 1917. Existe a ideia, comum entre muitos marxistas hoje em dia, que proclamar “o caráter socialista da revolução” era uma necessidade lógica para que o projeto de poder soviético fizesse sentido. Esta ideia desfaz-se quando investigada – e foi, de facto, forçosamente refutada em 1917 pelos próprios Lenine e Trotsky. Existe hoje, talvez, a tendência entre alguns marxistas de subestimar a “mera” revolução democrática como restrita a reformas insignificantes e a um “programa mínimo” miserável. Os Bolcheviques tinham uma postura muito diferente. Eles viam a transformação democrática da Rússia – criação de uma democracia radical, terra aos camponeses, liquidação dos grandes proprietários de terra como classe e modernização de todas as esferas da vida – como uma missão altamente ambiciosa e gratificante. Por este motivo, apenas os socialistas comprometidos foram capazes de levá-la adiante.
O que nos leva à segunda parte da nossa definição: em contraste com as “revoluções democrático-burguesas” clássicas, a Revolução Russa foi antiburguesa desde o seu início. Primeiro, pelo motivo observado por Kautsky: era liderada por socialistas e não por liberais ou “burgueses” de qualquer estirpe. Segundo, ambas as alas da base do soviete – operários e camponeses – eram hostis ao burzhui e aos valores burgueses. Terceiro, a Revolução Russa desenrolou-se no meio de uma acelerada decomposição dos sistemas de mercado de trabalho.
Desde o início – ou seja, a partir de fevereiro – a base do soviete foi hostil ao burzhui tanto no seu significado restrito de proprietários industriais como no seu significado mais amplo de tsenzoviki (uma palavra abusiva para identificar as elites educadas que obtinham da propriedade os requisitos, ou “census”, que restringiam o número de votantes), de beloruchki (aqueles com as mãos brancas), e outros termos não amistosos para a elite educada. Mesmo nos primeiros dias, quando as esperanças eram elevadas a respeito de uma parceria, os burzhui eram vistos com desconfiança e, de facto, com um automático sentimento de falsidade. O compromisso num sentido positivo com as instituições socialistas era muito menos poderoso do que uma atitude negativa em relação aos burgueses como indivíduos e também aos valores burgueses. A orientação antiburguesa emergiu organicamente do poder do soviete, e não apenas dos sonhos dos intelectuais socialistas.
Qualquer coisa como uma classe burguesa, instituições de mercado e valores de classe média foram destruídos pelo “tempo de dificuldades” russo que se iniciou em 1914, e não havia qualquer vontade social ou política de reconstituí-los. Assim, socialismo na União Soviética adquiriu um conteúdo orientado para a construção de um grande país moderno sem uma burguesia, um mercado autónomo ou o pluralismo burguês. Tanto a dinâmica social de curto prazo como o resultado económico de longo prazo da revolução eram determinados em primeiro lugar pelo sentido antiburguês da base do soviética.
Para entender porque foram os Bolcheviques e não outro partido a conquistar a liderança do poder soviético, é preciso ter uma visão mais abrangente e olhar para a chamada estratégica de hegemonia que definia o Bolchevismo antes de 1917. “Hegemonia” é uma palavra com significados variados em diferentes contextos. Quando os Bolcheviques a usaram para resumir a sua visão da dinâmica de classes na Rússia, queriam dizer, antes de mais nada, que o proletariado socialista iria atuar como uma liderança (hegemon) para os camponeses. Numa formulação mais completa: o proletariado socialista levaria a revolução “até ao fim” criando um vlast revolucionário baseado no interesse comum dos operários e camponeses e rejeitando qualquer proposta dos reformadores liberais no sentido de parar ou fazer recuar a revolução.
A estratégia de hegemonia no pré-guerra ofereceu aos Bolcheviques uma vantagem inicial – um plano que levaria eventualmente à conquista do apoio maioritário no II Congresso. Os Bolcheviques em Petrogrado não precisaram de Lenine para analisar a situação e para ganhar a base do soviete – formada por soldados operários e soldados camponeses – para o projeto de poder soviético pleno e para persuadir esta base a rejeitar qualquer compromisso com os reformadores das elites. Líderes Bolcheviques como Estaline e Kamenev estavam confiantes de que o Governo Provisório seria incapaz de realizar o programa revolucionário e que rapidamente revelaria a sua essência contrarrevolucionária.
Em tudo isto, o papel dos aliados camponeses continuou a ser o cerne da questão. Em abril, a maior parte das discussões entre os Bolcheviques, depois do regresso de Lenine, foi dedicada a garantir que todos estavam a par do papel crucial dos camponeses na revolução. É por isso que alguns Bolcheviques insistiram que “a revolução democrática-burguesa não está concluída” – uma outra forma de dizer “o camponês é ainda um aliado revolucionário”. Lenine respondeu destacando que qualquer “passo rumo ao socialismo” (a nacionalização dos bancos, por exemplo) só seria dado com o entendimento e apoio dos camponeses.
