MIA: História: História soviética: 100º aniversário da Revolução Russa: Antes de Fevereiro
“Nós, da geração mais velha, talvez não vivamos para ver as batalhas decisivas da vindoura revolução”, avisou Lenine numa apresentação para um grupo de jovens suíços no décimo segundo aniversário da derrotada Revolução de 1905. A justaposição das suas observações e a queda do czar Nicolau II, apenas seis semanas depois, criou a atmosfera para a piada clássica do movimento marxista: “Não se atrase para o protesto, porque a revolução pode começar!”.
Mas era claro na sua obra, naquela época, que Lenine sabia que a situação política na sua pátria-mãe poderia explodir a qualquer momento. Por trezentos anos, a dinastia dos Romanov governou com mão de ferro a Rússia, à época um império em expansão, no qual os falantes de russo eram minoria.
Longe de agonizarem isolados, os czares deixaram a sua marca reacionária na Europa Ocidental, fornecendo vastos exércitos camponeses para apoiar a monarquia e a reação frente aos movimentos democráticos e nacionalistas da Revolução Francesa de 1789 em diante. Os Romanov até conseguiram atingir o topo da lista dos inimigos mortais na linha de abertura do Manifesto Comunista. Ainda assim, no início do século XX, as fundações do Império estavam abaladas.
Na sua História da Revolução Russa, Leon Trotsky explica a volatilidade da sociedade russa, sinalizando que o desenvolvimento económico global acontece necessariamente a um ritmo desigual. Nicolau estava no topo de uma miríade de territórios e povos – um pequeno exemplo disso estava no seu próprio título: “Imperador e Autocrata de todas as Rússias, de Moscovo, Kiev, Vladimir, Novgorod, Czar de Kazan, Czar de Astracã, Czar da Polónia, Czar da Sibéria… e Grão-duque de Smoliensky, Lituânia… e mais, e mais, e mais”.
Em primeiro lugar, e mais importante, o czar era o maior latifundiário entre a classe dos barões de terras, que sobreviveram aos seus homólogos feudais da Europa Ocidental por mais de um século – a servidão só foi abolida em 1861. Essa classe de trinta mil aristocratas possuía, aproximadamente, 765 milhões de quilómetros quadrados (as propriedades tinham, em média, 21,85 quilómetros quadrados), mais terra do que cinquenta milhões de camponeses pobres e médios juntos.
Além de serem “um programa pronto para a revolta agrária”, os números também indicavam o desfasamento entre a força de trabalho da Europa Ocidental em processo de industrialização e a Rússia agrária. Preocupado que o seu atraso tecnológico pudesse dar cabo do seu poder militar, o czar apoiou-se nos bancos franceses e ingleses para financiar o moderno, e altamente centralizado, exército e uma indústria metalúrgica, centrada em São Petersburgo e em muitos outros lugares. Algumas das maiores fábricas do mundo saíram do solo russo, concentrando nelas uma nova classe de pessoas que não tinham nada para vender, senão a sua força de trabalho. No Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de 1899, Lenine estimava que, em 1890, já existissem dez milhões de trabalhadores assalariados no país.
O czar procurou unir essa “amálgama” com o chicote. Os gangues antissemitas, conhecidos como as Centenas Negras, rondavam a zona rural aterrorizando judeus, o nacionalismo da Grande Rússia impedia o ensino em línguas locais e as greves eram resolvidas com a força militar. E, na esperança de conseguir um porto na costa oeste, ao mesmo tempo que atiçava o fogo do patriotismo, a coroa declarou guerra ao Japão em 1904, mas os superiores equipamentos e estratégia dos japoneses logo despertou o ímpeto da oposição interna.
A nove de janeiro de 1905, centenas de milhares de trabalhadores, estudantes, e pobres marcharam atrás do eclesiástico Padre Gapon, implorando que o czar diminuísse o seu fardo. Foram recebidos com baionetas e munição real, deixando centenas a sangrar até à morte nas ruas.
O Ensaio Geral de 1905, como ficou conhecido, expôs uma indignação social multifacetada: campesinato contra latifundiários, trabalhadores contra patrões, e virtualmente o país inteiro (incluindo alguns segmentos da classe média, e até alguns capitalistas) contra a monarquia.
Quando tudo isso tinha acabado, os marinheiros amotinaram-se no Couraçado Potemkin, camponeses incendiaram mansões num sétimo das províncias, e uma nova frase entrou para a consciência da esquerda internacional, como Lenine definiu, “formou-se uma peculiar organização de massas, o famoso Soviete de Deputados Operários, reunindo delegados de todas as fábricas”.