Esta aposta fundamental na liderança socialista do campesinato explica não apenas a vitória Bolchevique em 1917, mas a vitória Bolchevique da guerra civil. Em 1920 ( antes da Nova Política Económica), Evgenii Preobrazhensky descreveu o “camponês médio” como “figura central da revolução”:
“Durante toda a guerra civil, o campesinato médio não acompanhou o proletariado a passos firmes. Oscilou mais de uma vez, especialmente quando enfrentou as novas condições e fardos; mais de uma vez moveu-se em direção às classes inimigas. [Mas] o Estado operário/camponês, construído sobre o estabelecimento de uma aliança do proletariado com 80% do campesinato, apenas por este facto, não possui concorrente possível ao vlast no interior das fronteiras russas”.
O Exército Vermelho era a corporificação da hegemonia: soldados camponeses, liderança política dos socialistas revolucionários, oficiais que ofereciam competência técnica, mas desprovidos de influência política, todos a lutar juntos para defender a existência do vlast operário-camponês. Tanto que isto foi reconhecido até mesmo pelo menchevique Fyodor Dan. Ao escrever em 1922, Dan observou que a derrota do Exército Vermelho de base camponesa na Polónia, em 1920, não tinha sido apenas uma derrota militar:
“Para defender o território que confiscou contra um possível regresso do dono das terras, o homem camponês do Exército Vermelho lutará com grande heroísmo e o maior entusiasmo. Avançará de mãos vazias contra canhões, tanques, e o seu ardor revolucionário invade e desorganiza mesmo as tropas mais esplêndidas e disciplinadas, como aconteceu com os alemães, ingleses e franceses em igual medida (…)
Mas a ideia do comunismo bolchevique é tão estranha e mesmo hostil à mentalidade do Exército Vermelho camponês que este não pode ser nem contaminado por ela, nem mesmo contaminar outros com ela. Ele não pode ser atraído pela ideia da guerra para converter a sociedade capitalista numa sociedade comunista, e este é o limite do potencial do Exército Vermelho para os bolcheviques.”
Dan possuía uma estranha compreensão da “ideia do comunismo Bolchevique”. Apesar disso, a sua observação revela dois pontos centrais sobre a Revolução Russa. Primeiro, esta era forte quando compatível com os interesses camponeses, e fraca quando se afastava destes limites. Segundo (um ponto obscurecido por Dan), os camponeses dificilmente poderiam ter constituído uma força efetiva de luta, a menos que fossem liderados politicamente por um partido político baseado no setor urbano do narod.
Os Bolcheviques estavam completamente comprometidos com uma aliança operário-camponês e ipso facto com uma revolução essencialmente “democrática”. Apenas nos seus últimos artigos Lenine avançou explicitamente a ideia de que o proletariado poderia liderar a maioria camponesa para o socialismo. Em alguma medida, esta elaboração era uma ruptura com a versão original da hegemonia, mas, mais profundamente, era uma extensão da ideia basilar dos socialistas liderarem os camponeses.
Em outubro, a liderança do poder soviético foi confiada ao Partido Bolchevique. Olhar para os acontecimentos deste ponto de vista permite um novo olhar sobre a liderança de Lenine no interior do partido, um olhar que permite perceber aspectos inesperados. Mas temos de começar pelo facto de Lenine ter sido basicamente responsável pela elaboração e defesa da estratégia de hegemonia antes e depois da revolução de 1905. Em outubro de 1915, ele apurou o seu cenário sugerindo que um vlast operário-camponês tomaria o poder durante o segundo estágio da revolução, substituindo um regime anticzarista mas defensista. Ele proporcionou assim ao partido a sua orientação estratégica básica.
Quando Lenine regressou à Rússia em abril de 1917, depois de uma década de exílio, existia um grande potencial para discordância e desmoralização. O que é impressionante sobre Lenine em abril – quando olhamos detalhadamente para as disputas entre os Bolcheviques – é a sua capacidade de ouvir os seus companheiros de partido, de separar o que é primordial do que é secundário, e ajudar a esclarecer mal entendidos, tanto da sua parte como da parte dos Bolcheviques de Petrogrado. Vejamos um pequeno mas revelador exemplo do que Lenine aprendeu com os locais. Na sua Letter from Afar [ Carta de longe], enviada da Suíça antes do regresso, Lenine referiu-se continuadamente ao “Soviete dos Deputados Operários”. Quando o seu artigo foi publicado no Pravda, os editores silenciosamente corrigiram-no, utilizando o termo correto “Soviete de Deputados Operários e Soldados”. No texto original das Teses de Abril, enviado imediatamente antes do seu regresso, Lenine ainda usava o termo incorreto. Alertado pelos seus companheiros para este problema, imediatamente mudou para o termo, que se tornou um importante símbolo da importante aliança entre operários e camponeses.