Rosa Luxemburgo – ela própria uma das fundadoras da Social-Democracia do Reino da Polónia e Lituânia – generalizou, para lá das condições russas, a “greve geral [como] a primeira forma impulsiva, natural de toda a luta revolucionária do proletariado”.
Em plena revolução, a esquerda socialista desabrochou. Nos anos anteriores ao famoso Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo, em que os bolcheviques e mencheviques, pela primeira vez, uniram-se e depois separaram-se – ao que acrescem negociações complexas com organizações importantes de judeus, polacos, finlandeses e outras organizações socialistas de base nacional – existiam, talvez, cerca de dez mil filiados nas diversas fações. Até o chamado Congresso da Unidade, na primavera de 1906, mais dezenas de milhares juntaram-se, e até o Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (incluindo as suas ramificações nacionais) de 1907, a militância aproximou-se de cerca de 150.000, apesar da repressão brutal.
De tão aterrorizado que estava, o czar cedeu à revolução uma concessão, uma espécie de parlamento-fantoche chamado Duma. No início, os trabalhadores urbanos nem sequer tinham direito ao voto, embora a estrutura depois tenha sido alterada para que cada dois mil latifundiários elegessem um delegado, e cada noventa mil trabalhadores elegessem igualmente um. Essa migalha oferecida era ao mesmo tempo mais do que o desejado por Nicolau e nem sequer próximo do suficiente para aplacar a revolução, então o Estado transformou a Rússia num cemitério – quinze mil foram executados, vinte mil feridos, quarenta e cinco mil exilados. O sangue abafou o fogo, por um tempo.
No início de 1912, as greves estavam em alta novamente até que a situação explodiu numa cidade siberiana de mineração de ouro chamada Lena, onde tropas czaristas alvejaram centenas de grevistas. A classe trabalhadora ressurgiu como uma fénix das cinzas, os partidos socialistas expandiram-se novamente, e as greves proliferaram. Em 1914, o jornal socialista Pravda tinha uma circulação diária de trinta a quarenta mil – num país predominantemente iletrado.
O verão de 1914 testemunhou a Rússia no ponto de rutura – o status quo tornou-se insustentável. Nicolau declarou guerra à Alemanha a 19 de julho de 1914. Só que, dessa vez, mais do que um conflito contido com o Japão na sua fronteira oriental, a guerra com a Alemanha e o Império Austro-Húngaro trouxe a fome e a pestilência às portas da monarquia.
No entanto, nos primeiros dias da guerra, uma onda de entusiasmo patriótico sustentou o posicionamento do czar. Centenas de milhares de miúdos e jovens camponeses correram para juntar-se ao exército, e os grupos nacionalistas polvilhavam as praças das cidades e das vilas.
Mas todos os conflitos que conduziram a 1905 voltaram a efervescer. A Guerra Mundial fornecia caixões às massas russas numa escala quase impossível de imaginar. A Primeira Guerra Mundial apresentou o espetáculo do mais atrasado e subdesenvolvido sistema social a nível continental enfiado até à cabeça numa luta de vida ou morte com a mais avançada economia industrial do mundo. Os resultados foram aterradores.
Três milhões de soldados do exército imperial do czar morreram, outros quatro milhões foram feridos, e cerca de três milhões de civis morreram por causas relacionadas com a guerra, de uma população de cerca de 175 milhões. Face à tecnologia militar alemã, o czar mandou centenas de milhares de soldados precariamente armados e mal equipados para a morte certa. Ao longo dos invernos de 1915, 1916, e 1917, dezenas de milhares de soldados simplesmente morreram congelados nas suas trincheiras.
Enquanto isso, a corte real afundava em novos níveis de devassidão. Um eclesiástico místico chamado Grigori Rasputin tinha o controlo sobre a czarina Alexandra, exigindo que o seu marido punisse todos os sinais de deslealdade, como Ivan, o Terrível, tinha feito. A influência dele era tamanha que os aristocratas russos assassinaram-no, na esperança de reconquistar a influência sobre Nicolau e a sua política de guerra. Tendo, por alguns séculos, bebido do poço real, os barões agora tinham medo de ser todos envenenados pelo corpo político putrefacto. Como Tsuyoshi Hasegawa relata, o casal real “recusava-se a entender o mundo exterior”.
As insurreições camponesas aumentavam conforme a guerra se arrastava, assim como em 1905, mas agora já se concentravam numa nova forma; a saber, o conflito entre os oficiais da aristocracia e os soldados camponeses nas trincheiras. Cada vez que um oficial ordenava um avanço suicida sobre o fogo alemão, não eram só as vidas desses soldados do campo que estavam em jogo, mas também o próprio futuro da família que dependia do retorno dos filhos à casa para o cuidado e trabalho. Além disso, alimentar o exército tirava o sustento das famílias rurais e as sementes para as colheitas do ano seguinte.