Lenine também merece crédito pela adoção do famoso slogan de três palavras “Todo o poder aos sovietes!”, mas de uma maneira inesperada. O slogan não aparece nas Teses de Abril ou nas resoluções da conferência do partido que terminou a 29 de abril. Aparentemente, o primeiro registo da sua utilização refere-se a uma faixa ostentada nas ruas durante as manifestações de 21 de abril contra o governo. Lenine deu conta do seu surgimento e citou este facto num artigo publicado no Pravda a 2 de maio. O primeiro uso do slogan, não apenas como uma faixa anónima ou um artigo assinado por um indivíduo, mas como documento com autoridade partidária, ocorreu no Pravda a 7 de maio. Portanto, Lenine foi suficientemente perspicaz para observar o slogan e aperceber-se das suas possibilidades. Segundo o que sabemos hoje, foi Lenine quem levantou este slogan do anonimato e fez dele algo central para a agitação Bolchevique.
Depois das jornadas de julho, Lenine pensou que a Constituição não-escrita tinha sido abortada e que o sistema do soviete não era mais capaz de exercer poder. Neste contexto, pensou em retirar o slogan “Todo poder aos sovietes!”. Como mais tarde admitiria, este foi um desvio esquerdista. Por sorte, outros líderes partidários conseguiram manter o slogan intacto e este serviu aos Bolcheviques muito bem no outono, quando o sistema de sovietes adquiriu novo vigor. Como este episódio evidencia, Lenine era um líder efetivo porque era membro de uma equipa que corrigia os equívocos individuais.
Para além do drama de Lenine a confrontar os seus camaradas Bolcheviques em outubro para levar adiante um levante, devemos focar-nos no seu argumento central: a base soviética nacional, camponesa e operária, tinha rejeitado qualquer forma de compromissismo e por isso tinha de facto declarado poder pleno ao soviete. O levante armado foi sem dúvida uma boa ideia, mas este não criou o poder soviético – na verdade, protegeu o II Congresso e a sua capacidade de transformar a Constituição não-escrita numa Constituição escrita.
Lenine era o líder forte de um partido unido. Mas o partido não estava unido porque ele era um líder forte – pelo contrário, ele era um líder forte porque o partido estava unido em redor da estratégia básica da liderança socialista para estabelecer um vlast operário-camponês.
Ao olhar para o curso dos acontecimentos de fevereiro a outubro, somos confrontados com a improbabilidade e, ao mesmo tempo, inevitabilidade do poder soviético. Outubro só foi possível devido à confluência de três circunstâncias inusitadas: o colapso iminente do vlast anterior, a criação de uma instituição baseada nos operários e nos soldados camponeses que imediatamente venceu a lealdade efetiva do exército, e a existência de um partido clandestino com uma estrutura nacional e um programa pronto a aplicar que respondeu às primeiras duas circunstâncias.
Todas estas características ficaram evidentes nas horas que se seguiram à queda do governo czarista. Depois disso, Outubro parecia quase inevitável. O compromissismo era um beco sem saída, dado o profundo cisma entre as aspirações do povo russo e as das elites sociais. Quando isso se tornou evidente, os Bolcheviques e o seu programa de poder soviético pleno eram a única alternativa restante para a base soviética. Mesmo a contrarrevolução não era uma alternativa real, já que esta ainda não estava pronta para tomar o poder e reprimir os sovietes.
1917 foi, assim, um ano de clarificação sobre o que estava em jogo na luta. O vlast operário-camponês criado em 1917 sobreviveu à guerra civil que sucedeu, mas pagou um preço alto.
Uma das baixas foi a abolição da liberdade política, mesmo tendo esta sido um objetivo central dos Bolcheviques antes da guerra. Apesar disso, a jovem Rússia soviética pode ser descrita com precisão como “ vlast operário-camponês” em muitos aspectos. O estrato social dos proprietários de terra foi liquidado como classe, as antigas elites educadas varridas do poder, as novas instituições de governo progressivamente ocupadas por operários e camponeses, muitas das políticas do novo governo voltadas para fortalecer o apoio destas classes (a campanha de alfabetização em massa, por exemplo), e os operários e camponeses passaram a ser celebrados continuamente nas canções e lendas. Mesmo a intolerância política massiva era, em certa medida, uma característica “democrática”, pois refletia valores populares difundidos.
O poder soviético foi criado em Fevereiro de 1917 e preservado em Outubro pela aceitação da liderança bolchevique, estabelecida como força poderosa no mundo, para o bem e para o mal.
Lars T. Lih: From February to October
Tradução de Daniela Mussi para o Blog Junho.
Adaptação para português de Portugal de Mariana Carneiro para o Esquerda.net.
http://www.esquerda.net/artigo/de-fevereiro-outubro/49472
Artigo publicado originalmente na revista Jacobin.
Última atualização em 17 de outubro 2017