Talvez Nicolau, ou pelo menos a monarquia, tivessem sobrevivido à crescente raiva do campesinato, às catastróficas perdas militares, e ao descontentamento dentro da sua própria classe. Porém, um inimigo ainda mais potente estava a erguer-se. Pois, assim como a guerra encheu as trincheiras de sangue, encheu São Petersburgo de proletários. A mesma classe trabalhadora que tinha lutado contra o regime até o impasse de 1905, e que sofria terrivelmente pelos seus esforços, agora dependia de produzir e distribuir cada espingarda, cada bala, cada escudo, cada vagão, dos quais dependia a guerra do czar. Pior, Nicolau não tinha escolha, senão fortalecer esse adversário.
Hasegawa relata que, entre 1914 e 1917, o número de trabalhadores em São Petersburgo cresceu de 242.600 para 392.000, ou algo próximo de 62 por cento, sendo as mulheres um quarto de todos os trabalhadores. As greves arrefeceram nos primeiros dias patrióticos da guerra – por exemplo, enquanto aproximadamente 110.000 trabalhadores entraram em greve antes da guerra, em 1914, em homenagem ao Domingo Sangrento, apenas 2.600 pararam a nove de janeiro de 1915. Mas conforme os esforços de guerra colapsavam, as paralisações proliferavam. No período de seis meses, entre setembro de 1916 e fevereiro de 1917, cerca de 589.351 trabalhadores pararam e cerca de 80% destes participavam em greves políticas.
Mais do que isso, no meio desse movimento de massas, as obstinadas organizações socialistas construíram uma longa luta para se implantarem entre os trabalhadores. Milhares de revolucionários perderam as suas vidas em 1905, ou na decorrência da repressão, e outros milhares foram recrutados e enviados para a frente numa tentativa de expurgar o movimento operário de organizadores forjados no calor da batalha. A polícia czarista realmente chegou perigosamente perto de erradicar a esquerda socialista organizada em diversos momentos; no entanto, as sementes de mais de uma dúzia de anos de confrontos, organização de partidos clandestinos e educação socialista tinham firmado raízes.
Ao contrário da Alemanha e da França, nas quais as lideranças das organizações socialistas mais importantes apoiavam as suas próprias classes dominantes na Primeira Guerra Mundial, a maior parte do movimento socialista russo adotou princípios internacionalistas contrários à guerra. Como um todo, São Petersburgo estava repleta de socialistas revolucionários, organizados em grupos partidários que operavam em diversos estados de competição e cooperação, incluindo bolcheviques, mencheviques, internacionalistas, socialistas revolucionários, e até anarquistas.
É claro que entre eles havia alguns patriotas sociais famosos, sendo o mais notável o líder menchevique direitista Gueorgui Plekhanov, o “pai do marxismo russo”, que tanto Lenine quanto o menchevique-Internacionalista Julius Martov um dia consideraram como mentor.
Tudo dito, as primeiras semanas de 1917 chegaram perto de encontrar o que Lenine sugeriu serem as premissas para a “lei fundamental da revolução”, ou seja:
Só quando os "de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar a viver à moda antiga é que a revolução pode triunfar.
No Império Russo, a classe trabalhadora não estava sozinha na resistência contra as condições surgidas da guerra. Karl Liebknecth rompeu com a liderança pró-guerra do Partido Social-Democrata Alemão e votou contra os financiamentos à guerra no parlamento; na cadeia, Rosa Luxemburgo escreveu o Panfleto Junius; soldados franceses e alemães declararam uma trégua unilateral de Natal, e a esquerda do Partido Socialista Americano e os Trabalhadores da Indústria do Mundo opuseram-se veementemente à vontade bélica de Woodrow Wilson.
Mas a profundidade da crise social, económica e militar na Rússia, somada à consciência política e organização da classe trabalhadora (em conjunto com as crescentes revoltas entre os soldados, camponeses, estudantes, e nacionalidades oprimidas), estavam muito à frente de qualquer outro lugar do mundo no inverno de 1916–17.
Acima de tudo isso, havia a bela ilusão (se não universalmente difundida, pelo menos suficientemente comum) que mantinha unido o amplo movimento anti-czarista. Isto é: decepar a cabeça da monarquia, e a paz, a democracia e a prosperidade poderiam chegar à Rússia.
Não demorou muito para o movimento revolucionário russo colocar a sua teoria à prova. Fevereiro foi apenas o começo.
Traduzido por Rafael Bonavina para o blog Junho.
Adaptação para português de Portugal de o Esquerda.net.
Artigo publicado originalmente na revista Jacobin.
Última atualização em 16 de Maio 2017